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Insurreio Comunista de 1935 em Natal e Rio Grande do Norte 1962

Revolucionrios Potiguares em Memrias do Crcere
Graciliano Ramos

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Domicio Fernandes
Motorista, Absolvido

Alcides Washington Guerra Carlindo Revoredo Carlos Wan der Linden Domicio Fernandes Ephifnio Guilhermino Ezequiel Fonseca Filho Gasto Correia da Costa Joo Anastacio Bezerra Joo Francisco Gregrio Joo Alves Rocha Jos Macedo Lauro Corts Lago Leonila Felix Mario Ribeiro de Paiva Miguel Bezerra Morais Paulo Pinto Pereira Ramiro Magalhes Paiva Sebastio Felix Arago Vicente Ribeiro da Silva

“um chauffeur doente, Domcio Fernandes, que no agentaria aquela vida; “

“Paulo Pinto, sifiltico, exibia umas canelas pretas finas demais. Era ele que tinha uma bala na perna? Vrias vezes busquei examinar esse ponto; as informaes perdiam-se. Bem. Se no era ele, seria talvez o chauffeur Domcio Fernandes.

Um dos dois. A verdade que no cheguei a distinguir Domcio Fernandes de Paulo Pinto. Confuso desarrazoada: juntos, notava-se que diferiam bastante; vendo um deles, sempre me aconteceu trocar-lhe o nome. “

“Outro ageiro do Manaus, o chauffeur Domcio Fernandes, estava nas ltimas: perdera a fala e certamente no regressaria ao nordeste.

No fim do galpo, sobre enormes tbuas, arrumavam-se muitas pessoas. Devia ser ali, distante dos guardas, que se faziam as reunies clandestinas de que recebi notcia pouco depois. O exame do ambiente desviou-me as idias negras, a certeza da morte prxima. Via antigos companheiros finarem-se e apegava-me a insensatas esperanas: no me achava como eles. As misrias patentes - gemidos, queixas, vozes dbias, escarros vermelhos, dispnia - livravam-nos dos perigos incertos que em vo queramos figurar. - "Vm morrer." Experimentamos um choque. O pior no saber a gente como vai morrer. Ali no canto da sala enorme, direita, os nossos receios se limitavam: desapareceramos daquele jeito, iguais ao Neves, a Domcio Fernandes, ao negro ansioso que pedia uma injeo de morfina. Essa perspectiva de nenhum modo era desagradvel; tnhamos imaginado torturas, a chama do maarico devastando carnes, e o consumo lento, a inanio, quase nos surgia como favor. Provavelmente uso subterfgios, justifico-me de no haver sentido compaixo excessiva diante dos cadveres que ainda se mexiam. Os vivos preocupavam-me; ao desespero e ao desnimo sucedia uma intensa curiosidade. J no me achava obtuso, conseguia refletir.”

“Van der Linden e Mrio Paiva tambm cuspiam sangue. No poro do Manaus tinham perfeita sade. Mrio Paiva me bebera meia garrafa de aguardente e me chateara em demasia: - "Lobato tinha uma flauta. A flauta era do Lobato." Pobre do Van der Linden. J nesse tempo se isolava, cercado por antipatias contagiosas, vagas censuras encobertas. A velha blusa de mangas curtas exibia os braos finos, as costelas, o peito dbil. Outro ageiro do Manaus, o chauffeur Domcio Fernandes, estava nas ltimas: perdera a fala e certamente no regressaria ao nordeste.”

“Diante dessa razo miservel, a arrogncia do padeiro murchou e desapareceu. Fui acomodar-me, envolver uns restos de zanga nos trapos imundos. Certamente havia ali pessoas mais doentes que eu; Van der Linden e Mrio Paiva mereciam sem dvida aquele desgraado conforto. Domcio Fernandes estava moribundo, no voltaria ao Rio Grande do Norte. Se no fosse a bazfia de Frana, no me custaria despojar-me em benefcio de qualquer deles. Na verdade me achava bem mal, embora no vivesse a queixar-me nem avaliasse os estragos, mas cada vez me arrasava mais. S pensar no refeitrio me causava nusea, as mucuranas e os mosquitos perseguiam-me, e agora, na esteira suja, enrolado em trapos vermelhos de vmitos sangrentos, pensava na invaso dos bacilos, no rpido extermnio do organismo indefeso.”

“Domicio Fernandes, o chauffeur que viajara comigo no poro do Manaus, morreu noite. De manh, quando se varria o alojamento e os presos arejavam no curral de arame, o cadver foi retirado, em cima de uma tbua. Vi de longe o embrulho fnebre; no se percebia nenhuma parte do corpo; fora envolto provavelmente no cobertor ou na rede. Iam enterr-lo assim.

Virei-me. afastei-me daquilo. Apesar de viver numa espcie de anestesia, abalei-me, senti a morte avizinhar-se de mim. As dores no p da barriga cresceram, a tosse me deu a certeza de que os pulmes se decompunham. Iriam levar-me qualquer dia enrolado no lenol tinto, vermelho de hemoptises. Era coisa prevista, imaginada sempre, mas o jeito de fazer o enterro, a mudana de uma criatura humana em pacote jogado fora sem quebra da rotina, exps-me com horrvel clareza a insignificncia das nossas vidas. No se indagava a causa da sbita desvalorizao: bastava a nossa presena ali para justificar o lento assassnio. Lembrei-me de Leal, desesperado, em busca de razes desnecessrias; talvez estivesse prximo o fim dos tormentos dele. Uma apresentao desviou-me um instante as idias negras; em seguida concorreu para fortalec-las. Um companheiro, a caminho das filas do trabalho, parou junto de mim, acompanhado por um sujeito moreno.

- Voc achou impossvel o caso de Tiago, no acreditou. Pois Tiago este, ele pode confirmar.

Grave, a testa enrugada, escutava a narrao e movia a cabea aprovando em silncio. Era aquilo. Se a bia nojenta, os piolhos, os mosquitos, decidissem mat-lo, Tiago sairia do galpo como Domcio Fernandes, em cima de uma tbua, envolto num lenol.

A histria incrvel me importunou o dia inteiro. De regresso ao alojamento, pus-me a remo-la contra vontade; meses atrs parecera-me invencionice, e este juzo ainda persistia, apesar da confirmao do protagonista: recusava-me a itir que ele no houvesse omitido qualquer coisa. horrvel estarmos a remexer um fato incompreensvel. A minha priso era justa, na opinio de Leal. Pois no ara a vida inteira a encher-me de letras radicais, a procurar sarna para me coar? Refletindo, achei a situao dele explicvel tambm. A dele e a do beata Jos Incio, que a bordo se zangara comigo, rosnara exibindo o rosrio de contas brancas e azuis no peito veloso: - "Quando ns fizermos a nossa revoluo, ateus como o senhor sero fuzilados." Certamente era ridculo perseguir essas criaturas. Mas podamos conjeturar vinganas, denncias de inimigos ocultos, a canalhice de um chefe empenhado em suprimir eleitores da oposio. Tiago no tinha inimigos no Brasil, no votava, ningum lhe ambicionava o emprego ordinrio na frota mercante inglesa. A absurda acusao de um patife burlado fora suficiente para inutiliz-lo. Era inacreditvel. No me fazia mossa o ato injusto; afligia-me ser impossvel imaginar uma razo para ele. Disparate. Convencia-me disto - e continuava a esforar-me para achar qualquer vantagem na imensa estupidez. Uma apenas me ocorreu, j muito repetida. O governo se corrompera em demasia; para agentar-se precisava simular conjuras, grandes perigos, salvar o pas enchendo as cadeias. Mas as criaturas suspeitas, e os homens comprometidos na Escola de Aviao, no 3. Regimento, na revoluo de Natal eram escassos, no davam para justificar medidas de exceo e arrocho, o temor pblico necessrio conversas.

Guardou silncio um minuto, olhou-me de soslaio, continuou: - Preciso agentar-me aqui. To cedo no me largam, fico de molho, sem dvida. Um dia volto para a minha terra e entro num bando, vou matar soldado na guerrilha. o que interessa, as discusses no servem para nada. Estamos no meio de espies; fecho a boca e me livro deles. O senhor no resiste um ms: com certeza morre de fome. Eu posso viver aqui alguns anos, estou acostumado a ar misria. Depois eles me botam na rua. Aqui eu no dou armas polcia. L fora, quando chegar o momento de pegar no pau furado, entro na dana.

Agradeci interiormente esse desabafo, estranho em pessoa que pouco antes se mostrara simulada e cautelosa. A pacincia enorme, a sade firme de mandacaru em tempo de seca e o plano realizvel em futuro remoto fizeram-me esquecer um instante as chagas medonhas envoltas em algodo negro, a tosse dos tuberculosos, o ferro dos piolhos e dos mosquitos, o embrulho fnebre sado para o cemitrio, numa tbua. Joo Francisco no teria o fim do pobre Domcio Fernandes. Queria viver e matar soldados.”

“O sono vinha, fugia. Modorras desagradveis partiam-se, e nesses intervalos abalavam-me os sentidos meio dormentes os rudos noturnos: papaguear desconexo e delirante, revolues de tripas, gemidos, tosses. Avultavam nisso os arquejos do malandro. Eram na verdade quase imperceptveis, mas feriam-me como pregos. Fazia muitas horas que tinham cessado; capacitara-me disto. Ressurgiam, prolongavam-se, estertor de moribundo teimoso. Porque no morria logo aquela criatura? - Uma injeo de morfina, pelo amor de Deus.

Era apenas um sussurro, quase indistinto. O pedido esmorecia, intil. Pela madrugada enxerguei vultos em redor da tbua, curvados, em cochichos. Teriam vindo enfermeiros? Estariam abreviando e entorpecendo a agonia do homem? Retiraram-se. Os lamentos enfraqueceram ainda, espaados, sumiram-se.

Ao levantar-me, vi o cafuzo imvel e sereno. Afastei-me, com este horror aos mortos, de que no me livro. Fomos aquecer-nos ao sol, no curral; as turmas saram para o trabalho. Quando voltei ao alojamento, o cadver tinha desaparecido. Sara provavelmente enrolado num cobertor, como Domcio Fernandes.”

“Os que chegam aqui vm morrer. Todos iguais." Sem dvida. O malandro cafuzo, Domcio Fernandes, revolucionrio de Natal, assassinados, iguais, sem dvida. Todos iguais. Ia acabar-me assim. Natural. Se pudesse entrar na fila, sentar-me no refeitrio ignbil, ingerir pedaos da bia infame, talvez couse guisse estender um pouco a vida hesitante. Impossvel. Cubano voltaria a agarrar-se comigo, em luta fsica, para obrigar-me a comer. Os bons propsitos dele se perderiam.

O mdico enterrou-me os olhos duros, o rosto cortante cheio de sombras. Deu-me as costas e saiu resmungando: - A culpa desses cavalos que mandam para aqui gente que sabe escrever.”

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