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AP 183u42

SUSP Sistema nico de Segurana Pblica Estados

Arquitetura institucional do SUSP

CAPTULO 8

Sistema Penitencirio

1. Introduo

Entre 1995 e 2003 o nmero de presos no Sistema Penitencirio brasileiro dobrou. amos de 148.760 para 302.495 homens e mulheres privados da liberdade no pas. No clculo de presos por 100.000 habitantes, necessrio para se dimensionar o tamanho da populao presa, comparando-se com o da populao livre, os ndices revelam-se impressionantes: amos de 95,5 para 184,4 presos por 100.000 habitantes, ou seja, um crescimento de 93%. E, o que pior, a despeito de um extraordinrio esforo de construo de inmeras unidades prisionais pelo pas afora, com a gerao de cerca de 100.000 novas vagas, continua faltando lugar para mais de 100.000 presos.1 Se adicionarmos ao clculo o nmero de mandados de priso no cumpridos no pas, nmero sobre o qual nem a Polcia, nem a Justia, conseguem chegar a qualquer acordo, poder-se-ia dizer que falta lugar para muitos outros milhares de infratores. Outros 100.000? 200.000? 300.000? Ningum sabe.

Como se tudo isto no bastasse, a velocidade de novos ingressos nas prises do pas absolutamente assustadora. No sistema penitencirio do estado de So Paulo, por exemplo, ingressam, em mdia, 1.000 novos presos a cada ms. Acentue-se que, ao se falar de novos presos, j se est considerando a diferena entre presos que ingressam e presos que saem em liberdade. Resultado: brutais nveis de superlotao. Superlotao. Violncia. Corrupo. Condies de cumprimento de pena absolutamente desumanas e degradantes. Homens e mulheres tratados como animais. O sistema penitencirio brasileiro vive uma crise profunda. Aqui so sistematicamente ignoradas tanto a legislao nacional, quanto a extensa legislao internacional que trata da questo penitenciria. E no nos esqueamos: o Brasil signatrio dessa legislao internacional. Parece no haver qualquer compromisso com a istrao de um sistema penitencirio respeitador das leis.

A crise do Sistema Penitencirio brasileiro tem sido objeto constante de cobertura da mdia, principalmente quando presos se rebelam, freqentemente fazendo refns, nas fugas e nos constantes episdios de violncia entre grupos de presos que controlam unidades prisionais e disputam poder dentro e fora dos muros. A corrupo que grassa nas prises do pas e a dramtica situao de superlotao tambm povoam o noticirio cotidiano. As poucas aes positivas, que eventualmente geram resultados concretos para a melhoria da gesto prisional, raramente chegam ao conhecimento da sociedade. A sensao mais comum de que estamos diante de uma situao absolutamente catica, principalmente se nos detivermos na anlise das finalidades da pena privativa de liberdade, tal como preceituam as leis vigentes no pas.

De acordo com a legislao brasileira e com a legislao internacional, obrigao do Estado prover educao, sade, trabalho e assistncia material bsica que contribuam para a futura reinsero social do preso. , portanto, inaceitvel que ao custodiar indivduos que infringiram normas sociais, o Estado se revele um infrator das leis, violando toda sorte de direitos, alm de no agir com rigor no combate violncia e corrupo. Ademais, o descalabro das condies de aprisionamento d lugar busca de estratgias de sobrevivncia, por parte da populao presa, que acabam por perpetuar e fortalecer a socializao de valores de desrespeito vida, de ausncia de responsabilidade e autonomia e de descrena na autoridade do Estado e da Lei.

Alterar o quadro em que se encontra o Sistema Penitencirio brasileiro requer aes governamentais firmes que garantam a implementao das leis, principalmente da Lei de Execuo Penal/LEP (Lei Federal 7.210/1984) e dos regulamentos estaduais existentes. Requer, obviamente, a proposio de uma poltica penitenciria que estabelea os instrumentos que possam efetivar as disposies legais. O trabalho aqui apresentado busca discutir estratgias que apontem para possibilidades concretas de mudana, levando-se em conta as propostas para o Sistema Penitencirio inseridas no Plano Nacional de Segurana Pblica proposto pelo candidato Luiz Incio Lula da Silva durante sua campanha.

O Captulo 2 traa um rpido panorama do Sistema Penitencirio brasileiro em nmeros. Primeiramente, a anlise de algumas sries histricas d bem a noo da gravidade do problema que enfrentamos acentuado crescimento da populao prisional e do dficit de vagas. Em seguida, apresentamos um sumrio dos dados encaminhados coordenao deste trabalho pelos diferentes estados brasileiros. A anlise detalhada desse material, acompanhada dos quadros e tabelas correspondentes, encontra-se no Anexo 1. Para o estabelecimento de uma poltica penitenciria imprescindvel que se tenha clareza acerca das bases conceituais que fundamentam este empreendimento. necessrio, portanto, esclarecer, diante das proposies legais e dentro da construo de um Estado Democrtico de Direito, como se contextualiza a pena privativa da liberdade e as suas alternativas na sociedade brasileira, face aos altos ndices de criminalidade verificados. preciso indicar, mesmo que brevemente, em que contexto se gesta a excluso social de parcela significativa da populao brasileira, se agudizam os nveis de desigualdade e se produz solo frtil para o crescimento brutal da criminalidade violenta. Tal a discusso pretendida no Captulo 3.

O Captulo 4 dedicado ao tema da Gesto Prisional em seus mltiplos aspectos, analisando o cotidiano da vida intramuros e buscando estratgias de superao dos principais problemas com que se defrontam presos e seus custodiadores no gerenciamento da privao da liberdade. Discutiremos em que medida a priso, enquanto instituio executora das penas, adquire feies muito especiais quanto s formas como gerencia o cotidiano de milhares de pessoas confinadas. Inmeras so as situaes dirias a serem istradas, em meio das quais se entrecruzam exigncias legais, de segurana individual e coletiva, de satisfao de necessidades bsicas objetivas e subjetivas, considerando-se, ainda, que existem diferentes regimes de cumprimento de penas (regimes fechado, semi-aberto e aberto). Problemas corriqueiros podem, rapidamente, dar lugar a episdios de insurgncia e violncia. Tratase, pois, de uma gesto delicada, em que os custodiadores tm um papel muito importante, j que a ausncia da liberdade tambm retira dos presos grande parte de sua autonomia.

O conhecimento da cultura prisional revela que a convivncia dos presos entre si e com seus custodiadores apresenta muitas peculiaridades. Tambm as relaes entre os gestores da segurana penitenciria e os da assistncia aos presos so objeto de permanentes dificuldades. Mdicos, dentistas, enfermeiros, assistentes sociais, psiclogos e professores aparentemente se colocam como os gestores da assistncia, enquanto que os agentes de segurana se vm como responsveis pela segurana individual e coletiva. Tal dicotomia acaba sinalizando responsabilidades distintas, enganosas, como se um grupo de custodiadores trabalhasse pr preso, enquanto outro atuasse contra o preso. Na verdade, todos trabalham na custdia de presos, com inseres diferenciadas de acordo com suas atribuies profissionais, o que possibilita operacionalizar a execuo da pena.

O Captulo 5 discute as formas de controle interno e externo do sistema penitencirio e traz propostas muito concretas de aperfeioamento dos rgos existentes e da criao de novos mecanismos de controle. A despeito de a mdia ocupar-se do sistema penitencirio no momento do escndalo, das rebelies, dos episdios vergonhosos de corrupo e das fugas, o cotidiano da vida nas prises padece de brutal invisibilidade e poucos so os mecanismos institudos que efetivamente funcionam no sentido de revelar como se processa o confinamento dos indivduos presos. Carecemos de instrumentos que dem visibilidade ao que ocorre no interior das prises: a Lei de Execuo Penal prope rgos fiscalizadores, mas nem todos tm a eficcia necessria, seja por que nos acostumamos a naturalizar que a priso sempre foi assim, ou mesmo por que no existe por parte da sociedade a proposio firme de exercer o controle sobre a ao do Estado na custdia de presos. Por isso mesmo, a criao de instituies de controle interno e externo do sistema prisional, que possam realizar o contnuo monitoramento da vida intra-muros, fundamental se desejamos alterar uma cultura de violncia institucional e ar para uma cultura de proteo aos direitos humanos.

Em busca desta nova cultura, a capacitao continuada dos recursos humanos que desempenham a custdia fundamental, sendo tema para o Captulo 6 que versa sobre Capacitao de Pessoal no sistema penitencirio. Vale lembrar que no temos, no Brasil, formao profissional anterior ao o ao emprego dos agentes do Estado envolvidos com a custdia, principalmente dos agentes de segurana penitenciria. Estes so recrutados por mecanismos formais que, na verdade, no logram avaliar conhecimentos ou formao tico-poltica voltados ao desempenhodas funes de segurana. Tudo isto porque no temos, ainda, o cargo de agente de segurana penitenciria ocupado por um profissional. O que existe o detentor de um ofcio e a proposta aqui apresentada a da profissionalizao para a rea de segurana penitenciria, a ser desenvolvida como uma poltica pblica de educao. Ao lado disto, discutiremos a necessidade da capacitao continuada a ser realizada por Escolas de Formao Penitenciria nos estados, tanto para agentes, quanto para os demais profissionais da assistncia.

O Captulo 7 trata de um tema muito delicado: a gesto de recursos humanos no mbito do sistema penitencirio. Hoje, a maior parte dos sistemas penitencirios estaduais no dispem de planos de cargos e salrios. Tal situao produz graves conseqncias no gerenciamento de pessoal. Alm desta falta de definio quanto projeo do futuro funcional dos servidores, acrescem as ms condies de trabalho, vivenciadas em ambiente em que so constantes as situaes de emergncia e risco. Carecemos de uma poltica de sade do trabalhador, instrumento usual hoje em toda empresa de mdio e grande porte.Propostas nessas reas fazem parte do Captulo 7.

Alguns temas muito esquecidos e carentes de propostas adequadas tambm sero objeto de discusso do trabalho aqui apresentado: a situao da mulher presa, e de seus filhos em idade de freqncia a creches, e a questo dos egressos diante dos dilemas da reinsero social. O Captulo 8 tratar desses temas. Como a populao prisional masculina significativamente mais numerosa em todos os pases do mundo, as prises so basicamente concebidas para homens e suas regras e regulamentos definidos por homens. A especificidade da mulher presa freqentemente ignorada. As questes de gnero, quando se discute sistemas penitencirios, deve ser tema central das preocupaes de quem istra a privao da liberdade. A questo do egresso penitencirio tambm mereceu ateno neste trabalho. Raros so os programas que objetivam apoiar o indivduo que reencontra a liberdade, embora a legislao seja muito clara a respeito das obrigaes do Estado nesta rea. A reviso de algumas estratgias hoje existentes e propostas no sentido de criar mecanismos de e ao egresso penitencirio fazem parte do Captulo 8.

No Captulo 9 ser discutida a questo da terceirizao de unidades prisionais e da privatizao. Foram realizadas visitas aos estados do Paran e Cear que adotam o sistema que intitulam de terceirizao, mas que no a de completa privatizao dos diferentes servios, inclusive daquele de segurana. Uma anlise da realidade brasileira nessa rea e uma breve discusso mais geral do tema fazem parte desse item. Nas concluses sero revistas, de forma resumida, as propostas contidas ao longo do documento, com a preocupao de enfatizar a necessidade ou no de mudanas legislativas para que se viabilizem as referidas propostas. Dedicaremos, tambm, espao ao tema das alternativas pena de priso no contexto brasileiro e necessidade de mudanas legislativas emergenciais que permitam maior utilizao das alternativas como uma das formas decontribuir para a superao da crise do sistema penitencirio no pas. O Brasil definitivamente no pode se dar ao luxo de encarcerar o infrator que no violento e perigoso. Nunca demais lembrar que um preso no pas custa, por ms, dezessete vezes mais do que um aluno em programas de alfabetizao. Se levarmos em conta que o Brasil convive com a cifra infamante de um milho e quinhentos mil adolescentes analfabetos, no difcil imaginar que precisamos, com urgncia, reservar as prises para o infrator que se constitui em risco concreto segurana da populao.

Nesse sentido, discutiremos, a necessidade de o governo federal desenvolver ampla campanha de esclarecimento da populao quanto ineficcia da pena de priso enquanto instrumento de controle social. Est mais do que na hora de se itir, sem qualquer hipocrisia, que a pena de priso serve para castigar e que a to proclamada ressocializao do infrator no a de uma impostura, ou, como diz Maria Lucia Karan2 de propaganda enganosa de um sistema de justia criminal que foi idealizado para punir o pobre, nada mais do que isso.

O presente trabalho vem acompanhado de trs Anexos. O Anexo 1 constitudo por grficos e tabelas que renem as informaes encaminhadas pelos estados, em resposta ao questionrio elaborado pela coordenao deste trabalho. Ao todo, 27 estados responderam o questionrio, com exceo de Roraima e Paraba. So 61 grficos e 78 tabelas com informaes das mais variadas, desde temas relativos gesto prisional, at dados sobre o perfil dos presos. Integra o Anexo 1 a anlise de todo este material que, na verdade, mapeia a realidade do sistema penitencirio brasileiro nos dias de hoje. Vale ressaltar a importncia do Anexo 1 na medida em que se conhece muito pouco do que vai pelas prises do pas os estados no produzem dados para consulta e, em geral, no esto informatizados.

O Anexo 2 uma avaliao de documentos enviados pelos sistemas penitencirios, a nosso pedido: leis, decretos, portarias, editais de concursos, etc. 14 estados nos encaminharam algum tipo de documentao e consideramos importante reunir e analisar esse material, produzido pelos diferentes estados, de forma a conhecer um pouco como se d a gesto penitenciria pelo Brasil afora. Com isso constituiu-se um banco de dados que pode ser extremamente til para consulta por estados que buscam orientao para elaborar documentos semelhantes. H referncias a modelos de regulamentos penitencirios, a portarias que disciplinam a revista de visitantes, etc.

O Anexo 3 a proposta de criao de uma diviso de sade no DEPEN, considerando que, muito em breve, haver unidades prisionais federais.

Finalmente, importante mencionar que, embora o texto final deste trabalho seja de inteira responsabilidade da equipe que o produziu, alguns especialistas tiveram importante participao em sua elaborao. Ressaltem-se as seguintes contribuies:

1. Na rea da sade, uma equipe da Superintendncia de Sade da Secretaria de istrao Penitenciria do Estado do Rio de Janeiro desenvolveu o Anexo 3, do qual foram retiradas recomendaes constantes dos itens 4.4.2. e 7.3. Para a relao dos profissionais que contriburam para a elaborao do documento conferir Anexo 3.

2. O item 4.4.3. incorpora sugestes de Julio Ribeiro.

3. O texto que Olga Spinoza elaborou sobre a questo da mulher presa encontra-se reproduzido no item 8.1. e 8.1.1.

4. A questo das creches um resumo do texto que Claudia Stella preparou a pedido da coordenao deste trabalho.

5. O item 8.2. , tambm, um resumo do texto que Milton Julio de Carvalho Filho redigiu a nosso pedido.

6. O captulo 9, Privatizao no sistema penitencirio, incorpora o texto que Augusto Thompson elaborou, tambm a nosso pedido.

2. Panorama Geral do Sistema Penitencirio Brasileiro em Nmeros

2.1. A Evoluo da Populao Carcerria

Existem dados razoavelmente confiveis para o crescimento da populao carcerria no Brasil entre os anos de 1995 e 2003, quando o nmero de presos por 100.000 habitantes cresceu 84%, como demonstra o Grfico 1, abaixo. Considerando-se o crescimento da populao carcerria em outras partes do mundo, percebe-se que tal nmero bastante acentuado. Ao longo dos anos 1990 o crescimento mdio do nmero de presos variou entre 20 e 40% nos mais diversos pases. No entanto, alguns pases das Amricas tiveram crescimento muito maior: Estados Unidos, Mxico, Argentina, Brasil e Colmbia, viram sua populao carcerria crescer entre 60 e 85%. 1 De maneira geral, os especialistas sustentam que o crescimento da populao prisional ao redor do mundo no guarda qualquer relao com as taxas de criminalidade. Ou seja, o nmero de presos no cresceu porque havia mais infratores cometendo crimes. As taxas de encarceramento por 100.000 habitantes aumentaram, basicamente, porque os diferentes pases adotaram legislaes mais duras em dois momentos: na condenao (impondo penas mais longas) e na liberao de presos (limitando os benefcios que abreviavam as penas). Voltaremos a esse assunto no Captulo 9.

Grfico 1. Crescimento da populao carcerria no Brasil - 1995 a 2003

Fonte: Para o Rio de Janeiro: DESIPE; para So Paulo: Sistema istrao Penitenciria; para outros estados: Ministrio da Justia. Para o ano de 2003 foram utilizados os dados colhidos por este trabalho.

2.2. A Evoluo do Nmero de Presos, Vagas e Dficit

Considerando-se o somatrio do nmero de presos nos sistemas penitencirios estaduais e aqueles abrigados em delegacias policiais, ainda de acordo com dados do Ministrio da Justia, o Brasil ou de 148.760 presos em 1995 para 284.989 em 2003. Houve, no mesmo perodo, um esforo muito grande de gerao de novas vagas, tendo sido criadas 112.132 novas vagas em dezenas de unidades prisionais pelo pas afora. amos, assim, de 68.597 para 180.726 vagas. No entanto, a despeito do investimento de recursos considerveis, nos diferentes estados, para a construo dos novos estabelecimentos, o dficit de vagas hoje muito maior do que em meados dos anos 1990. De acordo com os nmeros do Ministrio da Justia, o dficit, em junho de 2003, era de 104.363 vagas. Vale ressaltar que este assunto ser tambm retomado no Captulo 9 e, por ora, basta que se registre a dimenso do problema.

Grfico 2. Populao carcerria, nmero de vagas e dficit de vagas- 1995 a 2003

Fonte: Ministrio da Justia

1.2. Anlise das Informaes dos Estados

No Anexo 1 ao presente trabalho, podem ser encontrados o modelo do questionrio que foi encaminhado aos estados e a ntegra da anlise de todas as informaes geradas pelo referido instrumento, relativas ao contedo de 68 grficos e 78 tabelas. O material a seguir um sumrio desse conjunto de informaes, cabendo recomendar que os resultados sejam considerados com cautela, na medida em que, a despeito do esforo de crtica dos dados e checagem de muitos deles com os diferentes estados, ainda se constatam algumas inconsistncias. H informaes truncadas e h dados faltosos. Os estados no possuem dados informatizados e, em sua maior parte, muitas informaes foram coletadas exclusivamente para este trabalho. Embora, ao longo do Anexo 1, sejam apontados diversos problemas com os dados, procuraremos aqui, a ttulo de sumarizar os resultados, cobrir as questes mais gerais e menos contaminadas por incongruncias. Vale ressaltar que os dados referem-se ao ano de 2003.

Segundo as informaes coletadas, o Brasil tinha, em novembro de 2003, 302.495 presos, dos quais, 227.670, ou 75,3%, em unidades dos sistemas penitencirios e 74.825, ou 24,7%, em delegacias policiais. De acordo com a lei, xadrezes de delegacias no esto destinados ao abrigo de presos, a no ser pelo tempo necessrio para lavratura de um flagrante e identificao;

O nmero de presos abrigados em delegacias de polcia muito grande em diversos estados. Em trs estados mais de 50% dos presos esto fora dos sistemas penitencirios e em sete estados mais de 30% dos presos esto em delegacias, em flagrante desrespeito legislao do pas;

As mdias mensais de novos ingressos nos sistemas penitencirios so muito altas. Em 10 estados a mdia mensal de novos ingressos superior a 5% do total da populao carcerria abrigada nos sistemas penitencirios, o que, bviamente, inviabiliza qualquer tentativa de planejamento estratgico conseqente da poltica penitenciria;

Comparando-se as mdias mensais de novos ingressos e de liberaes (seja por trmino de pena, liberdade condicional ou desinternao, esta no caso dos inimputveis), percebe-se que os primeiros equivalem a quase o dobro do nmero de liberaes. Ou seja, o sistema penitencirio funciona como um verdadeiro funil, o que explica o crescimento do nvel de superlotao ao longo dos anos, a despeito da criao de milhares de novas vagas, como j mencionado;

Nos sistemas penitencirios, cerca de 70% dos presos esto condenados e o restante aguarda julgamento, o que pode ser considerado aceitvel segundo mdias internacionais;

75,8% dos presos nos sistemas penitencirios cumprem pena em regime fechado, aproximadamente 13% em regime semi-aberto e 2,7% em regime aberto, o que parece indicar rigor do judicirio na aplicao da lei e mesmo o endurecimento da legislao.

36% dos presos que se encontram em delegacias policiais j esto condenados, contrariando diplomas legais do pas e internacionais;

Mais de 4.000 presos, condenados nos regimes semi-aberto e aberto, cumprem pena em delegacias policiais, estando impossibilitados de usufruir dos benefcios que a lei faculta a condenados nesses regimes, como o trabalho externo e as visitar ao lar;

Em 20% dos estados houve a criao de Secretarias de istrao Penitenciria para gerir os sistemas penitencirios estaduais, demonstrando a crescente importncia dessa rea da istrao pblica, sempre marcada por crises e convivendo com uma populao carcerria crescente;

25% dos estados no possuem Regulamento Penitencirio. Ora, a Lei de Execuo Penal data de 1984 e deveria ter sido regulamentada a seguir, por todos os estados. O fato de 25% dos estados, depois de 20 anos, ainda no contarem com tais instrumentos de gesto, constitui-se em fato muito grave. E, pior ainda, apenas 50% dos estados contam com manuais de atribuies das diferentes funes nos sistemas penitencirios. Tudo isto est a indicar que a improvisao parece ser a marca da gesto prisional em muitos estados do pas;

42% dos estados tm convnio com o SUS na rea do sistema penitencirio. Tomando-se como referncia o estado do Rio de Janeiro, o primeiro a estabelecer convnio com o SUS para o Sistema Penitencirio, ainda em 1992, lamentvel constatar que, mais de dez anos depois, ainda pequeno o nmero de estados que recebem verbas do Ministrio da Sade para atender s necessidades de assistncia sade dos presos;

94,4% da populao carcerria constituda de homens e 4% de mulheres, o que se aproxima s mdias internacionais;

A populao carcerria muito jovem: 18,3% tm entre 18 e menos de 25 anos e 23,2% dos presos tm entre 25 e menos de 30 anos. Acompanhando uma tendncia, tambm mundial, a populao de presos vem apresentando um perfil cada vez mais jovem;

A populao carcerria brasileira apresenta nvel de escolaridade muito baixo. 70% dos presos no completaram o 1 grau e, o que pior, 10,4% dos presos so analfabetos;

Quanto aos artigos de maior condenao, 23,9% dos presos esto condenados no Art.157 (roubo); 10,5% no Art. 12 (trfico de entorpecentes); 9,1% no Art. 155 (furto); e 8,9% no Art. 121 (homicdio);

Quanto ao tamanho da pena, 15,7% dos presos foram condenados a penas de 1 a 4 anos; 20,2% dos presos foram condenados a penas de 5 a 8 anos; e o restante, ou seja, 64%, foram condenados a penas de 9 anos ou mais, o que indica o rigor do Judicirio na aplicao de uma legislao, por si mesma rigorosa;

Em 17% dos estados no h controle do trmino de pena dos presos e, o que pior, entre os estados que o fazem cerca de 32% no tm esse controle informatizado, o que nos leva a supor que muitos presos permanecem privados da liberdade para alm dos prazos legais, no apenas no que se refere a penas cumpridas, como obteno do livramento condicional;

Apenas 17,3% dos presos esto envolvidos em alguma atividade educacional. Levando-se em conta que 70% dos presos no terminaram o 1 grau e que cerca de 10% so analfabetos, bvio que os sistemas penitencirios no parecem estar interessados em alterar esse quadro. Ademais, considerando que 83,3% dos estados mantm convnios com as Secretarias de Educao para o desenvolvimento de atividades educacionais, o quadro resulta ainda mais absurdo;

Apenas 26% dos presos esto envolvidos em atividades laborativas o que, no mnimo, limita a possibilidade da remio da pena pelo trabalho (um dia trabalhado = menos trs dias de pena), o que se constitui em direito do preso, alm de refletir a histrica incompetncia do Estado brasileiro em prover trabalho ao preso. E, o que pior, em muitos estados menos de 10% dos presos trabalham. Se muitos cometeram crimes por jamais terem aprendido um ofcio ou, por inmeras circunstncias da vida, jamais terem desenvolvido o gosto pelo trabalho, os sistemas penitencirios fazem muito pouco para mudar tal estado de coisas;

Apenas 20% dos presos condenados em regime semi-aberto trabalham fora dos muros, mas 76% tm autorizao para visitar suas famlias;

70% dos presos recebem visitas e 27 % recebem visita ntima. Vale ressaltar que 36% dos estados afirmaram que autorizam visitas ntimas entre parceiros homossexuais.

H mais de 2.000 presos comprovadamente portadores do vrus HIV+ no sistema penitencirio brasileiro. Considerando-se que, de acordo com orientao da Organizao Mundial de Sade, a checagem obrigatria vedada, pode-se imaginar que este nmero seja muito mais alto;

Cerca de 88% dos estados informaram que h distribuio regular de material de higiene nos seus sistemas penitencirios e 40% sustentam que distribuem vesturio e roupa de cama. Vale ressaltar que em nossas visitas a diferentes estados foi constatado que, mesmo aqueles que eventualmente distribuem tais itens, no o fazem regularmente.

Aproximadamente 50% dos sistemas penitencirios estaduais no contam com creches para os filhos pequenos de mulheres presas, o que contraria a Lei de Execuo Penal;

Em 60% dos estados h censura correspondncia, em desrespeito Constituio Brasileira;

Em 82,6% dos estados h servidores desviados de funo, o que aponta para uma grave distoro dos sistemas penitencirios. Historicamente, se realizam muito mais concursos para agentes de segurana penitenciria do que para as reas istrativa e tcnica (advogados, psiclogos, assistentes sociais, mdicos, etc). O resultado so carncias profundas em determinadas reas que acabam supridas por quem fez concurso para agente de segurana penitenciria e revela aptido para tal ou qual tarefa, ou mesmo possui diploma universitrio que permite o exerccio desta ou daquela profisso dentro dos muros;

Nos diferentes sistemas penitencirios, policiais militares participam das atividades de formas diversas. Em 45,8% dos estados, policiais militares dirigem os sistemas penitencirios e em 66,7% dos casos h policiais militares dirigindo unidades prisionais. Em cerca de 80% dos estados a polcia militar que faz a escolta de presos e em todos os estados, exceo de So Paulo, so policiais militares que se responsabilizam pela segurana externa das unidades;

Apenas 20% dos estados contam com Escolas de Formao Penitenciria, o que revela o absoluto descompromisso com a formao e a capacitao continuada do pessoal penitencirio;

Em 70,8% dos sistemas penitencirios no h planos de cargos e salrios, o que aponta para o improviso em que se d a gesto prisional;

Apenas 16,7% dos estados contam com Patronatos, indicando que a questo do egresso no considerada uma questo importante. Muito ao contrrio, os sistemas penitencirios apenas se ocupam daqueles privados da liberdade, e se ocupam mal, como est demonstrado pelos nmeros aqui relatados, no havendo qualquer compromisso em apoiar quem sai da priso;

Em 66,7% dos estados j se encontra a terceirizao de uma srie de servios, notadamente daqueles relacionadas com a feitura e distribuio de alimentao aos presos.

Em 68% dos estados h projetos em parceria com a sociedade civil;

Em 72% dos estados os sistemas penitencirios identificam e separam presos por faces, indicando que o Estado est longe de exercer controle efetivo sobre as unidades prisionais. E, o que pior, sabe-se que, freqentemente, a identidade com determinado grupo acaba por materializar-se a partir da provocao do gestor prisional;

39% dos estados no tm Conselhos da Comunidade e, onde tais Conselhos existem, os mesmos so atuantes, fazendo monitoramento das unidades prisionais, em apenas 52% dos casos;

Em 28% dos estados no existe Defensoria Pblica, sendo a assistncia jurdica aos presos muito comprometida;

Em 24% dos estados os castigos e recompensas no esto regulamentados.

Em apenas 88% dos estados havia, em novembro de 2003, CTCs constitudas de acordo com a LEP;

Houve mais de 4.000 fugas no sistema penitencirio brasileiro no ano 2003;

303 presos foram assassinados por outros presos nos sistemas penitencirios estaduais. Ora, considerando-se que homens e mulheres privados da liberdade encontram-se sob a responsabilidade do Estado, gravssimo constatar que as mortes acontecem em propores alarmantes e rigorosamente nada se faz, no se ouvindo falar de indenizaes s famlias desses presos;

50% dos sistemas penitencirios no contam com Corregedorias, rgo de controle interno por excelncia, que deveria necessariamente fazer parte da estrutura de qualquer sistema penitencirio estadual. Considerando-se os nveis de corrupo e violncia, de irregularidades e ilegalidades de toda ordem, que grassam nas prises do pas, indesculpvel que no se trate de criar Corregedorias para lidar com tais problemas.

36% dos estados alegaram ter Ouvidorias, o que, no mnimo, surpreendente, se levarmos em conta os dados do tem anterior. Ouvidorias so rgos de controle externo e seriam necessrias anlises cuidadosas sobre o funcionamento de tais Ouvidorias para que as mesmas pudessem ser consideradas efetivos rgos de controle externo, ao invs de estratgias dos prprios sistemas penitencirios, com independncia muito limitada e relativa;

91,7% dos sistemas penitencirios estaduais contam com detectores de metal em suas unidades e 8,3% com bloqueadores de telefones celulares. A grande quantidade de detectores de metal, basicamente de portais para tal fim, esto a indicar a possibilidade de reviso dos mtodos empregados na revista dos visitantes, sempre humilhantes e vexatrios;

Em cerca de 30% dos estados as revistas dos visitantes no se encontram regulamentadas, o que, obviamente, d margem a muita arbitrariedade.

3. Requisitos para uma Poltica Penitenciria

3.1. O Estado e a Poltica Penitenciria

A poltica penitenciria no Brasil, enquanto poltica pblica, responsabilidade do Estado, inserindo-se nas chamadas polticas de segurana pblica. E, para se compreender os dilemas da poltica penitenciria preciso rever, mesmo que brevemente, como se constituiu o Estado brasileiro, especialmente no sculo XX. preciso que nos voltemos para a histria recente do Brasil, principalmente dos anos 1930 at hoje, perodo em que ocorrem grandes mudanas no cenrio brasileiro, decorrentes das condies mais gerais do desenvolvimento do capitalismo mundial.

Nos anos 1930, o Brasil era um pas eminentemente rural, com 70% de sua populao vivendo no campo, vinculada produo agrcola e pecuria. Cinqenta anos mais tarde, constatava-se o inverso: 70% da populao habitava as cidades e 30% o campo. Assim, at 1930, a economia brasileira centrava-se na produo e comercializao de produtos agrcolas. A partir de ento, a industrializao nas grandes cidades transforma o pas, em 1980, na oitava economia do mundo. O Brasil torna-se uma potncia industrial mdia, produzindose ao longo do sculo uma mudana radical no perfil da sociedade: gradualmente, a fora de trabalho desloca-se do campo para as cidades, confluindo em cintures urbanos de migrantes, a grande maioria se inserindo no mercado industrial, trazendo consigo o analfabetismo, o desraizamento cultural, ao lado da expectativa de uma vida melhor na cidade grande. Entretanto, o grande sonho foi sendo cotidianamente desmontado, com a gradativa ausncia do Estado na promoo de o daquela populao e de suas geraes descendentes a direitos sociais bsicos como educao, sade, habitao e saneamento, entre tantos outros. Para se compreender o caos urbano dos cintures de pobreza, formados nos ltimos cinqenta anos, preciso lembrar o Estado que tnhamos e qual o seu legado.

A marca fundamental do Estado brasileiro no perodo 1920-1980 seu carter desenvolvimentista (lembremos o governo JK e os cinqenta anos em cinco), conservador, centralizador e autoritrio. O Brasil no vivenciou o chamado Estado do Bem Estar (Welfare State) europeu. O Estado brasileiro se notabilizou como promotor do desenvolvimento, buscando consolidar o processo de industrializao e tornar o Brasil uma grande potncia. Implcito, pois, estava o papel do Estado de promover a acumulao privada na esfera produtiva.

Na sua funo desenvolvimentista, o Estado no buscava alterar a qualidade das relaes na sociedade, marcada desde o perodo colonial pela escravido, pelo autoritarismo das istraes pblicas e das elites em relao populao. Do ponto de vista poltico, o Estado no alterou as relaes de explorao entre as classes, de subjugao dos pobres lei, e da distribuio de benesses s elites dirigentes e aos mandatrios da economia. A essncia das polticas pblicas gestadas pelo Estado est voltada para o crescimento e a acumulao econmica, acompanhando o movimento do capitalismo internacional, nos seus avanos e crises.

E, ao lado de seu carter desenvolvimentista, o Estado brasileiro revela-se profundamente centralizador e conservador. Vem de longe a tradio do Estado brasileiro de assumir muito mais o objetivo de crescimento econmico e, muito menos, o da proteo social do conjunto da sociedade. O Estado centralizador busca fazer, produzir, conservando as relaes sociais estabelecidas. No se construiu um Estado regulador das relaes sociais, proposto a dialogar e negociar com a sociedade. E, alm de centralizador , tambm, autoritrio: tivemos duas longas ditaduras o perodo Vargas e a ditadura militar inaugurada com o golpe de 1964.

Considerando seu carter autoritrio, o Estado no necessitou legitimar-se perante maior parte da sociedade. As questes sociais decorrentes, desde o incio do sculo ado, do processo de industrializao e da prioridade econmica, foram se acumulando e tratadas, na maior parte das vezes, como caso de polcia. As ditaduras produziram uma vertente ideolgica de segurana pblica caracterizada pelo combate aos subversivos ordem oficial instituda, transformando-se, ao longo das ltimas dcadas, em combate aos pobres. O chamado Estado fazedor promoveu o desenvolvimento da infraestrutura de portos, rodovias, telecomunicaes e siderurgia, rea que exige investimento substantivo, para oferecer ao setor produtivo privado as bases para sua expanso. Alm de implementar e conservar tal infraestrutura, acabou por privatizar grande parte daquilo que foi construdo com recursos pblicos.

Ao lado da grande tarefa desenvolvimentista, o Estado fazedor ocupou-se, diante de circunstncias conjunturais, de regular os interesses contrrios a seu projeto. No Governo Vargas, por exemplo, o Estado estabeleceu as regras de convivncia entre capital e trabalho, regulamentando tais relaes atravs da legislao trabalhista. A criao de inmeros rgos de assistncia ao operariado, como o SESC, SENAI, SESI, Institutos de Aposentadorias e Penses (embrio do INSS), so o legado getulista concebido para dirimir conflitos nasrelaes dos trabalhadores com o patronato.

Ao longo dos ltimos vinte anos, acentuaram-se as chamadas polticas compensatrias, de reparao e atendimento s necessidades bsicas de sobrevivncia da populao pobre, das quais so exemplo o ticket do leite no Governo Sarney, cestas bsicas, cheque cidado, vale gs, e tantos outros, sem que se tenham constitudo polticas pblicas que realmente contribussem para alterar significativamente a condio de vida desses indivduos.

A partir de 1988 temos uma Carta Constitucional com proposies inclusivas de toda a populao, por exemplo, na questo da sade, com o universal rede pblica, ao contrrio do que acontecia anteriormente, quando os recursos de sade estavam destinados ao cidado trabalhador com vnculo empregatcio. O Sistema nico de Sade, como poltica pblica, trouxe a possibilidade de tratamento da populao, sem qualquer categorizao, e a Carta de 1988, promulgada ao longo do perodo de redemocratizao do pas, prope as bases para um novo Estado Democrtico de Direito. A sociedade brasileira recupera na dcada de 1980 um conjunto de direitos civis e polticos que possibilita a mobilizao e luta pelo o a direitos sociais e pela busca da diminuio da distncia que separa as classes, as regies e os bairros de uma cidade, como se fossem mundos excludentes quanto qualidade de vida e condies de sobrevivncia.

Assim, torna-se claro que, para o Estado Democrtico de Direito se consolidar, muito significativa a luta pela efetividade das leis. Enfrentamos o desafio de fazer com que as leis no se efetivem apenas para os pobres quando se trata, por exemplo, de pun-los ou enquadrar suas aes ilcitas. A efetividade de um regime democrtico, pautado sob o ponto de vista formal, no seu aparato legal, avana no sentido de estabelecer no apenas quem so os portadores de direitos de cidadania, mas garantir o o universal e includente a esses direitos. E a garantia do o aos direitos requer a gesto de mecanismos de controle social para a sua efetivao.

Guilhermo ODonnell3 discute a no efetividade das leis nos pases da Amrica Latina e sustenta que o que a populao conhece o Estado Democrtico que pode estar presente na forma de prdios e funcionrios pagos pelos oramentos pblicos. Mas, o Estado legal est ausente: qualquer que seja a legislao formalmente aprovada existente, ela aplicada de forma intermitente e diferenciada.

Ao longo da dcada de 1980, sob a gide da liberdade poltica, parte da populao a claramente a reivindicar direitos. Do ponto de vista econmico, ingressamos na dcada de 1990 com dois teros da populao fora do mercado formal de trabalho, vivendo tambm o pas a grande crise mundial do capital e seus corolrios: a globalizao, a reestruturao produtiva e a financeirizao da riqueza, com a agudizao das questes sociais. Tudo isto, evidentemente, perado pela hegemonia da ideologia neoliberal. Alguns ditames prevalecem, tais como: Quanto menos Estado e quanto mais mercado melhor, ou ainda: Quanto mais individualidade e quanto menos coletividade melhor. Dentro desta tica neoliberal redefine-se o papel do Estado: este recolhe-se da produo. H menos Estado na regulao e, portanto, h mais presena do mercado. Em conseqncia, o Estado enxuga a sua responsabilidade na promoo e gesto de polticas pblicas e, em substituio, mais mercadorias e servios substitutivos surgem no mercado. A sade pblica transforma-se na mercadoria Planos de Sade, a educao tratada como mercadoria, ada atravs da variedade de cursos pagos. O Sistema Penitencirio, igualmente, j encontra na sua gesto servios vendidos ao Estado por empresas privadas.

No Brasil, nos estados do Paran, Acre e Cear os governos compram os servios de custdia e assistncia aos presos de empresas executoras da pena privativa de liberdade. O Estado se desonera, pois, de sua funo precpua, contrariando inclusive a legislao internacional. A ausncia, ou qui, a fragilidade das polticas penitencirias, como instrumentos do Estado para operar a Lei de Execuo Penal no Brasil se reportam, pois, aos diferentes aspectos cultuados ao longo da histria do Estado brasileiro na conduo das polticas pblicas: autoritarismo e maus tratos fsicos de um lado, escassez de investimentos pblicos em programas de capacitao profissional, de educao formal, de trabalho e ocupao da mo de obra ociosa de outro, alm da falta de manuteno dos prdios das prises e da capacitao continuada dos funcionrios, do abandono da assistncia sade, jurdica e material. Portanto, as prises reproduzem, no seu interior, a mesma irresponsabilidade do Estado em relao populao como um todo, quadro agravado em relao aos presos face ao fato de sofrerem da excluso moral peculiar aos transgressores das normas sociais. Insista-se que o Estado mnimo brasileiro tornou estrutural a excluso social de grande percentual de nossa populao. So mais de 40 milhes de brasileiros vivendo abaixo da linha da pobreza. Tal conjuntura acelera ainda mais a histrica concentrao de renda em nosso pas, onde 1% dos mais ricos detm mais de 35% de nossas riquezas, enquanto os 10% mais pobres detm somente 1,1% da riqueza nacional. Esta imobilidade social sistmica faz da populao mais pobre uma massa de sub-cidados, sem possibilidade de se empregarem.

Nasce uma nova classe perigosa4 , aqueles que sobraram da sociedade de mercado. Essa massa de excludos formado por pobres, sendo uma maioria de jovens no brancos, que sem direitos sociais, vai superlotar delegacias de polcia, manicmios, abrigos de menores, ruas e presdios. Segundo Zigmunt Bauman, a pobreza no mais um exrcito de reserva de mo de obra, tornou-se uma pobreza sem destino, precisando ser isolada, neutralizada e destituda de poder.5

A dcada de 90 traz grandes avanos democrticos para o Brasil, porm a conquista da democracia no resolve, sozinha, os entraves econmicos e sociais mais agudos da sociedade. Foi neste perodo que o Brasil se consolidou como pas mais desigual do mundo. A ideologia dos modelos de segurana pblica, por exemplo, continuam pautados pela necessidade de preservao da ordem excludente, atravs de rgidos instrumentos de controle social. A manuteno da ordem vigente se foca na necessria visibilidade de um inimigo pblico. O que amos a assistir a mais absoluta criminalizao da pobreza. Como diz Loic Wacquant6 , a manuteno da ordem de classe e a manuteno da ordem pblica se confundem.

Manter isolados os novos inimigos pblicos da sociedade sinal de eficcia do sistema penal, consolidando-se atrs das grades a pena de morte social. As prises so sempre reflexos das sociedades que as produzem e o abandono e ausncia de polticas pblicas so espelho da relao do Estado com as populaes pauperizadas.

3.2. As Instituies da Execuo Penal

A Lei 7.210 estabelece quem participa da execuo penal: O Conselho Nacional de Poltica Criminal e Penitenciria (CNP), o Juzo da Execuo Penal (as Varas de Execues Penais), o Ministrio Pblico, o Conselho Penitencirio local, o Departamento Penitencirio Nacional (DEPEN), os Departamentos Penitencirios locais (na esfera estadual), o Conselho da Comunidade e os Patronatos. exceo do ltimo, todos estes rgos tm, entre outras funes, a de fiscalizar a aplicao da Lei de Execuo Penal, o que raramente feito. Nem os rgos federais, nem os rgos locais que participam da execuo penal, visitam regularmente as unidades prisionais, cobrando das autoridades responsveis pelos sistemas penitencirios a implementao da lei.

Se nos detivermos nas funes precpuas do Conselho Nacional de Poltica Criminal e Penitenciria e no Departamento Penitencirio Nacional, ambos da esfera do Poder Executivo Federal e inseridos no Ministrio da Justia, perceberemos que a relao entre ambos se consolida na LEP. O primeiro responsvel por propor a poltica criminal e penitenciria e pela insero de metas e prioridades dessa poltica nos planos nacionais de desenvolvimento. O Departamento Penitencirio Nacional, por seu turno, o rgo executor da poltica estabelecida pelo Conselho Nacional de Poltica Criminal e Penitenciria. Cabe lembrar o que o Plano Nacional de Segurana Pblica, do ento candidato Luiz Incio Lula da Silva, recomenda em relao ao Departamento Penitencirio Nacional/DEPEN (pg. 74): aprimoramento do Departamento Penitencirio Nacional transformando-o em rgo que realmente cumpra suas finalidades, com dotao financeira e recursos humanos adequados. De acordo com a Lei de Execuo Penal (Captulo VI, Seo 1), o DEPEN rgo executivo da Poltica Penitenciria Nacional com responsabilidade, entre outras, de fiscalizar periodicamente os estabelecimentos penais(o que nunca feito) e de assistir tecnicamente as unidades federativas na implementao dos princpios e regras estabelecidos neta Lei (o que absolutamente ignorado).

Em relao ao Conselho Nacional de Poltica Criminal e Penitenciria, diz o Plano Nacional de Segurana Pblica (pg. 74): aprimoramento do Conselho Nacional de Poltica Criminal e Penitenciria (CNP) no sentido de que cumpra suas finalidades. De acordo com a Lei de Execuo Penal, o CNP tem a responsabilidade de propor a poltica criminal e penitenciria do pas e, no entanto, seus membros am a quase totalidade do tempo .... emitindo pareceres sobre projetos de lei em tramitao no Congresso Nacional que raramente se transformam em realidade. Uma de suas obrigaes, a de fiscalizar os estabelecimentos prisionais do pas, ignorada.

Ora, tanto o DEPEN, quanto o CNP, tm a obrigao de fiscalizar as unidades prisionais do pas, cobrando adequao Lei de Execuo Penal. Evidentemente, o poder de coero desses rgos s poder ser efetivo quando o governo federal puder dispor de verbas significativas para a rea. preciso prover o DEPEN de recursos humanos e materiais adequados, alm de verbas considerveis para auxiliar os estados, no s na construo de unidades prisionais, mas, principalmente, no assessoramento tcnico da gesto prisional, para que se possa pensar no estabelecimento de uma poltica penitenciria respeitadora dos direitos dos presos, orientada por Braslia.

No possvel itir, por exemplo, que recursos do Fundo Penitencirio Nacional (FUNPEN) sejam contingenciados, por ser esta uma verba que legalmente est destinada, com exclusividade, ao sistema penitencirio. Como tambm lembra o Plano Nacional de Segurana Pblica, no ano 2000 mais de R$ 200 milhes do FUNPEN foram contingenciados, em flagrante desrespeito legislao. Por outro lado, estabelece o Projeto (pg. 74) que devem ser impostas condies especficas e rigorosas na liberao de verbas federais para os sistemas penitencirios: Os estados devero demonstrar que esto desenvolvendo esforos, por exemplo, na rea do respeito aos direitos humanos e aos direitos sociais, combatendo a tortura e os espancamentos e oferecendo condies mnimas de subsistncia para a populao carcerria.

Em relao aos outros rgos da execuo penal, vale lembrar que tampouco seus representantes fiscalizam, regularmente, as unidades prisionais. Embora no se pretenda, aqui, discutir com maior detalhe a atuao desses rgos, importante ressaltar que, com o advento da Lei 10.792, de 1 de dezembro de 2003, os Conselhos Penitencirios locais deixam de ter qualquer responsabilidade sobre a concesso de livramentos condicionais.

Assim sendo, ficam dezenas de profissionais que atuam nesses conselhos, pelo pas afora, com tempo ocioso que pode ser dedicado, quase que integralmente, fiscalizao dos sistemas penitencirios. Mais adiante, no Captulo 5, voltaremos ao tema da fiscalizao e suas vantagens.

4. A Execuo Penal: o Lugar dos Custodiadores

4.1. A Gesto Prisional

O mandato da sociedade relativo forma de punio instituda pela pena privativa de liberdade encontra, no aparato poltico ideolgico e burocrtico do Estado, as condies necessrias para gerenciar os sujeitos confinados dentro dos muros das prises. Este mandato vai se alterando de acordo com o quadro de criminalidade do pas. Na ltima dcada, o clamor pblico pelo endurecimento das penas e dos regimes prisionais tem sido uma constante no cenrio brasileiro e os meios de comunicao tm contribudo para o aumento da sensao de insegurana. Principalmente os crimes cometidos por adolescentes e jovens adultos recebem extensa cobertura na mdia e so utilizados para reforar a necessidade do agravamento das medidas scio-educativas e das penas. E, como dizem os juristas, o resultado a edio de novas leis que, no seu conjunto, podem ser definidas como legislao do pnico que nenhum impacto tm sobre as taxas de criminalidade.

Na dcada de 1990, surge, por exemplo, a Lei dos Crimes Hediondos: penas mais altas e rigor maior na concesso de benefcios legais, como o livramento condicional. Em 2003, o movimento para endurecer os regimes disciplinares vitorioso, culminando com a edio da Lei n 10.792, de 1 de dezembro daquele ano, que inclui o Regime Disciplinar Diferenciado, j experimentado em vrios estados. Isto tudo posto, o grande desafio que se impe aos sistemas penitencirios no Brasil resume-se ao seguinte: como a gesto prisional pode pugnar pela garantia dos direitos fundamentais constantes na legislao internacional e nacional, num espao institucional coercitivo e autoritrio?

A primeira questo que se coloca gesto prisional de que ela istra uma relao de custdia, vivida por presos e custodiadores em trs regimes de pena: o fechado, o semi-aberto e o aberto. Face esta diferenciao dos regimes, a gesto prisional adquire funes especficas, embora evidencie-se, em todos os regimes, o dilema da falta de autonomia dos presos na relao com seus custodiadores. Estes, agentes do Estado, esto presentes para garantir a ordem, utilizando-se dos instrumentos de disciplina e de vigilncia direcionados ao produto esperado pela istrao pblica e pela sociedade: a segurana individual e coletiva, intra e extra-muros. Para a obteno desse produto, a gesto prisional trabalha sobre um grande tabuleiro composto por peas burocrticas: uma imensido de portarias, regulamentos, ordens de servio formais e um conjunto de crenas e valores que agilizam procedimentos informais, reforando a cultura prisional.

Como contraponto falta de autonomia dos presos, surge outro fenmeno: a organizao dos presos em faces, revelia da istrao pblica ou com seu consentimento. o lado perverso da conquista de autonomia: os presos se auto-denominam membros de determinada faco. Dentro do grupo, constrem regras tpicas de disciplina, prmios e castigos, alm de estabelecerem formas peculiares de governo que, freqentemente, colidem com os interesses da gesto prisional ou propiciam alianas esprias com os custodiadores.

A separao dos presos por faces foi instituindo ao longo dos anos uma forma oficiosa de classificao e, em alguns estados do Brasil, a a ser o critrio fundamental para a lotao dos presos nas unidades prisionais. Esta delicada questo tem sido um grande desafio para os gestores, uma vez que so legalmente responsveis pela integridade fsica dos presos. Romper, pois, com esta auto-classificao de pertencimento s faces significa, de um lado, no compactuar com uma forma de organizao com razes ilegais, de outro, expor os custodiados morte e violncia. A organizao das faces com sua conexes extra-muros veio contribuir com novas formas de interao entre funcionrios e presos, estabelecendo vnculos de interesse financeiro e agravando formas de maus tratos e violncia letal.

Tal quadro, importante lembrar, agrava o autoritarismo, j que a gesto prisional no carrega, em si, nenhuma tradio de participao democrtica dos presos nas decises dos gestores. Os presos, obrigados a cumprir rotinas dirias impostas ( a hora do banho de sol, a hora da visitao, a hora do atendimento dos servios tcnicos, por exemplo), vo criando suas prprias formas de burlar as normas oficiais. No raro, esta burla se realiza com a aquiescncia de funcionrios, seja em troca de favores e de informaes privilegiadas, ou atravs de dinheiro. Em todas estas circunstncias, o funcionrio corrompido/corruptor, rompe com seu papel de custodiador, colocando em risco a prpria gesto prisional a vida do coletivo, seja de presos ou de companheiros. Diante deste quadro em que grassa a corrupo, o produto final esperado - a segurana individual e coletiva intra e extra-muros resulta altamente fragilizado, a despeito da existncia de adequado aparato fsico ou tecnolgico na unidade prisional.

A gesto prisional, pois, alm das dificuldades mencionadas, tem sob sua responsabilidade= cotidiana istrar a burocracia do confinamento de presos provisrios, condenados ou em medida de segurana, no sentido de satisfazer desde necessidades humanas bsicas (vestir-se, alimentar-se, higienizar-se, ocupar-se) at necessidades existenciais, afetivas e sexuais. Tudo isto requer uma gama de recursos, providncias e estratgias muito especiais, sendo tal gesto bastante diferenciada daquela vivenciada pelos cidados livres, que mantm autonomia e responsabilidade, essenciais para resolver os problemas cotidianos. O desse elenco de situaes o gestor e executor da custdia, na figura de diretores, chefes e funcionrios. Situaes corriqueiras, de carter domstico, como o mau funcionamento na confeco e distribuio da alimentao ou no fornecimento da gua, no so apenas incmodos ou desconfortos, mas podem ser estopim de incidentes prisionais de propores imprevisveis.

Outra questo importante de que se ocupa a gesto prisional refere-se disciplina e s condies de trabalho dos funcionrios. preciso determinar quem se desempenha mais efetivamente em cada rea de responsabilidade, como criar o aos espaos de poder, como istrar o espao do poder, como e quando punir os funcionrios faltosos, como usar punies previstas na legislao ou constante do rol oficioso. Trata-se, por vezes, de istrar interesses diversos como, por exemplo, negociar a carga horria para compatibilizar o trabalho na priso com outros empregos ou servios autnomos. So inmeras as necessidades dos funcionrios e os gestores necessitam de competncia tcnica e habilidade para encaminhar as solues mais adequadas.

No raro, os espaos de gesto so ocupados a partir da presso de grupos polticopartidrios, no contando a maioria dos estados brasileiros com planos de cargos e salrios que disciplinem o o dos funcionrios aos cargos superiores e intermedirios de gerenciamento. Predominam ainda os critrios de relaes amistosas, clientelistas ou de revesamento dos mesmos sujeitos em cargos distintos.

Na gesto dos trabalhadores das prises tem-se ainda demandas significativas, face especificidade do trabalho, tal como a formao profissional dos agentes de segurana, ainda inexistente no Brasil como requisito para isso, assim como a capacitao continuada de todos os profissionais, visando seu desenvolvimento. Outra questo presente nos vrios sistemas prisionais no Brasil refere-se constituio de parcerias com organizaes da sociedade para istrar as penas: so instituies religiosas, universitrias, organizaes no-governamentais ou pblicas, que permitem ampliar a transparncia, a permeabilidade quanto vida intramuros. So organizaes parceiras na prestao de servios de cultura e lazer, assim como no acolhimento de egressos ou de famlias de presos. Estas parcerias se distinguem radicalmente das formas de terceirizao instaladas nos ltimos cinco anos em sistemas prisionais, como o do Paran: o Estado abre mo de sua prerrogativa de uso legtimo da fora e do poder de coero, outorgando-a iniciativa privada.

O trabalho prisional, voltado ocupao e capacitao dos presos, tem-se revelado, do ponto de vista istrativo e burocrtico, praticamente inistrvel pela gesto prisional. Em geral, tal atividade est entregue a fundaes, fundos e at organizaes da sociedade, sem que os gestores diretos da custdia tenham poder decisrio sobre os tipos de atividades de trabalho, escoamento dos produtos para o mercado, reaplicao do capital auferido pela venda dos produtos, etc. A estrutura istrativa de rgos como as fundaes implica, em tese, numa agilidade maior nos negcios, no entanto, a convivncia difcil destes rgos paralelos com o poder decisrio dos gestores prisionais tm obstaculizado a dinamizao do trabalho prisional. Outro desafio de gesto se refere mudana de perfil da populao prisonal, ou seja, nos ltimos dez anos a populao se juvenilizou, trazendo para o ambiente prisional as caractersticas subjetivas prprias do sujeito recm sado da adolescncia: impacincia, onipotncia, dificuldade de obedecer s regras. Por outro lado, a populao de funcionrios, sobretudo no que se refere aos agentes de segurana, tambm se juvenilizou: ter 18 anos completos ou a ser a exigncia dos concursos pblicos. So jovens custodiadores guardando jovens presos!

No que tange custdia dos presos provisrios, a gesto prisional no Brasil no s deixa muito a desejar no sentido de no cumprir o que est prescrito nas Regras Mnimas para o Tratamento de Reclusos, (Regras 84 a 93), como expe dramaticamente os presos a toda sorte de violncias. Nas cadeias pblicas insalubres, a falta de o s vrias assistncias legais a regra. As Regras Mnimas denominam preso preventivo toda pessoa detida ou presa em virtude de lhe ser imputada a prtica de uma infrao penal, detida sob custdia da polcia ou em outro estabelecimento, mas que ainda no tenha sido julgada e condenada. De fato, cada estado brasileiro mantm um grande contingente de presos preventivos fora da gesto prisional dos sistemas penitencirios, alojados sob a istrao das delegacias e cadeias pblicas, excludos das oportunidades de assistncia que lhes so devidas, por vezes cumprindo integralmente suas penas nessas condies ilegais de custdia.

Situaes cotidianas especficas implicam em cuidados especiais da gesto prisional: as mulheres presas, grvidas ou aquelas que tm junto de si seus bebs. Tanto a legislao internacional ( Regra 23), quanto a LEP (Art. 89), dedicam ateno especial s parturientes, s mes e bebs, prevendo-lhes locais especiais com cuidados especficos. Tal condio sempre apresenta dilemas, pois a gesto prisional no Brasil no tem sob sua responsabilidade recursos hospitalares para parturientes, o que demanda o deslocamento da presa grvida e das respectivas escoltas para a rede pblica de sade. Tambm a manuteno de creches junto s unidades femininas implica numa estrutura de recursos materiais e humanos diferenciada, nem sempre disponveis istrao penitenciria. Como se pode perceber, a gesto prisional representa um grande desafio, que nem sempre tem como norte uma poltica penitenciria consistente, a nvel estadual ou federal. O trabalho aqui apresentado, visa detalhar os pontos at aqui discutidos. No entanto, vale lembrar algumas responsabilidades dos gestores prisionais, tanto a nvel micro, quanto a nvel macro.

A nvel micro, necessrio enfatizar que o gestor prisional local, ou seja, os diretores de unidades prisionais, tm a obrigao legal de conceder, regularmente, audincias aos presos. Por outro lado, as reunies de equipe so instrumentos de que dispe o gestor prisional para diluir feudos profissionais, em conflitos de objetivos de trabalho. Tratar das diferenas, dar visibilidade s contradies inerentes execuo da pena, so atribuies do gestor, no seu papel de mediador dos conflitos. A posio de gestor da unidade prisional, face ao acmulo de responsabilidades, nem sempre favorece a aproximao fsica, a circulao pelas dependncias da unidade, a checagem das condies de higiene e de satisfao dos presos e funcionrios. Andar, observar e conversar so formas rias essenciais para conhecer, avaliar e decidir com maior segurana sobre as situaes em curso.

Os gestores dos rgos de istrao penitenciria superior devem construir canais de comunicao com os gestores das unidades finalsticas presdios, penitencirias, casas de custdia, centros de recuperao, etc - atravs de reunies peridicas, de despachos individuais e de visitas. De acordo com o tamanho da estrutura burocrtica estadual do sistema prisional, os gestores da istrao superior devem escolher os instrumentos mais eficazes de comunicao com os rgos da base. Vale ressaltar que quanto mais verticalizada a estrutura burocrtica, mais dificuldades para conhecer, avaliar e decidir com vistas a propor mudanas e a sensibilizar o governo face necessidade de obteno de recursos. A istrao superior necessita criar mecanismos que dem visibilidade problemtica das prises junto ao governo. A publicizao dos dados acerca da populao presa, da populao de funcionrios e a busca de parcerias na sociedade para o fomento da pesquisa, auxiliam a dar transparncia vida intra-muros e construo de argumentos para obteno dos recursos humanos e financeiros que propiciem mudanas na qualidade de vida de presos e funcionrios.

4.2. Segurana e Assistncia: Duas reas em Conflito?

O cotidiano da vida prisional, aos olhos de um observador atento, mas desprovido de conhecimentos acerca desta realidade, assemelha-se ao jogo de cabo de guerra: de um lado, os agentes de segurana, com sua ateno voltada para as aes de manuteno da ordem, em que o desassossego para a consecuo de tal objetivo trazido pelo outro profissional, estabelecido na outra ponta do jogo, que so os profissionais da assistncia. Estes, por sua vez, reclamam freqentemente dos empecilhos ao seu trabalho, trazidos pelos agentes., O conflito est posto e, no discurso de ambos os grupamentos, parece insolvel: uns se colocam como guardies da segurana coletiva e individual, os outros como trabalhadores das diversas formas de assistncia7 , na busca de capacitar o preso para sua futura reinsero social. Lembrando Chauvenet8 , os agentes teriam um papel sujo, enquanto os profissionais da assistncia, um bom papel. Esta discriminao mtua aponta, inicialmente, para uma divergncia de finalidades quanto presena destes grupamentos na execuo da pena privativa de liberdade: enquanto os tcnicos das diversas formas de assistncia necessitam movimentar os presos de suas celas em diferentes horrios para participarem de atividades educativas, religiosas, mdicas e tantas outras, os agentes, responsveis pela circulao, retirada e escolta dos presos no espao da unidade prisional, entendem que os primeiros perturbam a rotina com atividades em demasia e, por vezes, desnecessrias. No jogo de cabo de guerra entre a autoridade e o poder de agentes e tcnicos, figura a direo da unidade como mediadora, interpretando para os subordinados o que considera mais exeqvel em cada momento. No entanto, pode-se apreender esta realidade cotidiana de outra forma: a execuo da pena forjou uma outra forma de punio diferenciada do suplcio em praa pblica, no qual o ato de punir se concretizava com a ao do carrasco.9 Modernamente, os profissionais envolvidos com a execuo penal esto no exerccio da custdia: isto significa uma ao de guarda, proteo dos presos sob responsabilidade dos agentes do Estado, sob determinadas condies reguladas pela legislao internacional e nacional, em que a reproduo da vida seria impossvel sem a ao efetiva de ambos os grupamentos profissionais. As necessidades humanas oriundas da vida em confinamento so especficas e demandam a insero diferenciada do pessoal penitencirio10 na execuo das penas privativas de liberdade. As contradies postas aos objetivos perseguidos por agentes e profissionais da assistncia no podem ser identificados com os objetivos do jogo mencionado: todos se debruam sobre o exerccio de um objeto comum a custdia.

Portanto, as aes de guarda e proteo dos presos no fluem se no estiver em jogo um duplo movimento: ao mesmo tempo que se depende das rotinas de vigilncia (abrir e fechar cadeados, as revistas corporais e de ambientes , as escoltas) para assegurar a ordem e a segurana do ambiente, tambm a satisfao dos presos quanto s suas necessidades vai depender da ao dos profissionais da assistncia. possvel, pois, perceber que uma cadeia segura no s aquela em que todos os equipamentos e agentes de segurana cumprem bem suas finalidades, mas sobretudo onde os presos tm o a seus direitos de assistncia e se sentem contemplados na sua condio de sujeitos submetidos s leis e ao de custdia do Estado. Basta lembrar as reivindicaes mais freqentes manifestas pelos presos em rebelies no Brasil: maior o assistncia mdica e jurdica, tratamento respeitoso a seus visitantes, alimentao suficiente e de qualidade.

Ressalte-se que as competncias do pessoal penitencirio vinculado rea de segurana penitenciria no esto definidos, nem sequer mencionados na Lei de Execuo Penal. J em relao aos profissionais das assistncias assistentes sociais, mdicos, religiosos, educadores - , h diretrizes gerais estabelecidas, acrescidas daquelas relativas assistncia material. Lacuna significativa diz respeito aos psiclogos, que so apenas mencionados na constituio das Comisses Tcnicas de Classificao. Para discutir a capacitao do profissional penitencirio, fundamental que se entenda a questo de ofcios e profisses inseridos na custdia. Os ofcios se revestem de prticas baseadas no conhecimento emprico, que subsidia, por exemplo, o agir dos agentes de segurana e se acumula ao longo das diferentes geraes. um conhecimento transmitido oralmente, com vistas a solucionar situaes imediatas e rotineiras. Portanto, caracterizase pela baixa sistematizao e pelo acentuado pragmatismo. Poucas so as aes do cotidiano dos agentes que aparecem escritas. Quando isto ocorre, so normas istrativas expressas sob a forma de portarias ou resolues, emitidas por autoridade istrativa, visando disciplinar algum assunto na esfera da ao de vigilncia. Na transmisso oral entre as geraes de agentes de segurana reproduzem-se os diferentes vcios da cultura prisional. A repetio das aes ao longo do tempo, sem nenhum respaldo terico-metodolgico face ausncia de sistematizao terica, propicia a cristalizao das verdades inquestionveis diante de qualquer pergunta de um estranho rea. Algumas prticas violadoras da legislao so exemplares no que diz respeito proteo de direitos legais dos presos, como o hbito arraigado do uso da tranca (cela de isolamento), sem nenhum processo disciplinar que o respalde, a intimidao dos presos novatos, ou, ainda, a crena inquestionvel de que a tcnica mais eficaz para evitar a entrada de drogas e armas seja a revista amiudada das partes ntimas dos corpos dos visitantes.

Na perspectiva de fiscalizao e controle da ao anti-tica dos agentes, no se conta com nenhum rgo na sociedade voltado a seu monitoramento, por se tratar de um ofcio, ao contrrio das profisses providas de Conselhos Profissionais. Por ltimo, o ofcio de agente de segurana, como outros na rea da segurana pblica, no dispe de qualquer requisito de profissionalizao para ingresso no cargo, uma vez que no existe no Brasil poltica educacional neste mbito. A profissionalizao possibilita maior sistematizao terico-prtica, alm de referencial tico-poltico, com consecuo clara de objetivos profissionais. As profisses, portanto, dispem do aparato referido. Os profissionais da assistncia, a partir de suas diversas formaes profissionais, esto referenciados em seus Cdigos de tica, sob fiscalizao de seus respectivos Conselhos Profissionais, e tm sua tradio terica construda sobre o acervo das diferentes correntes de pensamento terico de suas disciplinas. No jargo prisional, o termo tcnico sempre se reporta aos profissionais das assistncias, nunca aos agentes, o que significa que no so reconhecidos, por exemplo, como tcnicos da segurana penitenciria.

Para se alterar este quadro, a contribuio governamental mais significativa se refere profissionalizao dos agentes de segurana como pr-requisito ao ingresso no servio pblico. Isto requer a instituio de um aparato educacional profissionalizante, sob o comando do Ministrio da Educao, concomitante criao de legislao de reconhecimento da funo de agente de segurana penitenciria, como tem ocorrido com outros ofcios que foram transformados em profisses, tema que ser discutido mais adiante, no Captulo 5.

4.3. Instrumentos da Segurana Penitenciria: a Disciplina e a Vigilncia

A utilizao eficaz dos instrumentos de vigilncia e disciplina so, teoricamente, garantidores de que a custdia dos presos se efetive de modo a produzir segurana no ambiente prisional, na comunidade circundante, alm de garantir a integridade fsica de presos, visitantes e funcionrios. Sabemos, no entanto, que esta ordem e segurana so frgeis, sendo a custdia operada pelos agentes constituda de um processo de trabalho pautado por emergncias e riscos. Os instrumentos da segurana so utilizados exatamente na perspectiva da previsibilidade e na correo de fatos graves.

4.3.1. As Atividades de Vigilncia

As atividades de vigilncia requerem um permanente estado de alerta que seguidamente acompanhado da sensao de medo. Este estado de alerta, em que a audio e a observao tm papel fundamental, tende a se transformar numa atitude de desconfiana e suspeita: o agente, em geral, desconfia no s dos presos, mas de seus prprios companheiros de trabalho. Tambm a vida pessoal do agente se reveste dos mesmos sentimentos: determinados lugares pblicos de lazer so evitados, as formas de o moradia alteradas, informaes sobre seu trabalho no so divulgadas a vizinhos e parentes. Os agentes vo construindo formas auto-defensivas para no serem identificados no seu ofcio. Os instrumentos de vigilncia mais comuns, utilizados nas prises brasileiras e, tambm, encontradas em outros pases so:

A revista de objetos, ambientes e pessoas;

A distribuio de agentes em postos de servios, que cobrem espaos fsicos especficos e determinados nmeros de presos;

A utilizao de registros dirios por escalas de planto, de ocorrncias, sejam rotineiras ou ocasionais, no chamado livro de ocorrncias;

A escolta de presos que se locomovem internamente no espao fsico do estabelecimento, naquelas reas onde usualmente o preso no deva transitar sozinho ou, nos espaos externos quando deve ser levado presena do juiz ou a consultas mdicas externas;

A ronda noturna;

O uso de algemas, armas e carros;

A realizao de conferes, ou seja, a contagem rotineira diria, pela manh e noite, do nmero de presos custodiados no estabelecimento, assim como conferes especiais aps tentativas de fugas ou rebelies;

A custdia de bens de valor financeiro significativo trazidos pelo preso ao ingressar no estabelecimento ou ofertado por seus visitantes;

A vistoria das grades.

Alguns dos instrumentos de vigilncia assinalados mostram claramente seu carter invasivo da intimidade do preso: as revistas de sua cela, de sua cama, de seus objetos, de seu corpo. Assim, o desempenho do agente est fortemente vinculado s atividades cujo limite quanto ao uso de seu poder coercitivo sobre o preso no s est dado pela legislao, mas, sobretudo, pelo sentido tico sobre o qual se fundamenta seu agir. De forma anloga, por exemplo, o mdico estabelece com seu paciente uma relao em que o exame do corpo obedece a rotinas pautadas na tica mdica. Portanto, as tarefas de vigilncia no podem ser descontextualizadas, nem vistas como mera burocracia, mero hbito aprendido e repetido pelas geraes de agentes, sem a reflexo necessria sobre seu contedo tcnico e tico-poltico.

4.3.2. A Ao Moralizadora da Disciplina.

Em todos os espaos onde convivem pessoas h formas de funcionamento coletivas e individuais, pautadas em normas disciplinares. Nos espaos de trabalho, lazer, negcios e de convivncia familiar, sempre existem formas consensadas em que direitos e deveres so exercidos, expressando o desenvolvimento da sociabilidade no grupo e, em ltima instncia, a moral dos sujeitos em determinado contexto e poca. Podemos dizer que na priso existem expresses concretas da moral na vida coletiva que reproduzem formas morais da sociedade, mas que adquirem feies caractersticas da vida em confinamento. Destas expresses da moral podemos salientar a linguagem, com seu glossrio tpico, assim como os preconceitos manifestos atravs de atitudes dogmticas, movidas pela intolerncia e pelo irracionalismo.

Em alguns espaos coletivos, as regras disciplinares construdas pelos sujeitos revelam participao efetiva de todos e a busca por deveres e direitos consensados. o caso de assemblias de grupamentos profissionais ou de partidos nos quais o ritual de funcionamento no precisa ser expresso necessariamente por regulamentos escritos. Os sujeitos incorporam as normas disciplinares como forma de convivncia necessria interao na coletividade.

Noutros espaos da vida, as regras disciplinares so dispostas num aparato legal, como ocorre com a disciplina a ser seguida pelos jogadores de futebol, de volley, de tenis ou de outras prticas esportivas. Tais regras permitem presenciarmos torneios internacionais entre representantes de culturas, lngua e etnias diversas, sem que tenhamos qualquer dificuldade de compreenso do desenrolar da atividade esportiva, pois as regras disciplinares representam o elo que facilita a disputa e o entendimento entre os esportistas. Assim, podemos perceber que regras disciplinares so consensadas de modo mais democrtico em alguns espaos, com participao expressa dos sujeitos envolvidos ou, ento, so construdas atravs de seus representantes, como nas confederaes esportivas.

As primeiras regras disciplinares na vida do sujeito so consensadas na famlia, que expressam a moral atravs da cultura familiar das geraes parentais. Tanto a autoridade paterna quanto materna contribuem de forma decisiva na construo das regras com vistas educao de seus filhos. Em continuidade, os sujeitos vo vivenciar na escola novas regras disciplinares, fundadas na moral da sociedade e na disciplina pedaggica orientadora da relao de ensino-aprendizagem.

A relao de custdia instituda na priso est fundamentada por regras disciplinares inscritas desde 1955 na Regras Mnimas de Tratamento dos Reclusos e se estende pelas legislaes especficas de cada pas. No so regras consensuais negociadas entre custodiadores e custodiados. Seu parmetro legal prev direitos e deveres a partir da tica do legislador, circunscrito na produo das leis num determinado perodo histrico, considerando as presses e demandas da sociedade e dos representantes do Estado no intuito de compatibilizar direitos fundamentais dos presos com requisitos de segurana individual e coletiva. Sabemos que, graas ao Direito, cujas normas contam com o poder coercitivo do Estado, consegue-se que os sujeitos aceitem, voluntria ou involuntariamente, a ordem social juridicamente formulada e, assim, se enquadrem no estatuto social em vigor.

Na priso, o termo disciplina corrente e adquire um significado especial dentro da relao de custdia, tal como expressa o Art. 44 da LEP: A disciplina consiste na colaborao com a ordem, na obedincia s determinaes das autoridades e seus agentes e no desempenho do trabalho. Tanto na LEP, como no cotidiano das prises, a disciplina tida como instrumento moralizador, que visa adequar o comportamento dos sujeitos a uma ordem determinada, em que a obedincia, a hierarquia e a tradio so valores essenciais que concorrem para a manuteno daquela ordem. Basta que examinemos com mais vagar tanto as faltas graves (as nicas previstas pela LEP, j que as mdias e leves pertencem s legislaes estaduais), como as sanes, recompensas e todo o procedimento disciplinar. Tais aspectos, apreciados na cultura prisional, acabam por provocar formas esdrxulas, tais como a prtica contumaz e banalizada do uso de cela de isolamento, muitas vezes durante o tempo cronolgico imposto pelo custodiador. Outros rituais dessa cultura so reconhecidos como exemplos de disciplina, tal como o preso colocar as mos para trs e baixar a cabea diante da autoridade ou de visitantes. Fitar os olhos ou apertar a mo do outro seguidamente so gestos que podem significar desrespeito ou inteno de aproximao, reprovveis dentro da relao subordinada implcita custdia. Disciplinar, pois, adquire para os custodiadores o sentido corriqueiro de cobrar: significa reafirmar para o preso que a correlao de foras entre ele e seu custodiador mesmo desigual e pode ser exacerbada, seja atravs da repreenso brusca, seja atravs de maus tratos fsicos.

Assim, a cultura prisional forjou uma determinada disciplina, que mais do que seguir os requisitos das leis, repousa sobre uma relao poltica de sujeio e domnio. Em oposio, seria desejvel que a disciplina pudesse ser para o preso um exerccio de responsabilidade consigo mesmo e de respeito ao outro, no sentido da reviso daqueles valores que outrora garantiram seu ingresso na criminalidade.

O papel disciplinador exercido pelos trabalhadores das prises se concretiza junto aos tcnicos de forma diferenciada da ao dos agentes de segurana penitenciria. No entanto, para todos, talvez, a ao disciplinadora seja a questo mais crucial da relao de custdia pela fragilidade que desnuda: custodiado e custodiador estabelecem forosamente uma relao de convivncia, sem escolhas mtuas, mas de carter compulsrio, pautada por uma cultura em que disciplinar significa apenas adequar os sujeitos quela ordem. Ora, de que ordem estamos falando? O cio generalizado, por exemplo, resultado da falta de postos de trabalho dentro da priso poderia ser compreendido como imensa desordem provocada pelos agentes do Estado. Por outro lado, quando o preso trabalha num dos postos existentes, respondendo, assim, aos requisitos disciplinares que concorrem para a ordem, qualquer deslize de comportamento pode ser computado como infrao, acarretando imediato desligamento do trabalho. Esvaziado de seu sentido de desenvolver habilidade e responsabilidade, o trabalho adquire o objetivo de ser instrumento de premiao e castigo.

4.3.3. Mudanas Importantes na Legislao

Como j foi ressaltado, tanto a legislao internacional, quanto a nacional, so omissas no que se refere s competncias especficas da rea da segurana penitenciria. Por isso mesmo, vale propor alterao na Lei de Execuo Penal de forma a definir a questo. H necessidade da introduo de um captulo para descrever tais competncias,que poderia ser o seguinte:

Captulo XXX

Da Segurana Penitenciria:

Artigo 1. Com o sentido amplo de preservar e proteger pessoas - presos, funcionrios, visitantes e cercanias das unidades a segurana penitenciria visa aes de vigilncia que propiciem um ambiente favorvel ao desenvolvimento das atividades cotidianas e da boa convivncia de todos aqueles envolvidos na execuo penal.

Artigo 2. A vigilncia dos ambientes internos das unidades compete ao grupamento de agentes de segurana penitenciria, parte integrante do pessoal penitencirio (Art. 76 e 77 da atual LEP).

Artigo 3. As aes de vigilncia devem ser adaptadas s condies fsicas da unidade, ao regime de pena, ao perfil e quantitativo de presos, rotina de visitao e de atividades estratgicas, observando-se formas de conduta funcional pautadas nos parmetros dessa Lei e da legislao internacional.

Artigo 4. A istrao penitenciria dever se apropriar de equipamentos tecnolgicos de vigilncia que garantam a segurana das unidades, reduzindo as prticas aviltantes de invaso da privacidade dos presos e visitantes.

Artigo 5. Os agentes de segurana penitenciria devero, nas capacitaes necessrias s diferentes funes, ser introduzidos ao conhecimento relativo a pessoas portadoras de doena mental e dependncia qumica, internadas nos Hospitais de Custdia e Tratamento Psiquitrico.

Continuando, nessa linha de proposies, a alterao do Artigo 44 da atual Lei de Execuo Penal tambm deve ser considerada. Para tanto, sugerimos a seguinte redao:

Artigo 44. A disciplina prisional visa superar o binmio prmio- castigo, contribuindo para uma convivncia coletiva harmnica e constitui-se no compromisso de todos pessoal penitencirio, presos e visitantes para o exerccio responsvel das atividades dirias e do respeito a todas as pessoas.

4.4. Instrumentos da Assistncia: Questes Gerais

Com a promulgao da Constituio Federal, em 1988, encontramos a assistncia social, integrante da seguridade social, entendida como um conjunto de aes prestadas a quem dela necessitar, independentemente de contribuio seguridade social. Ainda que o texto Constitucional no se atenha explicitamente s pessoas que cumprem penas privativas de liberdade, (Art. 203), podemos depreender que a proteo famlia, maternidade, infncia, adolescncia e velhice se reportam, no mnimo, aos familiares dos presos e presas, e a estas, mais propriamente. A Lei Orgnica de Assistncia Social ( LOAS, Lei no. 8742, de 7/12/93) dispe sobre a Assistncia Social, tal como colocada na Constituio Federal. O Art. 1 da LOAS define que:

A Assistncia Social, direito do cidado e dever do Estado, poltica de seguridade social no contributiva, que prov os mnimos sociais, realizada atravs de um conjunto de aes de iniciativa pblica e da sociedade, para garantir o atendimento s necessidades bsicas.

Na Lei de Execuo Penal, de 1984, portanto, anterior Constituio Federal, o sentido de assistncia social mais e se expressa como sinnimo da ao dos profissionais de Servio Social junto aos presos e seus familiares. No entanto, as assistncias enunciadas pela LEP nos Art. 10 e 11 incluem os mbitos da sade e das assistncias jurdica, educacional, social, religiosa e material. Note-se a falta de referncia assistncia psicolgica. Refletindo-se sobre a compatibilizao dos textos da Constituio, da LOAS e dam LEP, possvel deduzir que:

1. A assistncia um direito do preso provisrio, do condenado e do portador de medida de segurana;

2. Os familiares e pessoas de referncia dos presos esto cobertos pela prerrogativa constitucional de que a assistncia direito de todos, para garantir o atendimento s necessidades bsicas;

3. As mulheres presas, na sua condio de mes, assim como seus filhos, so portadores do mesmo direito constitucional assistncia, tal como j se fazia anotar na LEP, conforme o Art. 89 a penitenciria de mulheres poder ser dotada de seo para gestante e parturiente e de creche com a finalidade de assistir ao menor desamparado cuja responsvel esteja presa;

4. A assistncia um dever do Estado e est consubstanciado nas leis citadas, embora o dever do Estado na proteo e garantia desse direito venha se exercendo com extrema fragilidade e inconsistncia. Face qualidade da vida cotidiana dos presos na maior parte das unidades prisionais e delegacias, percebe-se que a assistncia ainda um direito formal, necessitando adquirir urgente efetividade.

Dentre as assistncias nomeadas em lei, a assistncia material dirige-se satisfao de necessidades bsicas como higiene pessoal, vesturio, sapatos, limpeza do ambiente e roupas de cama e banho. As demais reas de assistncia a serem providas dependem sobretudo da alocao de recursos humanos mdicos, dentistas, assistentes sociais, agentes religiosos, professores e pedagogos - assim como de diretrizes tcnicas e polticas sobre a natureza e finalidade do trabalho desses profissionais.

Na cultura prisional no incomum a rotulao do bom papel atribudo aos profissionais da assistncia, como assinalado anteriormente, quando se mencionou o jogo do cabo de guerra. No entanto, as contradies inerentes ao papel profissional dos tcnicos de assistncia na priso se produzem dentro do binmio assistir/custodiar: assegurar condies que garantam a integridade fsica e psicolgica dos custodiados, concomitante manuteno da ordem e segurana. Como j mencionado, freqente ouvirem-se queixas interminveis dos tcnicos quanto aos obstculos que as questes relacionadas segurana penitenciria impem a seu agir profissional. Tais queixas revelam dificuldades reais, mas traduzem, por vezes, uma viso fatalista e, portanto, acrtica, de que na hiptese de se removerem os obstculos referentes segurana penitenciria ter-se-iam as condies timas para as assistncias se concretizarem de modo eficaz.

As questes acima remetem necessidade constante de reflexo acerca da identidade profissional dos tcnicos no campo da execuo penal, certamente com contornos distintos daquela construda em outros campos de trabalho, onde inexiste a privao da liberdade impondo limites rotina diria de vida.

4.4.1. Propostas Especficas para a rea das Assistncias

Uma srie de propostas visando o aperfeioamento das prticas profissionais de assistncia so absolutamente viveis e no dependem de qualquer alterao legislativa. Neste sentido esto colocadas as sugestes que se seguem.

Com o objetivo de melhor articular os Conselhos Profissionais com os rgos de monitoramento da execuo penal e com as istraes penitencirias, propriamente ditas, as seguintes aes so recomendadas a nvel federal e estadual:

Nvel federal: os diferentes Conselhos Federais de enfermagem, servio social, psicologia, medicina, etc., devero se responsabilizar pela articulao com o CNP e DEPEN quanto a aes que lhe dizem respeito no mbito da poltica penitenciria, em relao ao desempenho das respectivas reas profissionais da assistncia, assim como de diretrizes nacionais para este campo de ao profissional. Paralelamente, os rgos referidos devem se valer da assessoria dos Conselhos Federais para o aprimoramento das aes profissionais de assistncia.

Nvel estadual: os diferentes Conselhos Regionais, articulados com os Conselhos Federais, devero acompanhar as aes profissionais de suas respectivas reas de assistncia no mbito dos sistemas penitencirios.

Os seguintes temas devem, necessariamente, ocupar a agenda dos Conselhos Regionais:

a) Aprofundamento da discusso acerca da identidade profissional no sistema prisional, atravs de palestras, cursos, etc;

b) Articulao dos Conselhos com os respectivos cursos de graduao no sentido de incluso e discusso do exerccio profissional no sistema prisional;

c) Fiscalizao das condies de trabalho dos profissionais de suas respectivas reas.

4.4.2. Pensando a rea da Sade

A Lei de Execuo Penal, em seu artigo 14, preceitua o dever do Estado no que tange sade do preso, insistindo que a assistncia sade direito, tanto a de carter preventivo como a de carter curativo, compreendendo o atendimento mdico, farmacutico e odontolgico. No entanto, omissa quanto ao atendimento psicolgico, o que nos leva proposio contida no final deste item.

Nos Anexos ao presente trabalho pode ser encontrada uma proposta detalhada para a rea da sade no sistema penitencirio, mais especificamente para a criao de uma Diviso de Sade, no mbito do DEPEN. De qualquer forma, algumas recomendaes mais gerais, constantes de tal Anexo, merecem ser enfatizadas:

No se deve negligenciar o padro de qualidade na assistncia sade do preso, considerando-se, sempre, a assistncia proporcionada aos cidados livres;

O livre o aos cuidados de sade nas unidades prisionais deve ser garantido, recomendando- se que a triagem dos casos para atendimento seja feita por pessoal qualificado;

dever do profissional de sade respeitar o direito do paciente/preso decidir livremente sobre sua sade, a no ser em caso de iminente perigo de vida, sendo vedado o tratamento compulsrio;

Os presos provisrios e condenados devem ter garantido o o s informaes referentes sua condio de sade, aos procedimentos e medicamentos prescritos;

O profissional de sade que atua no sistema penitencirio no deve abrir mo de sua independncia profissional, pautando suas decises e procedimentos no bemestar da pessoa assistida;

O profissional de sade que atua no sistema penitencirio deve buscar conhecer tanto a legislao de sade, como aquela que se relaciona com a execuo penal a fim de poder promover o bem-estar do paciente e assegurar melhor qualidade na prestao dos servios de sade s pessoas sob seus cuidados.

Como mencionado anteriormente, vale propor uma pequena mudana legislativa no Artigo 11, inciso II, da LEP, acrescentando as palavras fsica e mental quando h referncia assistncia sade. J no Artigo 14, h necessidade de que se acrescente o atendimento psicolgico aps a meno que se faz ao atendimento mdico, farmacutico e odontolgico.

4.4.3. Pensando a rea da Educao e do Trabalho

Qualquer possibilidade de futura reinsero do preso no mundo livre, afastado do crime, a pelas oportunidades que lhe sejam oferecidas nas reas de educao e do trabalho, embora se saiba que de nada adiantar ter o preso aprendido um ofcio, se no houver programas efetivos de apoio ao egresso penitencirio, tema que ser discutido mais adiante. O Estado brasileiro tem sido historicamente incompetente para prover educao e trabalho ao preso. Constroem-se unidades prisionais sem espao para oficinas de trabalho. Constroem-se unidades prisionais sem escolas. Existem escolas que no ensinam. A educao para o trabalho absolutamente ignorada, quando existem recursos do Fundo do Amparo ao Trabalhador (FAT) que podem ser utilizados para tal finalidade.

Aqui, novamente, bom lembrar o que diz o Plano Nacional de Segurana Pblica, defendido pelo ento candidato Presidncia da Repblica, Luiz Incio Lula da Silva. Na rea da educao, lembra o documento, em sua pgina 76, a necessidade da criao de grupo de trabalho no Ministrio da Educao visando desenvolver contedos programticos e linha metodolgica especificamente destinados educao do preso e, a partir da, (o governo federal deve) incentivar os estados a utilizarem tais recursos e auxiliar financeiramente a implantao dos cursos.

Quem conhece escolas em prises sabe da urgncia da efetivao de propostas como essas. fundamental que currculos especficos sejam desenvolvidos para a populao presa e que se elaborem metodologias adequadas s necessidades muito particulares desses indivduos. Tudo isto s poder ser feito com o empenho do governo federal, evidentemente.

A reviso da Lei de Execuo Penal, no que se refere remio pelo estudo, outro tema que demanda urgentssima ateno. Em alguns estados as Varas de Execuo j vm aceitando que se computem dias/horas dedicados ao estudo para efeito de remio. No entanto, tudo ainda se d de maneira informal, o que deve ser evitado com a reviso da legislao. Por outro lado, o mesmo Plano Nacional de Segurana Pblica (pg.75) tambm aponta caminhos na rea do trabalho prisional, sugerindo a abertura de linhas de crdito especficas para estmulo ao trabalho prisional e o apoio, por intermdio de incentivos fiscais (federais, estaduais e municipais) aos pequenos e mdios empresrios que ocuparem a mo de obra do preso em regime fechado, semi-aberto e mesmo do egresso penitencirio. Correta proposio. No entanto, h que se atentar para a necessidade de reviso da Lei de Execuo Penal, especificamente de seu Artigo 28, pargrafo 2, se desejarmos, de fato, proteger o trabalho do preso da explorao de empresrios que, estimulados por isenes fiscais, vierem a estabelecer oficinas em unidades prisionais. O Artigo 28, pargrafo 2, da referida lei, diz que o trabalho do preso no est sujeito ao regime da Consolidao das Leis do Trabalho. Tal fato, como lembra Alvim, cria incentivo ganncia do empresariado privado, medida que o livra, nas contrataes, do rol de direitos embutidos na legislao trabalhista, em cabal desrespeito igualdade constitucional. Ademais, tal disposio legal, ao negar a possibilidade de contrato trabalhista, contradiz o artigo 28, caput, que enfatiza a finalidade produtiva, portanto, profissionalizante do trabalho prisional.11 Enfim, a necessidade de o trabalho do preso ser protegido pela legislao trabalhista algo que precisa ser revisto com urgncia.

4.5 As Comisses Tcnicas de Classificao

A Lei 10.792 de 1 de dezembro de 2003 muda substancialmente a destinao das Comisses Tcnicas de Classificao, na medida em que as libera das obrigaes referentes confeco de exames criminolgicos para fins de benefcios legais. Fica mantida a CTC para realizao do exame criminolgico inicial com vistas classificao dos condenados. Ou seja, os profissionais que, at ento, se dedicavam elaborao de pareceres, basicamente para livramento condicional e progresso de regime, devero estar agora apenas envolvidos com os programas individualizadores da pena e com a prestao das assistncias, de maneira mais geral.

ainda prematuro discutir o destino das Comisses Tcnicas de Classificao, na medida em que se sabe que em alguns estados, tanto juzes, quanto istrao penitenciria, continuam solicitando que os tcnicos elaborem exames criminolgicos. Por outro lado, embora a Lei 10.792, enfatize que de responsabilidade do diretor do estabelecimento prisional a imposio das sanes disciplinares, acredita-se que isto no elimina a possibilidade de as Comisses Tcnicas de Classificao continuarem opinando sobre essas mesmas sanes, embora haja quem argumente que os profissionais que integram as CTCs estejam dispensados deste papel.

De qualquer forma, vale acentuar que, sobretudo, psiclogos, psiquiatras e assistentes sociais podero dedicar mais tempo ao atendimento das necessidades individuais dos presos e participao nas discusses sobre o cotidiano das unidades prisionais nas quais atuam. Mais ainda, est na hora de as CTCs comearem a desempenhar um papel que seu e que jamais foi assumido: o de assessorar a istrao penitenciria com vistas ao aperfeioamento da gesto prisional e, sobretudo, o de construir estratgias para lidar com o conflito inerente pena privativa de liberdade, ou seja, a contradio entre custodiar, punir, assistir e proteger.

Algumas prticas, j implementadas em sistemas penitencirios pelo pas afora, devem agora ser muito incentivadas, como por exemplo:

1. Reunies peridicas (semanais, quinzenais ou mensais), agendadas pela Direo da unidade prisional, de carter tcnico-istrativo, para discutir os problemas do cotidiano da unidade, buscando as propostas de cada rea profissional (psicologia, servio social, sade, istrao, segurana).

2. Reunies peridicas da direo com uma nica rea profissional no sentido de debater o trabalho da rea no contexto da micropoltica da unidade.

3. Reunies de equipes de profissionais da mesma rea profissional com sua chefia imediata (chefia de segurana com seus subordinados, chefia de servio social com os assistentes sociais ou chefia da rea assistencial, quando houver, com os seus subordinados).

Essas reunies, que podem ser vistas como mero instrumento burocrtico, podem, na verdade, constiturem espaos privilegiados de troca de experincia e de discusso acerca das finalidades da pena privativa de liberdade,de tal forma que permita a tcnicos das reas profissionais distintas repensarem seu papel de custodiadores. Por outro lado, tais reunies contribuem para horizontalizar a gesto prisional, colocando as direes das unidades como facilitadores desse processo.

5. Controle externo e interno

5.1. Entendendo o Monitoramento e as Formas de Controle Externo

O sistema prisional, por sua prpria natureza, tem como principal caracterstica o isolamento do indivduo. Este isolamento, no entanto, deve obedecer a determinadas regras e limites para que se evitem violaes de direitos humanos, muito comuns quando suprimida a liberdade. A maioria das violaes de direitos nos centros de deteno resulta da falta de transparncia que permeia este universo, o que muitas vezes impede que o prprio Estado tome conhecimento da gravidade de tais violaes.

O monitoramento do sistema prisional deve ser realizado de forma permanente e continuada por representantes da sociedade civil organizada e por todos aqueles rgos cuja responsabilidade de fiscalizar as prises e centros de deteno encontra-se contemplada na Lei de Execuo Penal.

Evidentemente, a melhor maneira de se efetuar o monitoramento por meio de visitas in loco, onde podem ser documentados abusos e irregularidades e, de maneira geral, as principais funes do monitoramento devem ser:

A preveno

A fiscalizao regular das unidades, realizadas por pessoas de fora do sistema, certamente contribui para a proteo dos presos. Aceitas ou toleradas, tais visitas representam um mecanismo de controle de razovvel eficcia que pode evitar a ocorrncia de violaes;

A proteo direta

As visitas proporcionam a oportunidade de resposta imediata a determinados problemas vivenciados pelos presos, em relao aos quais as autoridades no se tenham pronunciado;

A documentao

As visitas exercem importantssimo papel na documentao de informaes sobre o sistema penitencirio, permitindo no somente transparncia, mas principalmente justificativas para propostas que visem mudanas;

O e ao preso

O contato direto com algum privado de liberdade, por si s, pode significar valioso e moral;

O dilogo com as autoridades

As visitas tornam possvel estabelecer dilogo direto e permanente com as autoridades, objetivando a colaborao mtua e a procura de alternativas para a soluo de problemas detectados.

Pode-se dizer, ento, que o monitoramento envolve o exame regular de todos os aspectos da deteno e sua importncia reside na possibilidade de que, atravs de sua ao, as autoridades responsveis pela rea possam ser chamadas a cumprir o que determina a lei. Ressalte-se que o monitoramento ter sempre mais eficcia na medida em que as denncias estiverem acompanhadas de propostas concretas. Ou seja, o carter propositivo do monitoramento condio primeira de seu sucesso.

5.2. O Monitoramento e a Legislao

Tanto a legislao internacional, como a Lei de Execuo Penal, referem-se claramente aos mecanismos de controle das prises. A breve anlise dessa legislao importante para se perceber a distncia entre os dispositivos legais e a realidade do sistema penitencirio brasileiro.

5.2.1. Legislao Internacional

Uma srie de acordos e tratados internacionais, dos quais o Brasil signatrio, dispem sobre questes relativas ao monitoramento e inspeo dos sistemas penitencirios, alm de ressaltar o direito dos presos em apresentarem queixas. Antes de mais nada, proporcionar ao preso um mecanismo eficaz de comunicao com a autoridade responsvel pelo sistema penitencirio fundamental e est contemplado no Art. 2 do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Polticos: Cada Estado signatrio do presente Pacto compromete-se a:

a) Garantir que toda pessoa, cujos direitos e liberdades reconhecidas no presente Pacto hajam sido violados, possa dispor de um recurso efetivo, mesmo que a violncia tenha sido perpetrada por pessoas que agiam no exerccio de funes oficiais;

b) Garantir que toda pessoa que interp tal recurso ter seu direito determinado pela competente autoridade judicial, istrativa ou legislativa ou por qualquer outra autoridade competente prevista no ordenamento jurdico do Estado em questo e a desenvolver as possibilidades de recurso judicial;

c) Garantir o cumprimento, pelas autoridades competentes, de qualquer deciso que julgar procedente tal recurso.

E, mais ainda, o Princpio 33 do Conjunto de Princpios para a Proteo de Todas as Pessoas Sujeitas a Qualquer Forma de Deteno ou Priso, estabelece o seguinte:

1. A pessoa detida ou presa, ou o seu advogado, tm o direito de apresentar um pedido ou queixa relativos ao seu tratamento, nomeadamente no caso de tortura ou de tratamentos cruis, desumanos ou degradantes, perante as autoridades responsveis pela istrao do local de deteno e a autoridades superiores e, se necessrio, para autoridades competentes de controle ou de recurso;

2. No caso de a pessoa detida ou presa ou o seu advogado no poderem exercer os direitos previstos no n1 do presente princpio, estes podero ser exercidos por um membro da famlia da pessoa detida ou presa, ou por qualquer outra pessoa que tenha conhecimento do caso;

3. O carter confidencial do pedido ou da queixa mantido se o requerente o solicitar;

4. O pedido ou queixa devem ser examinados prontamente e respondidos sem demora injustificada. No caso de indeferimento do pedido ou da queixa ou em caso de demora excessiva, o requerente tem o direito de apresentar o pedido ou queixa perante autoridade judiciria competente ou outra autoridade. A pessoa detida ou presa ou o requerente nos termos do n 1 , no devem sofrer prejuzos pelo fato de terem apresentado um pedido ou queixa. Os documentos internacionais tambm so muito claros quanto necessidade do monitoramento ou inspeo das unidades prisionais por inspetores/monitores independentes. Vejamos o que diz o Conjunto de Princpios para a Proteo de Todas as Pessoas Sujeitas a Qualquer Forma de Deteno ou Priso dispe em seu princpio 29:

1. A fim de assegurar a estrita observncia das leis e regulamentos pertinentes, os lugares de deteno devem ser inspecionados regularmente por pessoas qualificadas e experientes, nomeadas por uma autoridade competente diferente da autoridade diretamente encarregada da istrao do local de deteno ou da priso, e responsveis perante ela;

2. Uma pessoa detida ou presa deve ter o direito de comunicar-se livre e confidencialmente com as pessoas que visitam os lugares de deteno ou priso de acordo com o pargrafo 1 do presente princcipio, tudo sujeito a condies razoveis que garantam a segurana e a boa ordem desses lugares.

5.2.2. Lei de Execuo Penal

A Lei de Execuo Penal muito clara quando se refere aos rgos que devem fiscalizar e/ou inspecionar os sistemas penitencirios. Em primeiro lugar, cabe ao Conselho Nacional de Poltica Criminal e Penitenciria, entre outras responsabilidades, a de inspecionar e fiscalizar os estabelecimentos penitencirios....(art. 64,VIII). Por seu turno, cabe ao Juiz da Execuo inspecionar, mensalmente, os estabelecimentos penais, tomando providncias para o adequado funcionamento e promovendo, quando for o caso, a apurao de responsabilidade.(art. 66,VII). Deve, ainda, o Ministrio Pblico visitar mensalmente os estabelecimentos penais.(art. 68, pargrafo nico) Os Conselhos Penitencirio dos estados tambm esto obrigados a inspecionar os estabelecimento penais (art. 70, II), e o Departamento Penitencirio Nacional tambm deve inspecionar e fiscalizar periodicamente os estabelecimentos e servios penais(art. 72, II). Finalmente, o Conselho da Comunidade, deve visitar, pelo menos mensalmente, os estabelecimentos penais existentes na comarca, entrevistando presos e apresentando relatrios mensais ao juiz da execuo(art. 81,I,II e III) .

Ora, se todos esses rgos procedessem a fiscalizaes e inspees regulares das unidades prisionais, certamente as irregularidades e ilegalidades estariam sendo melhor combatidas. Por outro lado, a criao de um Frum Permanente que congregasse representantes dos diferentes rgos responsveis pelo trabalho de fiscalizao/e ou inspeo seria muito til e contribuiria para o aperfeioamento dos sistemas penitencirios.

Entre os rgos de monitoramento externo j existentes, os Conselhos da Comunidade apresentam potencial muito significativo e sua criao deveria ser estimulada. urgente, no entanto, a criao de Ouvidorias para os sistemas penitencirios. So esses temas que trataremos a seguir.

5.3. O Conselho da Comunidade

No ano de 2000, recebemos no Brasil a visita de Sir Nigel Rodley, Relator Especial das Naes Unidas para a tortura. Suas constataes caracterizaram a tortura no Brasil como sistemtica, disseminada e impune. No relatrio apresentado em 2001, Nigel Rodley fez inmeras sugestes ao governo brasileiro, dentre elas a necessidade de se garantir o monitoramento permanente das instituies penais, atravs do o ir de organizaes no governamentais de direitos humanos e da garantia de recursos e estrutura necessrios para o funcionamento dos Conselhos da Comunidade, assim como das Ouvidorias e dos Conselhos Estaduais de Direitos Humanos. Ganha destaque o fato de o Brasil, no ano de 2003, ter assinado o Protocolo Facultativo Conveno contra a Tortura da ONU, que prev a criao de um rgo internacional para monitoramento das prises e obriga os governos a criar instrumentos nacionais com o mesmo objetivo.

Investir em um rgo que tenha autonomia e estrutura para monitorar o sistema penal criar condies para combater a ao do Estado que se afasta de seu papel legal e, como bem lembra Foucault, cada luta se desenvolve em torno de um foco particular de poder. Designar esses focos de poder, denunci-los, falar deles publicamente, forar a rede de informaes institucional, nomear, dizer quem fez, o que fez, denunciar o alvo a primeira inverso de poder, um primeiro o para outras lutas contra o poder.12

O artigo 80 da Lei de Execuo Penal, prev a existncia de um Conselho da Comunidade em cada comarca. Segundo a LEP, o Conselho deve ser composto por um representante da associao comercial ou industrial, um advogado indicado pela OAB e um assistente social. Afirma-se, em pargrafo nico, que em falta de representao prevista, ficar a critrio do Juiz da Execuo a escolha dos integrantes do Conselho. De pronto, deveria ser garantida maior representatividade para o Conselho. A participao das universidades, ONGs grupos religiosos e outros conselhos profissionais como o de psicologia e medicina, por exemplo, deveriam ter o mesmo destaque dos rgos hoje citados na LEP. Outro aspecto importante quanto ao funcionamento dos Conselhos da Comunidade, que deveria ser revisto, a relao dos mesmos com o Juzo da Execuo. Havendo desinteresse do Juiz de Execuo da Comarca na criao do Conselho da Comunidade, o mesmo deveria ser criado a partir de iniciativas de membros da sociedade civil organizada. O artigo 81 da LEP prev as obrigaes do Conselho da Comunidade: visitar, pelo menos mensalmente, os estabelecimentos penais existentes na comarca; entrevistar os presos; apresentar relatrios mensais ao Juiz da Execuo e ao Conselho Penitencirio; diligenciar a obteno de recursos materiais e humanos para melhor assistncia ao preso ou internado, em harmonia com a direo do estabelecimento. Em relao a essas ltimas tarefas percebe se forte inspirao assistencialista supondo-se que o Conselho possa suprir a ausncia do Estado e a falta de polticas pblicas para a rea.

Tendo em vista que o Conselho da Comunidade o nico rgo da execuo penal composto por representantes da sociedade civil organizada, fundamental que suas possibilidades de monitoramento sejam estruturadas e efetivadas. Algumas propostas concretas para viabilizao do perfil fiscalizador do Conselho da Comunidade seriam:

Encaminhamento dos relatrios de visitas do Conselho da Comunidade aos rgos federais da execuo penal;

Criao de um Frum Nacional de Conselhos da Comunidade, viabilizando o intercmbio de experincias e informaes da ao dos Conselhos;

Produo de diagnsticos das condies das unidades visitadas, inclusive avaliando as condies de trabalho dos profissionais da segurana e da rea tcnica;

Autorizao para utilizao de mquinas fotogrficas durante as visitas do Conselho da Comunidade s unidades prisionais;

Incorporao da responsabilidade de visitar e fiscalizar as cadeias pblicas e delegacias;

Notificao aos Conselhos das Comunidades das operaes de revistas, a fim de que num curto espao de tempo os conselheiros tenham o aos presos e verifiquem sua condio fsica e mental;

Padronizao dos modelos de relatrios de visitas, facilitando a unificao das informaes a nvel nacional. Neste sentido o Conselho da Comunidade do Rio de Janeiro produziu modelo que foi construdo a partir dos questionrios utilizados pela Comisso de Direitos Humanos da Cmara Federal, do questionrio do Centro de Europeu de Preveno Tortura. Por fim, a LEP no faz qualquer meno a recursos istrativos e financeiros que viabilizem o adequado funcionamento dos Conselhos da Comunidade, com o conseqente cumprimento de suas obrigaes. A autonomia e independncia dos Conselhos ficam, na prtica, comprometidas pela falta de estrutura. Os governos estaduais, auxiliados pelo governo federal, devem disponibilizar recursos financeiros para que os Conselhos da Comunidade contem com instalaes adequadas e equipamentos, assim como pessoal de apoio e viaturas para as visitas. Verbas tambm deveriam ser asseguradas para viabilizar a participao de representantes dos Conselhos em eventos organizados por outros estados (seminrios, conferncias, etc.), de maneira a fortalecer redes de defesa dos direitos dos presos. Por fim, os Conselhos da Comunidade deveriam dispor de recursos para realizarem pesquisas e publicaes.

5.4. As Ouvidorias

Mecanismos de controle externo, na rea da segurana pblica, vem se popularizando em muitos estados brasileiros, com a criao de Ouvidorias das polcias estaduais e municipais. No entanto, na rea do Sistema Penitencirio, tal prtica ainda est longe de se tornar realidade. Com exceo de So Paulo e de Pernambuco, os sistemas penitencirios ainda so absolutamente refratrios a qualquer tentativa de criao de rgos de controle externo. No entanto, sabe-se que a sensao de segurana da populao depende muito do grau de confiana depositado no poder pblico e na qualidade dos servios prestados e que essa confiana aumenta quando governantes e servidores pblicos conduzem seu trabalho com transparncia, desenvolvendo canais de comunicao com a populao.

Se atentarmos para o que sugere o Plano Nacional de Segurana Pblica, do ento candidato Luiz Incio Lula da Silva, para a rea do Sistema Penitencirio, percebe-se que houve preocupao particular de enfatizar a necessidade do controle externo. Fala-se, claramente, da criao da Ouvidoria-Geral do Sistema Penitencirio Brasileiro, no Ministrio da Justia, e estmulo criao de Ouvidorias nos sistemas penitencirios estaduais, por meio de ajuda tcnica e financeira. E, mais ainda, insiste-se que a partir de um determinado momento, os estados que no tiverem implantado suas Ouvidorias, no recebero verbas (federais, evidentemente). Louve-se a recentssima iniciativa do Ministrio da Justia de criar a Ouvidoria-Geral do Sistema Penitencirio. Espera-se que tal Ouvidoria funcione, como acontece em tantos outros rgos federais, com um nmero 0800 disposio da populao. Desta forma, o Ministrio da Justia poder monitorar o que acontece nos sistemas penitencirios estaduais e cobrar dos estados o respeito lei.

Por outro lado, os estados tambm devem criar suas Ouvidorias, disponibilizando um nmero 0800 para o recebimento de queixas. E, mais ainda, principalmente nos estados, as Ouvidorias devem ter carter tambm pr-ativo, de forma a no se restringir ao monitoramento de casos individuais, buscando a punio de funcionrios que se comportam de forma ilegal ou irregular, mas deve envolver-se com o monitoramento mais amplo dos sistemas penitencirios, buscando formular propostas para problemas estruturais.

5.5. As Corregedorias

As Corregedorias so rgos de controle interno no mbito dos sistemas penitencirios que objetivam combater irregularidades e ilegalidades, principalmente a violncia e a corrupo. importante que as apuraes das Corregedorias sejam sempre muito cleres e seus resultados amplamente divulgados de forma a combater a sensao de impunidade. Constatou-se, no levantamento realizado para este trabalho, que cerca de 50% dos estados no contam com Corregedorias e constituem comisses de sindicncias, toda vez que h necessidade de investigar o desvio de comportamento de funcionrios, o que absolutamente inaceitvel. A criao de corregedorias em todas as unidades da federao urgente e algumas recomendaes para tal encontram-se a seguir.

Deve ser de competncia das Corregedorias dos Sistemas Penitencirios dos Estados:

a) Verificar o cumprimento das normas e diretrizes fixadas para o Sistema Penitencirio, apurando, atravs de sindicncias, as irregularidades que vier a constatar ou lhe forem submetidas;

b) Prestar esclarecimentos aos diversos rgos dos Poderes Judicirio e Executivo, bem como a outras instituies, sobre a instaurao e tramitao das sindicncias relativas aos servidores nelas envolvidos;

c) Manter as autoridades superiores do sistema penitencirio informadas das atividades de corregedoria;

d) Analisar e emitir parecer em todas as sindicncias instauradas e concludas nas suas unidades istrativas e prisionais dos sistemas penitencirios;

e) Controlar, atravs de publicao em informativo oficial, a instaurao de todas as sindicncias, acompanhando a tramitao das mesmas, at sua concluso e/ou encaminhamento autoridade competente;

f ) Proceder a reviso das sindicncias, pesquisando novos fatos apresentados pelo peticionrio e elaborando relatrios conclusivos;

g) Desenvolver atividades correcionais nos rgos dos sistemas penitencirios, principalmente atravs de anlise de relatrios de supervises ou inspees realizadas;

h) Apurar infraes e sua autoria, desde que imputadas a servidores dos sistemas penitencirios;

i) Avaliar, de forma sistemtica, nova legislao, decretos e/ou portarias que entrem em vigor, de forma a adequar seu trabalho s novas regras, inclusive apreciando a validade jurdica de regulamentos introduzidos pelas autoridades da rea;

j) Estar sempre em contato com os rgos externos de monitoramento das prises, principalmente o Conselho da Comunidade e os rgos responsveis pela fiscalizao do sistema prisional, de acordo com a Lei de Execuo Penal. Considerando as diferenas estruturais dos Sistemas Penitencirios dos estados federativos brasileiros, que apresentam quantitativos funcionais e efetivo carcerrio diversos, exigindo, inclusive, legislaes especficas, seria difcil definir o nmero de servidores indispensvel ao funcionamento modelar de uma Corregedoria.

No entanto, para que este rgo desempenhe seu papel, dispondo de condies similares em todos os Estados, deve ser estabelecido um nmero mnimo de Comisses Permanentes de Sindicncia, tomando-se por base o quantitativo de unidades prisionais, o efetivo carcerrio e o nmero de profissionais ali lotados. de fundamental importncia que as Corregedorias mantenham, atravs de Escolas de Formao Penitenciria, cursos permanentes de sindicncia, com obrigatoriedade de presena daqueles que dirigem ou pretendem ser Diretores dos estabelecimentos prisionais, bem como de seus principais auxiliares, j que a maioria das apuraes feita pelos servidores das prprias unidades, local de origem dos fatos geradores das mesmas.

Pelo despreparo dos membros das Comisses, os procedimentos apuratrios, em sua grande maioria, so eivados de vcios, fazendo com que sua durao se estenda demais, gerando descrena, ineficcia e ineficincia do trabalho, estimulando a crena na impunidade. Em razo da obrigatoriedade de apurao, pela autoridade istrativa competente, de qualquer irregularidade havida no mbito do servio pblico, e visando uniformidade e padronizao dos atos praticados e das medidas adotadas, a sindicncia ter que estar adstrita a normas legais e gerais a toda Federao, respeitadas as legislaes especficas de cada Estado. Contudo, ateno especial dever ser dispensada no sentido de se evitarem divergncias de interpretao e conflito de dispositivos legais, argumento utilizado para a anulao de procedimentos apuratrios.

Algumas medidas que deveriam ser adotadas quando da implantao de Corregedorias:

Criao de cargos para as Corregedorias. Tanto o cargo de Corregedor, quanto aqueles de seus auxiliares, devem fazer parte de estrutura prpria das Corregedorias, independente da estrutura dos sistemas penitencirios;

Manuteno, nas Corregedorias, em ordens alfabtica e numrica, de arquivo atualizado com relao dos servidores punidos e/ou que estejam envolvidos em procedimentos apuratrios, visando ao fornecimento de subsdios funcionais aos demais rgos do Sistema;

Publicao trimestral, em informativo prprio, de listagem das sindicncias instauradas no perodo, bem como do estgio em que se encontram as anteriores, possibilitando aos dirigentes e demais servidores total transparncia e crena na seriedade das investigaes das falhas ocorridas no Sistema;

Promoo de palestras e cursos nas Escolas de Formao Penitenciria a partir de problemas constatados nas sindicncias de forma a prevenir futuras ilegalidades;

Agilizao das vrias assistncias nas unidades, com base em denncias recebidas, contribuindo para o melhor funcionamento das unidades prisionais.

6. Capacitao de Pessoal

As Regras Mnimas para o Tratamento dos Recusos, documento da ONU que data de 1955, bom que se lembre, j estabeleciam que a formao profissional propriamente dita, anterior ao ingresso nos cargos, e a capacitao continuada, ao longo do desempenho de suas atividades, so absolutamente indispensveis para o pessoal penitencirio.

1. O pessoal deve possuir um nvel intelectual adequado;

2. Deve freqentar, antes de entrar em funes, um curso de formao geral e especial e prestar provas tericas e prticas;

3. Aps a entrada em funo e ao longo da sua carreira, o pessoal deve conservar e melhorar os seus conhecimentos e competncias profissionais, seguindo cursos de aperfeioamento organizados periodicamente 13

J se salientou, anteriormente, que dentre o pessoal penitencirio h os portadores de profisses e os de ofcios. A formao profissional anterior ao ingresso nos cargos diz respeito, portanto, ao pessoal das reas tcnicas, que praticam as assistncias previstas na LEP. Para habilitarem-se aos concursos pblicos, uma das exigncias se refere ao registro nos Conselhos Profissionais. Quanto ao pessoal da rea de segurana, inexiste uma poltica pblica de educao profissionalizante de segurana penitenciria.

Mesmo assim, pode-se verificar que ainda so muito limitadas as iniciativas dentro dos cursos de graduao, no Brasil, de introduo de disciplinas que possibilitem o o a estgios na rea do sistema prisional ou a contedos tericos que problematizem a temtica das prises. Ainda que as formaes profissionais sejam generalistas at determinada etapa dos cursos superiores, e depois se abram num leque de especializaes, muito escassas so as inseres de temticas nas universidades referentes ao campo da execuo penal.

Seguidamente, comenta-se que a universidade brasileira tem sido pouco sensvel, nas suas linhas de pesquisa e extenso, questo da segurana pblica, em especial rea de estudos do sistema prisional. H, portanto, a necessidade de uma poltica de fomento pesquisa nessa rea, que deveria ser estimulada por rgos como a CAPES e o CNPq. O enfoque tambm deve se dirigir a cursos de especializao que aglutinem profissionais das diversas reas, num esforo de coletivizar a discusso das prticas profissionais no campo da execuo penal.(vide Plano Nacional de Segurana Pblica). importante assinalar que uma variedade de temas, fundamentais para a formao dos profissionais que atuam na rea, so constantemente esquecidos, como por exemplo, a funo da priso na sociedade; a relao da criminalidade com a priso; a produo da criminalidade; a construo das identidades profissionais no campo da execuo penal; e a insero diferenciada de cada profisso. Estas so questes bsicas que constituem um ncleo comum de conhecimentos, tanto para detentores de profisso como de ofcios.

Em relao aos ofcios, como o de agente de segurana penitenciria, a formao mnima exigida para ingresso no cargo a escolaridade de 2 grau. A percepo usual em relao ao exerccio da segurana penitenciria de que os agentes desempenham uma funo essencialmente pragmtica, em que o conhecimento necessrio se constri na experincia adquirida no cotidiano. Esta uma constatao restrita s tarefas residuais dos agentes, quer seja a movimentao dos presos, sua escolta, o manuseio de instrumentos de vigilncia. No entanto, o desempenho essencial dos agentes de segurana se refere sua responsabilidade formal na ao disciplinadora junto aos presos. Como j se disse, nesta relao entre custodiador e custodiados, perada pela ao moralizadora da disciplina, no mbito da cultura prisional, que esto postos os maiores desafios e dilemas ao dos agentes. exatamente nesta relao que se verifica grande parte dos episdios de violao integridade fsica e psicolgica dos presos, assim como os conseqentes incidentes prisionais. Portanto, a ao disciplinadora, nas formas hoje existentes na cultura da priso, se naturalizou, banalizando aes violentas, e permitindo que os presos reafirmem que a presena do Estado nas suas vidas significa o desrespeito e a infrao s garantias legais.

Alterar a cultura de violncia institucional existente, da qual os agentes so em grande parte atores consensuais, supe, por parte da istrao Pblica, um compromisso que poltico com investimentos muito significativos na formao profissional, instituindo- se uma poltica de formao profissionalizante, alavancada pelo Ministrio da Educao (Vide Plano Nacional de Segurana Pblica). Em tal formao profissional, inicialmente de nvel tcnico, segurana penitenciria poderia ser concebida como uma proposta de formao continuada, composta por graduao e ps-graduao. A formao curricular, nesta hiptese, trabalharia com contedos bsicos que contemplem, como j mencionado, a discusso sobre as formas de punio contemporneas, sua relao com a criminalidade, as contradies da punio e da reinsero e sua operacionalidade, a legislao penal e de execuo penal e a respectiva insero e identidade profissional dos agentes neste contexto. J na rea de formao de habilidades para o exerccio profissional, pode-se destacar temas especficos como, por exemplo, o uso da fora, o manuseio de armamentos, o controle de incidentes prisionais, a direo defensiva, procedimentos istrativos diversos e tantos outros.

No sentido que se d formao profissional, visa-se colocar a ao dos agentes dentro dos parmetros legais em que se inscreve a custdia no Estado Democrtico, buscando substituir uma cultura de violncia, impregnada de vingana, alimentada pelo preconceito em relao aos presos e aos prprios agentes, por uma cultura de respeito ao preso e valorizao do funcionrio, em que este possa se inserir como um agente de disciplina, fundada em valores ticos de responsabilidade e respeito convivncia coletiva. O Brasil tem urgncia em fundar uma nova imagem de seus agentes da lei, que possa espelhar para a populao, valores de credibilidade, confiabilidade e proteo. A capacitao, portanto, constituda pelas aes pedaggicas e pela proposio de contedos programticos que possam propiciar atualizao e desenvolvimento aos trabalhadores dos sistemas penitencirios. Tais aes podem se desenvolver atravs de Escolas

Penitencirias nos estados. importante destacar, no entanto, que a poltica de capacitao das Escolas de Formao no supre por si s as questes mais gerais e pontuais dos trabalhadores. De fato, s uma poltica de recursos humanos, ainda tmida e at inexistente em muitos estados da federao, pode instituir vrias frentes de abordagem das questes relativas ao trabalho, tais como a sade do trabalhador, o plano de cargos e salrios, a reviso constante das condies de trabalho e a prpria poltica de capacitao. Querer resolver a insatisfao, o imobilismo, a indisciplina dos trabalhadores atravs da capacitao, como nica alternativa, uma perverso. Na verdade, no se constri um ambiente pedaggico de sensibilidade necessidade de aprendizagem num clima de profunda insatisfao com as condies de trabalho. Destri-se a credibilidade na capacitao, desmerecendo seu valor, na medida em que ela no alterar, por si s, posturas descompromissadas, violentas ou ideologicamente conservadoras dos trabalhadores da priso.

As propostas de capacitao operam num campo delimitado: ora informando sobre novas questes em debate (veja-se, por exemplo, o debate sobre justia teraputica, diminuio da idade de responsabilidade penal e regime disciplinar diferenciado) na conjuntura atual, ora aprofundando temticas desafiantes relativas aos presos como a dependncia qumica, o abuso sexual, etc.

6.1. Recomendaes na rea da Formao Profissional

Na rea da formao profissional, as recomendaes so as seguintes, tambm incorporando sugestes do Plano Nacional de Segurana Pblica:

1. Quanto s profisses em que requerido o nvel superior: (Servio Social, Direito, Psicologia, Medicina, Odontologia, Enfermagem, Nutrio, Terapia Ocupacional, e Pedagogia, principalmente).

a) Incluso de disciplina nos respectivos cursos de graduao que abranja:

A questo da economia lcita da criminalidade e o elo indissocivel com a priso, assim como a legislao internacional/nacional acerca da punio e proteo dos presos.

A discusso acerca da relao entre a cultura brasileira marcada pela ideologia elitista, conservadora, relacionada a questes da histria da formao da sociedade brasileira, com rebatimentos substanciais na cultura da impunidade, da violncia institucional, do clientelismo, do autoritarismo, etc;

b) Incentivo ao fomento de pesquisas no sistema prisional pela CAPES e CNPQ com a concesso de bolsas de iniciao cientfica e especializao atreladas linhas de pesquisa sobre criminalidade e priso, buscando publicizar os relatrios de pesquisas, colocando tal material bibliogrfico ao alcance do pblico diretamente interessado na questo prisional: pessoal penitencirio, professores de universidades e de ensino mdio, pesquisadores e es;

c) Valorizao de carga horria e de contedos nos cursos de Direito de conhecimentos acerca de execuo penal, buscando capacitar mais efetivamente os futuros advogados, defensores e promotores pblicos;

d) Incentivo a bolsas de estgio para alunos de graduao em projetos de extenso em diversas reas disciplinares com vistas a tornar mais permevel e visvel a execuo das penas, assim como capacitar profissionalmente estudantes que potencialmente possam contribuir com o campo da execuo penal;

e) Mapeamento atravs de rgos como CAPES e CNPq, de pesquisadores e de produes acadmicas referentes ao campo da criminalidade e execuo penal, visando a criao de um banco de dados;

f ) Incentivo ao aumento do nmero de bolsas de mestrado e doutorado para estudantes com projetos de pesquisa significativos na rea de execuo penal.

g) Criao de cursos de especializao junto s faculdades de Direito, Psicologia, Servio Social, Sociologia e Cincia Poltica visando formar acervo de produo acadmica num enfoque multidisciplinar, estabelecendo parcerias entre as universidades e os rgos das istraes penitencirias estaduais.

2. Quanto profissionalizao de sujeitos que venham a se candidatar a empregos na rea de segurana pblica e, em especial, funo de agente de segurana penitenciria:

a) No sentido de transformar o atual ofcio de agente de segurana penitenciria em profisso, criar, com o concurso do MEC e das Secretarias Estaduais de Educao, cursos profissionalizantes em dois nveis:

Nvel Mdio correspondente finalizao do Ensino Mdio, (com expedio de diploma de 2 Grau) como tcnico de segurana penitenciria. Alm das disciplinas convencionais de portugus e matemtica, tal currculo aprofundaria os contedos de histria e geografia, principalmente no que se refere s questes mais significativas da histria e geografia polticas brasileira, buscando ressaltar os problemas da desigualdade social e da cultura (cultura da violncia, da impunidade, autoritarismo, burocratismo).

Nvel de Graduao

6.2. Recomendaes na rea de Capacitao Profissional

Na rea da capacitao profissional as recomendaes so as seguintes:

1) Dotar os rgos estaduais de istrao penitenciria de Escolas de Formao, voltadas para capacitar o pblico interno o pessoal penitencirio. Tais escolas necessitam ser implantadas para se incumbirem da ambientao dos trabalhadores recm ingressos nas prises, seja oriundos de concursos pblicos ou de requisies istrativas, assim como da capacitao continuada, no sentido de oferecer atualizao tcnica aos diferentes segmentos funcionais. Evidentemente, tais Escolas no podem ser mantidas no improviso, como ocorre em alguns Estados. preciso que tenham oramento prprio, corpo docente capacitado, tanto fixo como complementado por professores visitantes, assim como propostas pedaggicas concretizadas em currculos escolares, etc;

2) A ambientao deve se voltar a estagirios, novos tcnicos e novos agentes de segurana recm ingressos, assim como voluntrios que esto inseridos em atividades religiosas, culturais ou de lazer, parceiros de programas de trabalho e de assistncia a egressos. A ambientao visa inserir, de forma mais segura e produtiva, novos atores no contexto prisional;

3) A capacitao continuada busca instrumentalizar o pessoal penitencirio com novos conhecimentos, organizar e sistematizar o conhecimento emprico adquirido na prtica cotidiana e oferecer novas habilidades diante do desafio do acelerado desenvolvimento tecnolgico, tornando a participao dos trabalhadores das prises mais produtiva, tanto no desempenho que lhes requerido, como na construo de sua auto-estima.

A capacitao continuada uma estratgia que acentua o elo do trabalhador com a prtica que exercita e sua sistematizao terico-metodolgica. importante ficar claro que no existe um fazer acabado, soberano e inquestionvel, mas sujeito a reformulaes face disposio de refletir e refazer a prtica cotidiana na dinamicidade da vida institucional;

4) Reviso das prticas de gesto prisional destinada aos gestores inseridos nas diversas instncias da estrutura organizacional: direes, assessorias, chefias intermedirias e de vnculo direto com a populao de funcionrios;

5) Capacitao de pessoal das diversas reas para o exerccio da superviso tcnica aos grupamentos profissionais. A figura do supervisor se coloca como aquele que possibilita no cotidiano discutir com seus pares os conflitos institucionais existentes, os objetivos das aes e elaborao e avaliao dos projetos e outros pontos trazidos como uma necessidade pelos supervisionados. A capacitao formulada pelo Programa das Escolas se constitui em eventos cursos, seminrios, por exemplo, enquanto que a superviso acompanha o desempenho dos profissionais cotidianamente. Formar supervisores, como uma atribuio das Escolas, requer que as istraes Penitencirias creditem aos programas de Superviso o objetivo de desenvolvimento contnuo dos trabalhadores, assim como estabeleam o fluxo de comunicao dos profissionais da ponta, que atuam junto aos presos e familiares com as assessorias e direes superiores.

7. Gesto de Pessoal

7.1. Recrutamento e Seleo

7.1.1. Recrutamento

Ao nos reportarmos gesto de pessoal, teceremos alguns comentrios acerca de recrutamento e seleo do pessoal penitencirio, assim como sobre planos de cargos e salrios. Foram fonte de anlise os documentos encaminhados pelos sistemas penitencirios de alguns estados. Face avaliao do material colhido, apresentaremos algumas proposies que no podem ser vistas de forma dissociada da capacitao profissional de pessoal, tem j discutido anteriormente.

Iniciamos pelas condies de recrutamento realizado majoritariamente por rgos pblicos, para preencher cargos da organizao istrativa do Estado. Vale lembrar que, em pelo menos trs estados onde existem unidades terceirizadas (privatizadas), o recrutamento e seleo se fazem atravs de empresas privadas. Devese notar que no existe no pas uma poltica de recrutamento e seleo orietadora dessas atividades operadas pelo estado. Portanto, no surpresa encontrarmos uma diversidade de critrios de recrutamento e seleo, sem que se tenham fundamentos claros para tal, mesmo levando em conta a diferente dimenso de sistemas prisionais nos estados. O que importa salientar que as funes de trabalho na custdia e na assistncia tm uma mesma finalidade em diferentes cenrios, uma vez que regidas pela mesma Lei de Execuo Penal. Chamamos ateno, como mencionado no item 4.3.3, que os gestores do sistema penitencirio no Brasil no encontram nenhum parmetro legal que oriente a rea da segurana penitenciria.

Para facilitar a compreenso desta diversidade que aparece nos critrios utilizados pelos estados, listamos algumas categorias constantes dos editais de concursos pblicos. Quanto ao recrutamento, as exigncias para inscrio variam a cada ano no mesmo estado e de estado para estado, conforme descrito abaixo:

Idade mnima

A maioria dos estados exige a idade mnima de 18 anos para isso aos variados cargos dos sistemas penitencirios. Entretanto, observouse variaes entre editais de anos diferentes, no prprio estado: ora exigem 18 anos, ora 21 anos. Apenas um estados no limita a idade mnima para isso ao cargo de agente penitencirio, porm exige a escolaridade de ensino superior completo, o que faz supor que a idade mnima esteja em torno de 20 anos, pelo menos.

Carteira de habilitao

Todos os editais exigem a carteira de habilitao para motorista, indiferentemente dos cargos.

Altura mnima

A altura mnima exigida na maioria dos estados de 1,65cm para homens e 1,60cm para mulheres, no cargo de agente penitencirio. Entretanto h variaes entre editais do prprio estado, quanto altura das mulheres: uns exigem1,60cm e outros 1,55cm.

Vagas destinadas aos portadores de necessidades especiais

A maioria dos editais garante um percentual de vagas para os portadores de necessidades especiais, como determina legislao especfica, porm os candidatos sero avaliados por ocasio do exame mdico quanto adequao da deficincia funo a ser exercida. Entretanto, observase nos editais de alguns estados, a expressa proibio de inscrio aos portadores de necessidades especiais, justificadas pela incompatibilidade com a funo de agente penitencirio.

Incidncia de vagas

A maioria dos concursos se destina ao preenchimento de vagas para o cargo de agente penitencirio. Alguns estados realizaram concursos para cargos na rea das assistncias, porm o nmero de vagas oferecido foi bastante reduzido. Cabe salientar que em alguns estados da federao no existem profissionais da rea das assistncias, sendo as mesmas prestadas por profissionais cedidos de outros rgos do estado ou por agentes penitencirios com formao acadmica na rea especfica, desviados de funo.

Observase que em nenhum dos editais foram oferecidas vagas para cargos na rea da assistncia jurdica. Levando-se em conta que muitos estados no contam com Defensorias Pblicas, muito grave tal constatao.

Escolaridade:

Quanto ao nvel de escolaridade, a maioria dos estados exige o ensino mdio completo para o cargo de agente penitencirio e o curso tcnico para reas especficas, como por exemplo, auxiliar de enfermagem. Para cargos istrativos e de servios gerais exigido o ensino fundamental completo ou incompleto, ou o ensino mdio completo, conforme a funo. Apenas um estado, aps a criao do Plano de Cargos e Salrios, ou a exigir o ensino superior completo para o cargo de Agente Penitencirio. Na rea das assistncias exigida a graduao plena, com os registros nos respectivos Conselhos Regionais.

7.1.2. Seleo

As etapas de seleo dos candidatos variam entre os estados, porm a prova escrita, objetiva, comum a todos, diferenciando-se apenas nas disciplinas e nos contedos exigidos. Em alguns estados, na prova para o cargo de Agente Penitencirio, constam as disciplinas de Portugus, Matemtica, Histria, Geografia e conhecimentos especficos.

Em outros estados, so exigidas apenas as disciplinas de Portugus, Matemtica e Conhecimentos Especficos para o cargo de agente penitencirio. Para os cargos da rea das assistncias, uma nica exigncia geral: a de conhecimentos especficos da rea de atuao. Cabe destacar que na maioria dos estados, os editais no exigem conhecimentos no campo da Criminologia e da Justia Criminal, ou mesmo, execuo penal. Apenas alguns editais para concurso de agente penitencirio incluram tais exigncias. Na maioria dos estados, a pontuao mnima exigida na prova objetiva de 50 pontos para todos os cargos. Observou-se, entretanto,que em alguns estados, em anos diferentes, esse critrio se modificou, apenas para o cargo de agente penitencirio, ando a exigirse a pontuao mnima de 60 pontos. Todos os editais analisados incluem prova de aptido fsica para o cargo de agente penitencirio, de carter eliminatrio, realizada, na maioria dos estados, nas Academias de Polcia Civil ou Militar.

A prova de ttulos para os cargos da rea das assistncias se constitui na segunda etapa do processo seletivo. Em alguns estados, a prova de ttulos tambm exigida para os cargos de agente penitencirio e para servios gerais. Esta etapa tem o carter classificatrio. O exame mdico, de carter eliminatrio, exigido para todas as categorias profissionais. Os portadores de necessidades especiais so avaliados conforme sua deficincia e funo a ser desempenhada. O exame psicotcnico, ou avaliao psicolgica, no comum a todos os estados, mas naqueles em que aparece tal exigncia, o mesmo tem carter eliminatrio. Cabe destacar que em todos os estados, o Curso de Capacitao Profissional, na verdade, uma das etapas do processo seletivo, exigido apenas para o cargo de agente penitencirio e tem o carter eliminatrio. Em alguns estados tambm classificatrio. A carga horria dos cursos varia de 80 horas/aula a 720 horas/aula. Os rgos que ministram o curso tambm diferem entre os estados: naqueles que contam com Escola de Formao Penitenciria, as aulas tericas so a ministradas, e as aulas prticas (defesa pessoal, utilizao de armas, etc) so realizadas nas academias de polcia. Nos estados que no possuem escola, que so a maioria, o curso ministrado pelo DEPEN ou por profissionais do prprio sistema penitencirio, ou ainda por outros profissionais de rgos da segurana pblica e professores universitrios.

Observase que a qualidade e o nvel de exigncia dos cursos esto relacionados com a poltica penitenciria do estado e, conseqentemente, com a infra-estrutura existente. Entre os Editais analisados observou-se que apenas dois estados incluem, entre as etapas do processo seletivo, a investigao social: o Rio de Janeiro e o Cear.

7.1.3. Salrios

Poucos foram os editais que mencionaram o valor dos salrios. Entre os salrios apresentados, para as diversas categorias, observase uma grande diversidade. A maioria oferece salrios muito baixos, com exceo de Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Rondnia, Rio de Janeiro e Distrito Federal, onde os salrios variam de R$700,00 a R$3.000,00, respectivamente. Nos demais estados, a mdia dos salrios de R$500,00 para as diferentes reas. Tal diversidade est a indicar a necessidade da criao de Planos de Cargos e Salrios para a rea dos sistemas penitencirios, o que tambm deveria contar com orientao partindo do DEPEN. Por outro lado, isto tambm reflete a necessidade de uma poltica penitenciria que priorize a valorizao dos servidores, possibilitando a perspectiva de ascenso profissional, aperfeioamento e melhoria salarial.

7.2. Planos de Cargos e Salrios

Em se tratando de Planos de Cargos e Salrios dos funcionrios dos sistemas penitencirios no pas, verifica-se que 70,8% das istraes pblicas estaduais ainda no se ocuparam de elabor-los, ou mesmo de oficializ-los. Esta uma questo seguidamente lembrada pelos funcionrios, diante de sua insatisfao com a falta de perspectivas mais promissoras de asceno funcional. Pode-se levantar algumas questes quanto ausncia desses Planos, na maioria dos estados:

1. Seriam os funcionrios das prises vistos com algum preconceito por parte da istrao pblica superior, face a seu objeto de trabalho?

2. Seria o movimento sindical, na rea dos sistemas penitencirios, ainda muito incipiente, isolado do movimento mais geral do funcionalismo pblico, no sentido de lutar por tais planos? Contribuiria para a fragilidade do movimento sindical nos sistemas penitencirios a pulverizao existente de associaes e sindicatos, abrigando diferentes categorias profissionais no cenrio de cada estado?

3. Esta fragilidade poderia ser vista como resultado do arrefecimento do movimento sindical dos trabalhadores no pas, face precarizao das relaes de trabalho e da competitividade no mercado?

Na verdade, talvez a resposta a essas perguntas seja positiva. Logo, preciso refletir sobre a falta de Planos de Cargos e Salrios a partir de uma perspectiva poltica, e no apenas tcnico-istrativa e fundamental a participao do DEPEN para que se saia do imobilismo e se comece a discutir, com seriedade, o que provoca a falta de Planos de Cargos e Salrios. importante observar, tambm, que no relatrio do Encontro Nacional das Escolas Penitencirias, realizado nos dias 12, 13 e 14 de novembro de 2003, os representantes das cinco escolas existentes no Brasil no incluram em suas propostas a necessidade e a importncia de um Plano de Cargos e Salrios, muito menos mencionaram a necessidade do aperfeioamento profissional vinculado a qualquer Plano. Percebe-se, assim, o longo caminho que ainda necessita ser percorrido para se criar uma gesto prisional baseada na competncia e no conhecimento, critrios norteadores de Planos de Cargos e Salrios em outros campos profissionais e instituies. Por ltimo, cabe assinalar que, dentre os documentos analisados, encontram-se os Planos de Cargos e Salrios dos sistemas penitencirios do Rio Grande do Sul e Mato Grosso do Sul, os nicos estados que enviaram coordenao deste trabalho tal material. Vale assinalar que esses Planos podem ser referencial para outros estados e, entre suas caractersticas positivas, esto a de se utilizarem da titulao de nvel mdio, superior e de ps-graduao, como critrio para asceno funcional e retribuio salarial.

7.3. Algumas Propostas

Diante do exposto, propomos a construo de uma poltica nacional pelo DEPEN, norteadora no s do processo de recrutamento e seleo do pessoal penitencirio, como tambm de planos de carreira. Tal poltica deve considerar os seguintes pontos:

Contedo programtico nico para todos os cargos, inclusive para aqueles da rea das assistncias, versando sobre legislao especfica do campo da execuo penal, do funcionamento do sistema penitencirio e do estatuto do funcionalismo de cada Estado;

Criao do cargo de assistente jurdico e, conseqentemente, concurso para preenchimento de vagas;

Incluso dos profissionais da rea das assistncias, recm-aprovados, ou em exerccio, nos Cursos de Capacitao Profissional (ambientao e aperfeioamento profissional, respectivamente);

Currculo bsico para os cursos de capacitao (ambientao e de aperfeioamento profissional), de boa qualidade, ampliando a formao dos novos servidores para alm da questo da segurana, vigilncia e disciplina, de modo a permitir uma reflexo sobre a sua funo enquanto custodiador;

Criao de um Plano de Carreira, Cargos e Salrios para os servidores do sistema penitencirio, que priorize a formao profissional como forma de ascenso funcional;

Parcerias com instituies acadmicas para realizao de cursos de especializao na rea da execuo penal.

7.4. Sade do Trabalhador

Na rea do sistema penitencirio, um programa de sade do trabalhador consiste em oferecer assistncia mdica, odontolgica, psicolgica e social, bom como desenvolver aes especficas de promoo da sade e preveno de doenas aos profissionais das unidades prisionais.

Os agentes penitencirios so os trabalhadores encarregados de revistar presos, celas, visitantes, conduzir presos, realizar a vigilncia interna das unidades e disciplinar a refeio dos presos. Por terem contato direto com os internos e sendo vistos por estes como um dos responsveis pela manuteno do seu confinamento, estes trabalhadores esto freqentemente expostos a diversas situaes geradoras de acentuado estresse. Todos os outros profissionais que labutam no sistema penitencirio, embora sem contato prximo, dirio e regular com os internos, tambm sofrem o impacto da tenso presente no ambiente prisional. Assim, um programa de sade do trabalhador do sistema penitencirio, deveria ter como atribuies:

Estabelecer os padres profissiogrficos de todas as funes e cargos no mbito do sistema penitencirio e sua aplicabilidade quando da isso do trabalhador, garantindo-se desse modo uma efetiva aptido fsica e psquica para estas atividades laborativas.

Promoo da Sade e preveno de doenas, ocupacionais ou no, tais como Hepatite B, Ttano/difteria (por meio de vacinao), HA, diabetes, DSTs, depresso, entre outras (atravs de informaes sobre mudanas de hbitos de vida e comportamento).

Deteco dos agravos Sade relacionados com o trabalho, atravs de:

1. Estudos epidemiolgicos que visem estabelecer nexo causal entre as doenas mais comuns apresentadas pelos servidores e suas diversas atividades;

2. Inspeo peridica aos locais de trabalho avaliando suas condies fsicas ambientais e conseqentes riscos sade dos funcionrios;

3. Permanente dilogo com o setor de Recursos Humanos avaliando as rotinas de trabalho, conflitos interpessoais, etc;

Preveno de acidentes de trabalho, atravs de palestras, folders e cartazes;

Acompanhamento de casos de acidente de trabalho pelo servio de assistncia, em especial aos acidentes com material biolgico.

Realizao de exames peridicos anuais.

Realizao de exames periciais nos casos de afastamento por doenas.

Acompanhamento de doenas crnicas (j instaladas) e contagiosas, visando a parada de progresso das mesmas.

Acompanhamento pelo Servio Social dos casos de readaptao no trabalho (com reduo ou no de carga horria, etc).

Acompanhamento, atravs de exames mensais, dos agentes novos em fase de estgio probatrio/experimental a fim de detectar doenas mentais, preexistentes/latentes, por profissionais das reas da psiquiatria e psicologia.

8. Outros Temas

8.1. A Especificidade da Mulher Presa

Como se sabe, a priso representa uma caricatura da sociedade em geral. Por um lado ela um espao que reproduz as condies de excluso das mulheres, segundo vivenciadas no mundo de fora. Por outro lado, intensifica alguns males da sociedade em forma perversa, porque infantiliza as pessoas (ao controlar todos os aspectos de suas vidas e faz-las dependentes de uma autoridade externa) e, ao mesmo tempo, exige delas maturidade para declar-las ressocializadas.

Assim, cabe lembrar que o crcere uma instituio totalizante e despersonalizadora, na qual predomina a desconfiana e onde a violncia se converte em instrumento de troca. Essas caractersticas correspondem s prises em geral, mas so muito mais marcantes em prises de mulheres.

Do conjunto de pessoas que compem a massa carcerria, a mulher no se destaca. Na Amrica Latina, a porcentagem de presas oscila, aproximadamente, entre 3% e 9% da populao carcerria. No Brasil, representa 4,33% dos presos.14 A reduzida presena numrica da mulher no sistema prisional tem provocado o desinteresse, tanto de pesquisadores como das autoridades, e a decorrente invisibilizao das necessidades femininas nas polticas penitencirias, que em geral se ajustam aos modelos tipicamente masculinos.15 O perfil da mulher reclusa demonstra o quanto ela integra as estatsticas da marginalidade e da excluso: a maioria no branca, tem filhos, apresenta escolaridade incipiente e conduta delitiva que se caracteriza pela menor gravidade, vinculao com o patrimnio e reduzida participao na distribuio de poder, salvo contadas excees. Esse quadro sustenta a associao da priso desigualdade social, discriminao e seletividade do sistema de justia penal, que acaba punindo os mais vulnerveis, sob categorias de raa, renda e gnero.16

8.1.1. Legislao Penitenciria sob um Olhar de Gnero

Uma leitura detalhada e focalizada na busca de referncias sobre a mulher reclusa nos leva a constatar que so escassas as disposies que dela se ocupam. Existem poucas referncias na Constituio Federal, na Lei de Execuo Penal, que regulamenta os dispositivos constitucionais, e em alguns regimentos estaduais para os estabelecimentos prisionais. Os referidos diplomas legais regularam acertadamente a situao especial da mulher, mas o fizeram de forma demasiado tmida, sem abranger a totalidade de suas necessidades e impondo parmetros veis de interpretao conservadora, em especial no que tange formao profissional feminina na priso. No artigo 19 da LEP, que trata da assistncia educacional, menciona-se que a mulher condenada ter ensino profissional adequado a sua condio, sem evidenciar o significado da expresso condio feminina. Acreditamos que a diferena de gnero no representa critrio legtimo no que concerne organizao de cursos de formao profissionalizante diferenciados. A mulher tem ingressado em espaos de trabalho antes tipicamente masculinos, e vem tendo sucesso ao lidar com situaes complexas. Dispositivos que imponham limitaes baseadas em argumentos ambguos e de mltipla interpretao devem ser objeto de concentrada ateno, porquanto se trata de situao que pode provocar abuso de poder e facilitar a transgresso do direito igualdade.

Por outro lado, uma caracterstica comum naqueles textos o suposto carter de neutralidade. Porm, entendemos que a redao de uma norma no ter tal carter na medida em que fizer referncia exclusiva ao homem, perfil que corresponde maioria dos textos legislativos em matria penitenciria.

Existem de fato citaes sobre a mulher presa, porm os referidos documentos limitamse a regular aspectos ligados maternidade. Nossa inteno no , tampouco, negar a importncia de uma norma a esse respeito; o que pretendemos chamar a ateno para a identificao da mulher com um nico papel, como se o universo feminino, composto por necessidades e recursos prprios e diversos, pudesse ser representado apenas pela funo de me. Se a esse tpico somarmos a pretendida neutralidade na redao dos artigos da LEP nos indicativos da visita ntima, concluiremos que a norma (e a prtica) nega a sexualidade da mulher quando esta se vincula ao exerccio da liberdade sexual e, contrariamente, a refora quando a mulher identificada com o papel materno. importante a anlise de alguns temas pontuais:

A questo da sade

A questo da sade representa um problema fundamental no contexto prisional feminino, porquanto ela forma parte das recorrentes demandas das mulheres presas no s em penitencirias, mas tambm em cadeias pblicas e distritos policiais.17 Por essa razo as polticas de sade devem abranger tanto o mbito dos sistemas penitencirios (que istram as penitencirias) quanto o de segurana pblica (que istra cadeias e distritos policiais).

Restringindo nossa anlise ao mbito normativo podemos asseverar que no texto da LEP (artigo 14) que trata do direito de assistncia sade, l-se que esse direito se efetivar com a contratao de mdico, farmacutico e odontologista no existindo nenhuma indicao necessidade de contratao de ginecologista, especialidade vital no controle de doenas que vitimizam as mulheres (cncer de mama, cncer de colo uterino, etc) e no acompanhamento pr-natal.

A questo do trabalho

A maioria das mulheres presas trabalhou antes de sua priso.18 Aps o ingresso na priso, essas mulheres continuam trabalhando, embora nem sempre realizem atividades reconhecidas oficialmente. A valorao do trabalho como meio de obteno de liberdade conjuga-se com a importncia que tem essa atividade para o trabalhador por garantir sua subsistncia, e nessa interseo se confundem os interesses do trabalhador na priso com os daquele que se encontra no meio livre. Porm, a aproximao de interesses relativizada quando percebemos que a condio de subsistncia difere da do senso comum, porquanto seu carter utilitrio no se vincula ao lucro nem ao consumo (ao menos no exclusivamente), mas possibilidade de afast-los da realidade e de lhes ocupar o tempo livre. O tempo ocioso pode se converter no pior inimigo do recluso, no s porque no entender das autoridades sugere vadiagem e fracasso do tratamento ressocializador, mas tambm porque favorece o envolvimento em ilegalidades.19 Da a importncia de proporcionar todas as condies para que o trabalho possa ser realizado no interior dos crceres.

Por outro lado, a restrio do exerccio de direitos trabalhistas prejudica s trabalhadoras presas e, especialmente quelas que engravidam. Segundo a Consolidao das Leis Trabalhistas (CLT), a mulher trabalhadora tem direito licena-maternidade por 120 dias correspondentes aos perodos pr e ps-parto20 e o direito de no ser demitida nesse perodo, salvo justa causa expressamente comprovada. Como inexiste a possibilidade de apelar CLT (segundo o artigo 28 da LEP) quando se trata de trabalho carcerrio, a presa que presta servios corre o risco de ser demitida e prejudicada como conseqncia de sua gravidez.

Finalmente, cabe destacar que o trabalho exercido na priso deve se distanciar das prticas de manipulao, sometimento e de imposio de modelos conservadores de feminilidade ou de mulher normal, e deve ar a ser entendido como um direito de base constitucional e, ao mesmo tempo, como uma alternativa de resistncia degradao do crcere.

A questo da famlia

Um dos aspectos cruciais nas aflies provocadas pela deteno entre as mulheres presas o distanciamento da famlia. Essa afirmao deve ser confrontada com os dados estatsticos que do conta de que entre 65% e 90% das mulheres presas so mes e aproximadamente 60% so chefes de famlia, ou seja, representam a principal fonte de renda do lar.

Em pesquisa sobre a visita ntima, a Coordenadoria de Sade da Secretaria de istrao Penitenciria de So Paulo recolheu informaes dos presdios femininos do Estado de modo a identificar o contexto familiar das mulheres. Na Penitenciria Feminina da Capital21 82,87% declararam ter filhos22 , dos quais 59,12% vivem com a famlia da reclusa; o marido (ou ex-marido) conservou a guarda s em 6,07% dos casos. A residncia dos filhos est localizada em 42,55% dos casos na capital, em 32,45%, no interior ou no litoral e na porcentagem restante, em outros estados ou pases. Tais informaes confirmam o abandono de que so vtimas as mulheres na priso. Ademais, podemos deduzir que a condenao das mulheres recai no s sobre elas, mas tambm sobre os filhos, vtimas indiretas da sano estatal. Esses dados sugerem a necessidade de criar presdios menores perto das localidades de procedncia das mulheres presas, para dessa forma manter o binmio preso-famlia, e assim facilitar a reintegrao, uma vez readquirida a liberdade .

O o informao

Outro fator que condiciona o cotidiano na priso, alm do silncio, das mltiplas e pequenas regras, da monotonia, da rigorosidade da disciplina, da despersonalizao e da perda de autocontrole, a limitao do o informao. Essa ignorncia persistente gera desorientao e estimula, ainda mais, a docilidade como valor absoluto. Nas prises femininas, o valor docilidade adquire significao especial na medida em que tenta reproduzir os padres femininos como regra de conduta. A no-adequao a esses padres provoca maior represso por gerar o entendimento de que se pretende fugir do modelo de mulher normal, e pode redundar em avaliao negativa no tocante aos laudos e pareceres de tcnicos. Nesse sentido, convm fortalecer um discurso crtico que incorpore a perspectiva de gnero nos cursos de formao de agentes e tcnicos penitencirios.

Intensificando ainda mais a desinformao, observa-se o desconhecimento da maioria das mulheres presas sobre sua situao jurdica ou sobre processos istrativos a que esteja submetida na unidade prisional. Portanto, sugere-se implementar canais de informao sobre os direitos das presas, garantindo maior transparncia de informaes processuais e istrativas nos estabelecimentos prisionais (via a divulgao das regras internas ao presdio, por exemplo). Para ampliar o direito s informaes processuais, deveriam ser criados mecanismos de formao e educao em direitos e cidadania s presas, no sentido de capacit-las, no s para a compreenso de sua realidade jurdica como condenada / acusada, mas tambm visando sua reinsero social.

Reintegrao social

Para atingir esse objetivo preciso promover mecanismos de sensibilizao sobre a realidade prisional e sobre a necessidade de um papel ativo da sociedade na reintegrao das mulheres encarceradas, seja atravs dos meios de comunicao, seja via a incorporao nas grades curriculares das escolas e universidades destas temticas. Nesse contexto, devese estimular a constituio de Conselhos da Comunidade em todas as comarcas, garantindo a aproximao efetiva da sociedade civil organizada s prises.

8.1.2. A Questo das Creches

O crescimento do nmero de presos no pas, acarreta o aumento do nmero de crianas que vivem a experincia de terem seus pais ou suas mes encarceradas. Como uma populao esquecida, essas crianas sofrem o impacto de polticas pblicas que desconsideram suas necessidades para um desenvolvimento psicolgico saudvel. Os dados estatsticos da literatura internacional mostram que, quando o pai preso, a maioria das crianas continua sendo cuidada por sua me. Contudo, quando da priso materna, somente 10% das crianas continuam sendo cuidadas pelos companheiros das mes.23 Segundo dados constantes do Anexo 1 deste trabalho, atualmente no Brasil cerca de 4,1% da populao carcerria composta por mulheres e assim como os homens so jovens e com filhos.

No Brasil, quando uma me presa, existem trs possibilidades para a guarda de seus filhos pequenos (0 a 6 anos): em instituio de abrigo, em famlia substituta (que pode ser a sua famlia ampliada) ou no berrio e/ou creche do presdio. Os poucos e desatualizados dados brasileiros indicam que a maioria das crianas filhas de mulheres presas acaba sendo cuidada por suas avs maternas (51%).24 A guarda em presdio bastante polmica e complexa, talvez em decorrncia do ambiente prisional e das relaes estabelecidas em seu interior no serem as mais adequadas para o acolhimento da relao me-beb e para o saudvel desenvolvimento infantil, mas tambm pela delinqncia materna ferir o esteretipo da boa me.25 Insinua-se que a mulher criminosa apresenta um real perigo para a sociedade, mais do que muitos homens perigosos e violentos, por seu potencial de influenciar seus filhos e, possivelmente, encoraj-los a atitudes criminosas 26 A literatura internacional relata diversas experincias de creches em presdios femininos e apresenta argumentos favorveis e contrrios permanncia de crianas em seu interior.

Em outros pases como Estados Unidos, Austrlia, Frana, Alemanha a maioria das experincias de guarda de crianas em presdios so desenvolvidas durante o perodo de amamentao, pois vrias instituies defendem a permanncia da criana com a me nos primeiros meses de vida, por considerarem-na saudvel para o relacionamento me-criana, reforando laos e contribuindo para a posterior reinsero social da presa.27Um problema relatado quanto a esse tipo de guarda a tenso entre as necessidades de um beb e os regulamentos institucionais de um presdio, ou seja, o exerccio de sua funo bsica de punio. Sarradet,28 que estudou as crianas que vivem em presdios na Frana (onde a criana pode ficar em creche no interior de uma unidade prisional, junto com sua me, at completar dezoito meses) afirma que, a princpio e juridicamente, a criana no privada de sua liberdade; entretanto, no seu cotidiano, ela apresentada a um mundo de vigilncia, cheio de celas e guardas. Em resumo, a criana a a ser encarcerada tanto quanto sua me, apresentando um problema de cunho jurdico.

Do ponto de vista desenvolvimental a priso no o ambiente mais adequado ao desenvolvimento humano, especialmente o infantil, ainda mais no que se refere s insalubres instalaes das prises brasileiras. Vrios tericos do desenvolvimento humano, no entanto, destacam que o contato inicial com a me, ou algum que a substitua, essencial para a formao da personalidade de crianas e para seu desenvolvimento emocional e alguns defendem a idia de que por mais que seja traumtica a separao me-beb aps a primeira metade do primeiro ano de vida, esses bebs se recuperam melhor e mais rapidamente se tiveram a oportunidade de desenvolver e vivenciar um importante apego emocional com a me ou outra cuidadora antes da separao. Na legislao brasileira so assegurados os direitos dos presos para o exerccio da paternidade, especialmente o da maternidade, como se v no quadro 1.

Quadro 1

Artigos de leis, indicaes de direitos e diretrizes quanto maternidade e/ou paternidade no contexto prisional, na legislao brasileira

Direito/Indicao Lei Artigo

Direito amamentao

Constituio Federal 1988

Estatuto da Criana e do Adolescente 1990

Regras mnimas para o tratamento do preso no Brasil (Ministrio da Justia,1995)

Art. 5 - L- s presidirias sero asseguradas as condies para que possam permanecer com seus filhos durante o perodo de amamentao.

Art. 9 -O Poder Pblico, as instituies e os empregadores propiciaro condies adequadas ao aleitamento materno, inclusive aos filhos de mes submetidas a medida privativa de liberdade.

Art.7 so asseguradas as condies para que a presa possa permanecer com seus filhos durante a amamentao dos mesmos.

Direito berrio/amamentao

Lei de Execuo Penal 1984

Art. 83 - 2 - Os estabelecimentos penais destinados mulher sero dotados de berrio, onde as condenadas possam amamentar seus filhos.

Indicao de assistncia criana desamparada pela priso

Lei de Execuo Penal 1984

Art. 89* Alm dos requisitos no artigo anterior, a penitenciria de mulheres poder ser dotada de seo para gestante e parturiente e de creche com a finalidade de assistir ao menor desamparado, cuja responsvel esteja presa.

Fonte: Stella (2001, 244)

Da tica da criana, a Constituio Federal (art. 208) e o Estatuto da Criana e Adolescente (art.54) determinam que direito da criana de 0 a 6 anos o atendimento em creche e pr-escola, sem especificar em que condies e como garantir esse direito. Em estudo descritivo sobre as creches no sistema penitencirio brasileiro, Santa Rita29 enviou um questionrio para as 28 (vinte e oito) unidades30 identificadas pelo Depen como de crcere feminino. Esse questionrio foi respondido pela direo do presdio e seu objetivo era avaliar a existncia ou no de creche em seu interior, bem como a infraestrutura disponvel para o atendimento das crianas.

O estudo de Santa Rita verificou que: no Brasil existem 10 creches em estabelecimentos prisionais femininos atendendo 69 crianas; alguns presdios de forma improvisada atendem as crianas no perodo de amamentao, mesmo no contando com infra-estrutura de creche; a grande maioria das 49 crianas atendidas no sistema era composta por recmnascidos, no havendo registro de crianas com idades entre 4 e 6 anos. Quanto ao quadro de recursos humanos a pesquisa mostrou que as prprias presas e tcnicas de segurana atuavam como educadoras e que somente 14% dos profissionais eram tcnicos de nvel superior e mdio, ligados a reas de sade e educao, o que pode refletir em ausncias de aes psicopedaggicas tanto para as crianas, como para suas mes. Com base nas consideraes acima, possvel elencar algumas sugestes de atendimento a crianas pequenas, nas instituies prisionais femininas:

. Primeiramente devemos saber quantas so e onde esto essas crianas, para propor uma poltica pblica adequada populao, incluindo os filhos de mes que se encontram presas em cadeias e delegacias;

. Devemos pensar em atendimento de qualidade para essas crianas com infraestrutura adequada, com quadro de educadores e tcnicos especializados e propostas psico-pedaggicas adequadas que propiciassem o desenvolvimento integral das crianas e suas mes, bem como o fortalecimento de vnculos para posterior recuperao da guarda da criana pela me;

. Outra sugesto diz respeito a diferentes atendimentos conforme a faixa etria da criana. Para crianas de 0 a 3 anos que precisam de cuidados integrais, o presdio deve proporcionar o alojamento conjunto com todas as questes propostas no item anterior, onde o vnculo e a interao me-beb pudessem ser fortificados. Para crianas de 3 a 6 anos essencial que a criana entre em contato com meios sociais mais amplos, portanto essas crianas deveriam ser includas no sistema pblico de educao, onde pudessem desfrutar de polticas educacionais adequadas para o seu desenvolvimento e ar o dia, ou uma parte dele, convivendo com outras crianas e adultos fora dos muros prisionais, mas que pudessem retornar para o convvio de suas mes no alojamento conjunto no final do dia. Um dos desafios do sistema penitencirio brasileiro o desenvolvimento de propostas e estratgias envolvendo mes encarceradas, crianas, profissionais e es que minimizem ou reduzam os impactos da priso materna, potencialmente perversos para o desenvolvimento da criana. No universo da priso feminina a me pode at ser culpada, mas as crianas no o so, embora acabem bastante penalizadas.

8.2. A Questo do Egresso Penitencirio

Para discutir a questo do egresso penitencirio, preciso saber, antes de mais nada, em que condies os sujeitos em situao de privao de liberdade, entendidos como produtos de um sistema prisional complexo e ineficiente, voltam s ruas e ao convvio social. Quais as condies que tm para restabelecer vnculos primrios e secundrios? Atualmente a quantidade de egressos menor do que a de ingressos no sistema prisional, especialmente em So Paulo, o que indica tempo de permanncia maior desses indivduos, geralmente jovens, nos estabelecimentos prisionais. O que esperar daqueles que saem das prises brasileiras todos os dias?

Em pesquisa de campo sobre egressos do sistema penitencirio, desenvolvida no Programa de Estudos Ps-Graduados em Cincias Sociais da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, foram entrevistados, desde o ano dois mil at o ano de dois mil e trs, cerca de duzentos homens, egressos do sistema prisional brasileiro, mais especificamente, das penitencirias paulistas, aps o cumprimento de penas que variam de trs a trinta anos. Esses homens foram classificados conforme o delito praticado e o tempo de permanncia em regime fechado. A maioria deles foi entrevistada em seus locais de moradia temporria ou fixa, sejam albergues ou nas casas de suas famlias. Muito embora a amostra principal da pesquisa citada reporte-se a So Paulo, egressos de outros estados tambm foram entrevistados para testar a possibilidade de generalizao dos dados encontrados em So Paulo. Foram entrevistados egressos do sistema penitencirio de Porto Alegre, do Rio de Janeiro, de Belo Horizonte, de Salvador, de Recife e de Belm. Poucas so as variveis que no se tornaram recorrentes nessas outras capitais, entretanto as singularidades da cultura local foram percebidas. Tambm foi mapeado, em todo o Brasil, projetos de apoio aos egressos do sistema penitencirio.

A realidade dos homens e mulheres que saem das prises, aqui denominados egressos, a pior possvel. Representa o resultado da pedagogia da ociosidade, da improdutividade, do terror, e da contraditoriedade, empregada no sistema penitencirio brasileiro. A sada desses homens e mulheres da priso d-se sem nenhum planejamento prvio. A morosidade de encaminhamento dos processos penais e o excesso de burocracia do judicirio so fatores impeditivos da previso de progresso de regime ou de obteno de liberdade, dentro das penitencirias, que por sua vez tambm so desorganizadas em suas assistncias jurdicas. Assim, no incomum o grito te prepara pra sair, quando os agentes informam aos presos que a sua sada ser quase que imediata, aps anos de aprisionamento.

Ainda que desejada, essa liberdade amedronta por representar o incio desorganizado de vidas, das quais a sociedade cobra reorganizao. Homens e mulheres migram, rapidamente, da situao de aprisionados para a situao de egressos do sistema prisional. Muitos desses egressos no chegam a avisar as suas famlias da sua sada, outros nem sequer tm famlia e devero procurar, por conta prpria, albergues para pernoitar. Muitos saem sem nenhum recurso, nem mesmo para o transporte e no incomum que percorram vrios quilmetros, caminhando at suas casas ou abrigos provisrios. A chegada em casa nem sempre uma agradvel surpresa para ambos os lados, egressos e famlias, principalmente por representar o aumento do custo familiar e pela dificuldade no resgate dos vnculos. A dificuldade de se localizar na cidade e o medo de coisas simples como atravessar uma rua, tambm so freqentes, assim como a prdisposio paranica que muitos tm de identificarem em rostos alheios a percepo da sua condio de ex-preso.

A criao de servios de atendimento a egressos em todo o pas um o importante e est previsto no Plano Nacional de Segurana Pblica, do ento candidato Luis Incio Lula da Silva. A Pastoral Carcerria de So Paulo j mantm um servio dessa natureza, implantado no ano de dois mil, contando inclusive com a mo-de-obra de um egresso no setor de atendimento. Esses servios devem contar basicamente com profissionais qualificados nas reas de servio social, psicologia, sociologia e direito. No pas j existem servios dessa natureza em algumas capitais. fundamental a expanso quantitativa e qualitativa desses servios, muito embora seus custos sejam elevados, tendo em vista que auxlios bsicos e emergenciais devem estar disponveis, a exemplo de cestas bsicas, vales transportes, material de higiene pessoal, remdios, etc. A elaborao de cadastros atualizados de albergues, de locais para retirada de documentos, de postos mdicos, de postos de assistncia ao trabalhador, entre outros, o insumo bsico do servio a ser prestado. Embora, a princpio, este tipo de prestao de servios parea ter um carter assistencialista, esses locais de assistncia devem ser entendidos como ancoradouros para homens e mulheres que necessitam, muitas vezes, de atendimentos emergenciais orientadores na rea psicolgica, jurdica, mdica ou na rea da assistncia social. A condio de egresso do sistema penitencirio uma condio complexa por conjugar vrias demandas ao mesmo tempo, com a agravante da perda de referncias, objetivas e subjetivas, para lidar com elas.

O prprio conceito de egresso tambm guarda complexidade. Entendido como aquele que deixou o estabelecimento criminal onde cumpriu a sua sentena,31 esse tambm um conceito problemtico. Todos aqueles que saem oficialmente das prises podem ser considerados egressos. Entretanto, so caracterizados por diferentes tipologias de sada: alguns obtm a liberdade definitiva, outros solicitam e recebem benefcios aps cumprir parte da pena em regime fechado, como o caso dos que tm o benefcio da Priso Albergue Domiciliar PAD ou da Liberdade Condicional LC. Os dois ltimos so benefcios atribudos por juzes de direito, respeitando a especificidade de cada caso.

queles que saem em regime de Liberdade Condicional, muitas vezes exigido pelo juiz, uma carta de emprego. A carta pode ser exigida at mesmo antes da sada, como garantia para a obteno do benefcio, ou em at trinta dias da obteno do mesmo. Essa carta um documento no qual uma empresa privada, legalizada e em operao, assegura o vnculo empregatcio para o preso nominalmente citado. Dada a dificuldade que os egressos e as suas famlias tm em conseguir tal documento, absurdo diante da situao econmica e da crise de emprego vivida no pas, alguns juzes, atualmente, j desconsideram tal exigncia, mas essa ainda no uma postura generalizada. Alm dos altos ndices de desemprego que afligem a homens e a mulheres no fichados pela polcia, a manuteno dessa exigncia desconsidera a possibilidade do trabalho informal, adequado s habilidades que muitos egressos possuem, como as de marcenaria, carpintaria, de servios de pedreiro, de hidrulica, de eletricidade, entre outras.

Sem a obteno de qualificao especfica durante o perodo de priso, mesmo quando os egressos tm habilidades obtidas em perodos anteriores ao aprisionamento, sofrem defasagem dos seus conhecimentos, principalmente pelos avanos tecnolgicos incorporados a esses servios e pelas diferenas istrativas e gerenciais na prestao dos mesmos. O trabalho desenvolvido no crcere, atravs de empresas privadas, motivadas pelas isenes dos custos trabalhistas e previdencirios, atribui aos presos ocupados um trabalho especfico dentro do processo de produo uma especializao que no gera quase nenhuma reproduo de capital profissional, como o caso da costura de bolas e ou da colagem de pipas e das partes especficas da produo de vassouras. fundamental que as empresas que atuam no crcere tenham compromisso social com a causa do preso, at sua sada da priso. Essas empresas deveriam ter necessariamente programas de responsabilidade social em troca das redues que obtm nos seus custos trabalhistas. A atribuio de capacitao e de qualificao tcnica, gerencial e istrativa, deveria ser um atributo mnimo para a seleo dos empreendimentos a serem estabelecidos nos crceres.

O processo burocrtico de reabilitao diante da justia outro entrave para aqueles que obtm a liberdade definitiva. Na maioria das vezes, sem advogado e sem recursos para acompanhar o processo burocrtico, a reabilitao da condio civil torna-se lenta. O tempo de reabilitao para que os nomes dos egressos no mais apaream em relaes de indivduos com antecedentes criminais, pode chegar a dois anos. Alm de ser um processo demorado, seu trmite muito pouco claro para os egressos e at para as instituies que os auxiliam. Durante o tempo em que transcorrem os processos de reabilitao definitiva de seus nomes, os egressos, de modo geral, mostram-se inseguros para a procura de emprego com registro oficial na carteira de trabalho, assim como temerosos quanto s ocorrncias que envolvem a polcia.

No raro a deteno de egressos para averiguao, em batidas policiais, por ainda constarem seus nomes nos registros da polcia e do judicirio. Principalmente para aqueles que se encontram em liberdade condicional ou em priso albergue domiciliar e figuram nos sistemas informatizados da polcia como ainda presos, a insegurana ainda maior, uma vez que alguns policiais, pouco informados, entendem que por constarem em registros, essas pessoas podem estar sujeitas iminente captura.

Ao problema acima citado, a objetividade da justia indica como soluo a apresentao dos documentos oficiais de identificao do egresso: o alvar de soltura ou a carteira de liberdade condicional, assinada regularmente nas varas de execues. A apresentao de tais documentos deveria sanar as dvidas e evitar as detenes irregulares pela polcia. Ainda que a objetividade dessa soluo seja real, o carter subjetivo da questo pouco tratado. A carteira de identificao da condio de homem/mulher em dbito com a justia poderia ser aceita sem maiores atribuies simblicas negativas ao seu portador, se a sociedade confiasse na eficincia do modelo disciplinar e pedaggico das prises. Pelo contrrio, o descrdito na instituio prisional, entre outros fatores, gera diante desse documento uma tenso, tanto para quem o apresenta, como para quem a ele apresentado. Transforma-se o documento oficial em documento estigmatizante. Rever as formas de cadastramento e de identificao do sujeitos egressos do sistema prisional brasileiro, sem reforar as estigmatizaes, um dos pontos importantes para a melhor aceitao do egresso. Urge, tambm, a reviso nos procedimentos de atualizao dos dados do cadastro da polcia relativos a quem j cumpriu sua pena ou que est em liberdade condicional e/ou em priso albergue domiciliar.

A suspenso dos direitos civis de homens e mulheres, enquanto esto privados de liberdade implica, de forma objetiva, a apreenso32 dos documentos de regularidade civil, como o registro geral (RG), cadastro de pessoa fsica (F) e o ttulo de eleitor para aqueles que tinham esses documentos antes do seu encarceramento.33 Ao sarem das prises, entretanto, os egressos, por necessidade de auto-sustentao e algumas vezes por imposio judicial, so obrigados a imediata procura de emprego. Muitas instituies de apoio aos egressos os encaminham para os locais especficos de retirada de documentos, atravs de fichas de encaminhamento que de quase nada ou nada valem nos estabelecimentos pblicos responsveis por documentao civil. De modo geral, em quase todas as capitais do Brasil, os registros gerais podem ser retirados em delegacias de polcia e, em algumas capitais, eminstituio especfica que rene num s lugar vrios servios de rgos pblicos. Os egressos no se sentem confortveis com a retirada do registro geral em delegacias de polcia, ou mesmo com a retirada desse documento em rgos prestadores de servios pblicos gerais.

A possibilidade de negativa ou de constrangimentos nesses locais sempre iminente. A falta de documentao gera toda uma srie de problemas e o processo de sua obteno eivado de contradies. Em primeiro lugar, os egressos de estabelecimentos prisionais em regime de liberdade condicional ou de priso albergue domiciliar ainda esto com seus direitos civis suspensos, da no ser facultado aos mesmos o direito da retirada da segunda via da carteira de reservista. queles que no tm o documento de reservista, no facultada a retirada do ttulo de eleitor e, assim, aquele que no tem o ttulo de eleitor fica impossibilitado de se cadastrar no cadastro de Pessoa Fsica do Ministrio da Fazenda.

No fosse esse apenas um desencadeamento de impossibilidades, tambm um desencadeamento de contradies: aos egressos34 que vivem a impossibilidade da regularizao da sua documentao civil exigida a integrao ao mundo do trabalho formal, cuja porta de entrada a regularidade documental. necessrio que polticas pblicas indiquem caminhos objetivos para a minimizao de pequenos problemas cotidianos que assumem dimenso muito maior quando afligem pessoas fragilizadas pela vivncia do encarceramento e principalmente pela estigmatizao. A regularizao dos documentos civis o primeiro o para a retomada da cidadania e a negao desse direito o mesmo que fomentar o retorno s atividades ilcitas. Fazer com que as Instituies pblicas e/ou Organizaes do terceiro setor possam prestar servios de acompanhamento ou mesmo que sirvam como posto de retirada de documentos especificamente voltados para egressos do sistema penitencirio, pode ser uma sada no curto prazo.

Estes postos de atendimentos aos egressos do sistema penitencirio podem ser viabilizados por Organizaes da Sociedade Civil de Interesse Pblico OSCIP, atravs de convnios com o Governo, seja na instncia Federal, Estadual, ou Municipal. O importante que estas Organizaes possam ser estimuladas a incluir os egressos do sistema penitencirio nas suas aes, sejam elas da rea de educao, da gerao de emprego e de renda, ou da assistncia social mais geral. Antes disso fundamental o aprofundamento da discusso, na esfera jurdica, da suspenso dos direitos civis para aqueles que deixam os estabelecimentos prisionais nos regimes de Liberdade Condicional ou em Priso Albergue Domiciliar, embora a dificuldade para a retirada dos documentos seja tambm uma realidade para aqueles que obtm a liberdade definitiva.

A falta de capacitao tcnica outro entrave para a incluso dos egressos no mundo do trabalho, alm da baixa escolaridade, associada falta de experincia no mercado formal de trabalho. Essas carncias funcionam como impeditivos para a obteno de emprego. Durante o tempo de encarceramento alguns homens e mulheres presos fazem curso de informtica e/ou terminam o ensino mdio e/ou fundamental, o que lhes garante maiores possibilidades ao sair. Entretanto, essas oportunidades de capacitao escolar e de capacitao tcnica no crcere no fazem parte da realidade da maioria dos homens e mulheres presos e, principalmente, urge uma reflexo sria sobre o que significa capacitar para o trabalho, no momento em que a economia mundial reduz drasticamente os postos formais de trabalho. A capacitao para o trabalho autnomo, empreendedor e sustentvel, muito conseqentemente de renda. O Sebrae pode ser parceiro nesse intento de promover capacitao sobre empreendedorismo para homens e mulheres presos, no final de suas penas, permitindo que vislumbrem algum futuro ao sair, que no seja o reingresso na criminalidade.

O Sebrae, o Senac e o Senai deveriam ser provocados no sentido de gerar programas de apoio capacitao do homem preso, prximo liberdade. Assim como a poltica de micro crdito deveria ser tambm dirigida para esses sujeitos, devidamente acompanhados por tcnicos ou por estudantes de empresas juniors. Em So Paulo, a extinta COESP Coordenadoria de Orientao aos Egressos de So Paulo viabilizava financiamentos de at dois mil reais para egressos, visando a aquisio de mquinas, ferramentas, utenslios e matria prima, mediante a elaborao de um pequeno projeto de auto-sustentabilidade.

Em quase noventa por cento dos casos os recursos eram bem empregados pelos egressos que montavam sales de beleza, oficinas, pequenas mercearias, etc. O programa foi extinto, deixando muitos egressos endividados, com prestaes a pagar dos bens adquiridos por meio do financiamento. fundamental que haja um cadastramento dos egressos quanto sua formao, vocao e/ou habilidade de trabalho e que instituies do terceiro setor sejam capacitadas para receb-los e direcion-los na busca de ocupao, inclusive ministrando capacitaes bsicas, conforme as demandas dos mercados locais e, como j citado, auxiliando na retirada de documentao. A viabilizao de parcerias com cooperativas de trabalho que tenham interesse em incluir egressos pode representar um diferencial importante na obteno de ocupao rentvel, assim como iseno ou reduo fiscal para empresas que absorvam a mo-de-obra de egressos cooperativados. A abertura de cooperativas de trabalho, especificamente dirigidas aos egressos, pode no ser uma idia vivel, por reforar a estigmatizao desses homens e mulheres. O setor pblico pode desempenhar um papel importante na gerao de ocupao e renda para egressos. importante, tambm, estimular novas iniciativas, principalmente do terceiro setor, para lidar com egressos e suas famlias. No h, por exemplo, qualquer projeto que beneficie a mulher egressa e, evidentemente, a singularidade de sua condio, principalmente se ela tem filhos, exige ateno.

Por outro lado, possvel pensar em envolver organizaes do terceiro setor, atravs de licitaes pblicas, com a capacitao de egressos penitencirios em reas demandadas por pesquisas de mercado locais. Os cursos devem reforar as atividades autnomas, a prestao de servios, de maneira a estimular o empreendedorismo, o associativismo, o cooperativismo e a auto-sustentabilidade. A elaborao de um cadastro de prestadores de servios e a sua divulgao e manuteno pelo perodo mnimo de um ano, devem tambm ficar a cargo das organizaes vencedoras dos certames licitatrios.

Os egressos, contrariando o censo comum, buscam alternativas que no sejam o retorno criminalidade, sempre de portas abertas sua espera. As dificuldades encontradas e, principalmente, o preconceito e a estigmatizao, acabam por estimular a reincidncia. Atualmente, as prises brasileiras esto abarrotadas de jovens entre dezoito e vinte e cinco anos e, muitos destes homens e mulheres, deixam os muros dispostos a no retornar ao ambiente carcerrio. Tal inteno totalmente desperdiada pela falta de iniciativas pblicas que visem oportunizar capacitaes e encaminhamentos burocrticos, alm de fomentar ocupao e renda.

A improdutividade do sistema penitencirio produtiva! Produz sujeitos objetiva e subjetivamente sequelados e, por isso mesmo, gera a reincidncia criminal, ampliando os ndices de violncia urbana. Reduzir essa produo de reincidentes , em primeiro lugar, uma questo de organizao de parcerias entre o setor pblico e o terceiro setor; em segundo, o estabelecimento de redes de cooperao entre entidades com diversas finalidades e a causa dos egressos; em terceiro lugar uma questo de reordenamento das estratgias internas das penitencirias. As penitencirias brasileiras precisam deixar de ser um cemitrio de homens vivos e desenvolverem estratgias de incluso social. Sem isso o seu produto final ser sempre desastroso.

9. Privatizao no Sistema Penitencirio

O idealizador do panptico, Jeremy Benthan, foi quem primeiro sugeriu a entrega das prises a empresas privadas (1884). Fracassaram a idia e a pretenso na poca.35 aram-se os tempos. Com o trmino da guerra fria, desaparecido o imprio do mal da ocasio, indispondo de inimigo ntido a guerrear, os Estados Unidos elegeram para o papel as subclasses: os pobres, os negros, os imigrantes, os infratores da lei.36 Na era Reagan, quando tudo se desejava privatizar, dominante a ideologia de que a iniciativa particular realizava milagres comparativamente aos servios pblicos, combinada com a de que se impunha prender mais e mais, ressurgiu o projeto de ar para mos mercadoras a lida com os detentos. Logo surgiram pretendentes para a misso. Explorando a tendncia das pessoas a cultivar uma concepo mgica do mundo, alardeou-se sedutora propaganda, seguida de intenso lobby junto aos responsveis pelo comando do Estado: a questo penitenciria, terrvel e custoso pesadelo, com sua agem para a rea empresarial livraria completamente a istrao pblica de encargos a esse respeito. Os reclusos ariam a habitar alojamentos iguais aos das universidades, na mais completa disciplina e limpeza, trabalhando ordeira e produtivamente, de sorte a purgar as culpas e se acostumar a ganhar o po de cada dia com o suor do rosto.

Assim, no embate da concorrncia, duas empresas suplantaram as rivais, apossandose no novel mercado, ando o antigo monoplio estatal para o oligoplio privado. Com que resultado? Um aumento turbilhonante de presos retirados das estratos inferiores da sociedade (cerca de 2.000.000 de presos nos EEUU, quase 50% de negros, numa populao livre em que pessoas de tal etnia figuram na faixa dos 13%) e uma locupletao opulenta dos exploradores da hotelaria carcerria. O dirigente de uma delas chegou a anunciar: Se mantivermos nosso mercado acionrio e a taxa de crescimento, seremos uma firma de um bilho de dlares em 2.004. 37 Compreende-se, a istrao carcerria particular tocada exclusivamente como um negcio que tem de gerar lucros, como se depreende do anncio de uma corretora: Prises privadas: maximize o retorno de investimentos nesta explosiva indstria... ...enquanto encarceramentos e condenaes permanecem em crescimento, ganhos sero obtidos - lucros do crime. 38 Ou, num pragmatismo mais franco, diz um dos fundadores da CCA: Voc apenas vende, como se estivesse vendendo carros, imveis ou hambrgueres .39

No Brasil, o sonho de privatizar a custdia de presos se concretiza em novembro de 1999, no Paran, com a construo e instalao da Penitenciria Industrial de Guarapuava.

Tal iniciativa se deu atravs de uma parceria em que o Governo Federal arcou com 80% dos recursos e o Governo do Paran com o restante, num gasto total de R$ 5,32 milhes. Esta nova poltica do Ministrio da Justia se estendeu ao longo dos ltimos quatro anos aos estados do Acre e Cear, ora com recursos compartilhados, ora com custos arcados somente pelo governo estadual. A posio da Secretaria Nacional de Justia, em 2001, em relao a esta nova gesto prisional clara e reafirma o sucesso das condies propiciadas pela terceirizao dos servios prisionais, em que os resultados positivos que parecem despontar dependem da prpria concepo do que seja a pena privativa de liberdade.40 Muitos so os argumentos dos defensores da terceirizao, obviamente movidos por referncias terico-polticas distintas quanto execuo das penas. Tanto no Paran quanto no Cear, a empresa inicialmente contratada para realizar os servios de custdia, denominada Humanitas, vinha de uma fuso com uma empresa tradicional de segurana privada a Pires Servios de Segurana Ltda. Esta ainda , atualmente, a maior empresa de segurana privada de So Paulo, com mais de dez mil vigilantes. Originariamente, tratavase de uma firma de servios de limpeza que, mais tarde, ou a se dedicar a vigilncia bancria e hoteleira. Portanto, interessante observar que a privatizao dos servios prisionais ocorre no final da dcada de 90, quase trinta anos depois da ditadura militar ter, aps a edio da Lei de Segurana Nacional, regulamentado a segurana privada para proteger pessoas e bens patrimoniais. O que se depreende que as empresas candidatas ao exerccio da custdia de presos no tinham acumulado, at ento, qualquer experincia ou especializao na rea prisional.

A proposta da gesto terceirizada, tal como acontece no Paran, repousa sob a gide da atuao conjunta do governo, que fornece instalaes e amparo legal e, da iniciativa privada, representada por duas empresas distintas: uma que responde pelas funes de guarda e assistncia aos detentos e, outra, uma indstria que oferece treinamento e utiliza mo de obra dos internos para a sua produo. Na operacionalizao, portanto, desta premissa, o Estado prepara com os recursos pblicos toda a infraestrutura fsica assim como equipamentos de segurana eletrnica a serem usados pela empresa: uma, gestora do trabalho prisional, que contribui com o capital relativo matria prima e mquinas, se desresponsabilizando de pagamentos de taxas, tais como, luz, gua, gs e aluguel. A segunda empresa estabelece salrios, seleciona pessoal, contrata carga horria, enfim, istra o pessoal penitencirio. Tambm as taxas no so de sua responsabilidade, mas do errio estadual. Os custos arcados pela empresa dizem respeito ainda ao pagamento do salrio penitencirio dos presos, sem nenhum controle pelo Estado sobre o lucro extrado pelo empresrio patro. exemplar a desativao do trabalho prisional iniciado na penitenciria de Guarapuava: a instalao da indstria de mveis naquela unidade se estendeu at o momento em que oferecia lucro a seu proprietrio. Quando a indstria moveleira do Paran entrou em crise, o trabalho prisional entrou em retrao e a proposta reabilitadora esvaziou-se rapidamente. empresa terceirizada para gerir o trabalho prisional interessava ter uma nica atividade produtiva, que concentrasse toda a disponibilidade de mo de obra daquela unidade. Portanto, temos, mais uma vez presente, a tradio colonialista brasileira, de uso do Estado para beneficiar interesses privados, o que desnuda a denominada eficcia do modelo de gesto prisional terceirizada.

Outros pontos poderiam ser abordados: a assepsia do ambiente e a oferta contnua= de recursos materiais (artigos de higiene pessoal, roupas e sapatos de boa qualidade). Ambientados na penria de recursos materiais e na cultura da postergao burocrtica, os funcionrios pblicos gestores entendem que a terceirizao vem resolver as velhas dificuldades da gesto tradicional, na medida em que os entraves istrativos so superados.

No seu funcionamento cotidiano, as unidades terceirizadas, esto submetidas a uma dupla gesto. De um lado, os trs cargos, considerados principais diretor, subdiretor e chefia de segurana so ocupados por funcionrios pblicos, indicados pela istrao penitenciria estadual; de outro, todos os demais postos de trabalho e cargos de chefia so de responsabilidade da empresa privada. Isto quer dizer que os funcionrios tcnicos, istrativos e de segurana esto vinculados empresa que os selecionou, os paga, os promove ou demite. Dentro desta forma istrativa, os conflitos de gesto podem, no somente ser presumidos, como de fato acontecem. A chefia de segurana mencionada, por exemplo, tem o papel oficial de supervisionar os agentes de segurana penitenciria e comunicar os problemas verificados gerncia operacional da empresa, que tambm supervisiona e freqenta diariamente a unidade prisional. Assim, no cotidiano, seguidamente uma rea de atritos se estabelece: na verdade, esto em confronto, nos mecanismos de gesto, duas culturas istrativas distintas.

A direo e subdireo da unidade gerenciam a parte istrativa com as restries impostas pela gesto de pessoal afeta empresa. No entanto, insiste-se que a posio da Direo tranqila, desprovida de aborrecimentos relativos a desvios de conduta dos funcionrios, pois, seu papel apenas comunic-los gerncia da empresa. As substituies ou punies de funcionrios so rpidas: resulta desta agilidade uma grande mobilidade de funcionrios, principalmente de agentes. Poucos so os que permanecem no emprego. A substituio constante tem suas conseqncias: no h espao de tempo necessrio para se investir na capacitao dos agentes, pois o quadro est sempre se renovando. Por outro lado, surge outro problema: as atividades imediatas dos agentes os levam a crer que os mesmos no tm responsabilidade com a poltica de reabilitao, objeto de preocupao restrita dos tcnicos. A dicotomia entre o papel de reabilitao e o papel de manuteno da segurana se consolida nesta tica de gesto terceirizada. A avaliao feita pela istrao penitenciria de que os tcnicos apresentam-se mais afinados com o papel de reabilitao, pois se lhes atribui a responsabilidade tica e de preparo tcnico, uma vez que detm uma formao profissional que lhes deve permitir melhor desempenho dessas atividades. Sem dvida, a ausncia de formao profissional na rea de segurana pode efetivamente concorrer para que os profissionais dessa rea no se comprometam com os objetivos de reabilitao. Ademais, lembra o outras questes relativas insero dos funcionrios na gesto prisional, como os salrios mais baixos do que os do servio pblico.

Da tica da disciplina, o rigor cristaliza a ordem pretendida ausncia de fugas, de rebelies e de reivindicaes dos presos. Algumas regras indicam o rigor: nenhum preso pode fumar, ou ter alimentao de qualquer espcie em sua cela (no existe a tradicional bolsa de guloseimas trazidas pela visita). Todos andam juntos em filas nos deslocamentos para o refeitrio, para o trabalho, dentro dos limites geogrficos traados no cho. Todos os banhos so num nico horrio e o tempo de banho programado pelo equipamento hidrulico. O o aos tcnicos ou Direo se faz mediante solicitao e programao da escolta interna, no havendo o espontneo. Os presos que no se adaptam a este paradigma disciplinar, retornam s unidades prisionais do sistema de gesto tradicional. Concluindo, podemos questionar os custos financeiros da manuteno de um preso. Na gesto terceirizada, o preso custa de R$ 1.500,00 a R$ 2.000,00 reais, por ms. Ou seja, 100 a 150% a mais do que gasto na gesto tradicional. No entanto, os custos mais altos so justificados pelos defensores da privatizao pela excelncia da qualidade dos servios, o que considerado benfico para toda a sociedade.

Vale ressaltar, por ltimo, que, tanto as empresas que istram as prises referidas, como os responsveis pela istrao penitenciria nos estados em questo, classificam como terceirizao a forma de istrao das unidades prisionais hoje nas mos da iniciativa privada. No entanto, importante insistir que, embora algumas funes estejam, ainda, sob a responsabilidade da istrao pblica, o que se verifica uma verdadeira privatizao da custdia. Tudo isto bem diferente, por exemplo, do que a terceirizao na rea da confeco e distribuio de alimentao nos sistemas penitencirios. O atual governo do Paran j se manifestou contrariamente renovao dos contratos com a firma que istra seis unidades prisionais naquele estado. Por seu turno, autoridades do Ministrio da Justia tambm j condenaram a chamada terceirizao de unidades prisionais. Tanto uns, quanto outros, perceberam as limitaes e custos exageradosde tal estratgia. E, principalmente, defende-se, hoje, uma questo que poltica e tica: a custdia de presos dever e responsabilidade do Estado.

bom que se diga que, nos Estados Unidos, j existem estudos que indicam a falta

de evidncias de que as prises privadas possam acabar custando menos do que aquelas geridas pelo poder pblico. Na verdade, quem lucra com as prises privadas so as companhias que proliferaram na rea, cortando custos, pagando salrios menores, com alta rotatividade de funcionrios, tudo isto comprometendo o trabalho desenvolvido.

10. Concluses

A avaliao que j se tinha sobre o sistema penitencirio brasileiro ganha em dramaticidade ao trmino deste trabalho. As prises no Brasil so, de fato, depsitos de presos. Constatou-se o crescimento vertiginoso da populao carcerria com a proliferao de novasmunidades prisionais e uma absoluta falta de planejamento e de regras bsicas de gesto. A quantidade de presos abrigados em delegacias policiais pelo pas afora demonstra que, a despeito do altssimo investimento na gerao de novas vagas, o quadro s se agrava. E, o que pior, 36% dos presos em delegacias j esto condenados. O sistema penitencirio reproduz um funil: a cada ms, entra quase o dobro do nmero de presos que sai. No h esforo que d conta de tal absurdo. S em So Paulo, como j dissemos, ingressam no sistema penitencirio mais de 1.000 novos presos por ms. Ou seja, seria necessrio construir, pelo menos, duas novas unidades prisionais mensalmente, naquele estado. O endurecimento da legislao vem contribuindo para que mais infratores sejam privados da liberdade, fiquem presos por mais tempo, e o resultado s pode ser o crescimento da superpopulao.

O Ministrio da Justia tem uma tarefa gigantesca sua frente que no se resume ao auxlio que os estados necessitam para construir novas unidades prisionais e tentar, a curtssimo prazo, diminuir o dficit de vagas. Os estados precisam de orientao para gerir seus sistemas penitencirios. Como vimos, 25% dos estados no tm Regulamentos Penitencirios, 80% no tm Escolas de Formao Penitenciria, 70% no tm Planos de Cargos e Salrios e 50% no contam com Corregedorias. Em muitos estados, atividades rotineiras das unidades prisionais no se encontram disciplinadas, como por exemplo, a revista dos visitantes, dando margem a toda sorte de arbitrariedades Isto para no falar do nmero insignificante de presos envolvidos em atividades educacionais ou laborativas, como ficou amplamente demonstrado. E, para completar tal quadro, de mais absoluta falta de controle do sistema penitencirio, 72% dos estados utilizam o critrio de pertencimento a faces para classificar os presos e aloc-los nas diferentes unidades prisionais, o que no impediu que, em 2003, 303 presos tenham sido assassinados por companheiros dentro dos crceres do pas. Quem se responsabiliza por isso? Procuramos, ao longo deste trabalho, discutir alguns temas que precisam fazer parte das reflexes dos gestores prisionais e elaboramos uma srie de propostas visando neutralizar problemas relativos a tais temas, superar deficincias e suprir lacunas. Algumas propostas dependem, unicamente, da vontade dos es dos sistemas penitencirios e dos diretores de unidades prisionais. Viabilizam-se atravs de memorandos internos, portarias, ou ofcios circulares. Algumas demandam mudanas legislativas, basicamente alteraes na Lei de Execuo Penal. Muitas vo depender do empenho do Ministrio da Justia em tomar para si a responsabilidade pela superao da crise do sistema penitencirio brasileiro na rea da gesto e, para dar encaminhamento adequado a algumas questes, o Ministrio da Justia vai precisar se articular com outros Ministrios, como o da Educao e o do Trabalho.

Vale ressaltar que grande parte das sugestes podem ser implementadas de imediato, principalmente aquelas que dependem, unicamente, das istraes de sistemas penitencirios e unidades prisionais. Entre as sugestes para o Ministrio da Justia, imaginamos que se possam concretizar ao longo do ano em curso, na medida em que o Departamento Penitencirio Nacional acaba de ar por uma completa reestruturao. Cabe lembrar, no entanto, que no bastam mudanas da organizao istrativa do DEPEN se verbas adequadas no forem disponibilizadas. Sabe-se que continuam a acontecer cortes significativos nos oramentos, com contingenciamento das verbas do Fundo Penitencirio Nacional, o que inissvel. As propostas de mudanas que requerem alteraes na Lei de Execuo Penal podem ser encaminhadas ao Conselho Nacional de Poltica Criminal e Penitenciria para exame e elaborao de novos textos da LEP. A ttulo de reflexo final deste trabalho, gostaramos de discutir a necessidade emergencial de ampliao da legislao que trata das alternativas pena de priso no pas., O Brasil no pode se dar ao luxo de continuar encarcerando infratores no ritmo constatado neste trabalho. As prises devem ser reservadas aos criminosos violentos e perigosos que se constituem em ameaa concreta ao convvio social. Tudo mais desperdcio de verbas pblicas. Desperdcio dos recursos que resultam dos impostos dos contribuintes. preciso que se deixe a hipocrisia de lado e se ita, de uma vez por todas, que a pena privativa de liberdade tem por objetivo a punio do infrator e o isolamento do mesmo da sociedade. Ningum ressocializado atravs da privao da liberdade. A humanidade ainda no produziu um sistema penitencirio que transforme criminosos em cidados cumpridores da lei. Ao contrrio, como dizia um antigo Ministro do Interior na Inglaterra, Douglas Hurd, a priso uma maneira cara de tornar as pessoas piores. Mesmo em pases que investem somas fabulosas em suas prises, provendo os sistemas penitencirios de programas de reabilitao muito sofisticados e inundando as unidades prisionais de tcnicos nas mais variadas reas, no se produzem nveis de reincidncia baixos. A priso gera violncia, a priso um meio de controle social falido todos sabemos disso. No entanto, embora o discurso das autoridades seja sempre neste sentido e, contnuamente, ouamos Ministros da Justia neste pas insistirem na necessidade da ampliao do uso das alternativas pena de priso, tudo parece continuar limitado retrica que impressiona bem, mas vazia de projetos efetivos. Teme-se a reao popular, os polticos no querem arriscar seus mandatos e os governos, timidamente, continuam repetindo os mesmos erros. Urge que o governo federal inicie ampla campanha de esclarecimento da populao sobre o custo benefcio da pena de priso. Em primeiro lugar, preciso que a sociedade compreenda que as taxas de encarceramento no guardam nenhuma relao com as taxas de criminalidade. preciso, sobretudo, mostrar o que custa a pena de priso e sua absoluta ineficcia. Vimos insistindo, nos ltimos anos, em alguns nmeros que demonstram saciedade que o Brasil, com sua gigantesca dvida social, precisando investir maciamente em educao, sade, gerao de empregos, moradia popular, saneamento, profissionalizao da fora de trabalho, no pode se permitir encarcerar indiscriminadamente. Comparar os custos de presos e prises com aqueles de manuteno de alunos em escolas, (um preso custa no pas, em mdia, o equivalente ao custo de 16 alunos em programas de alfabetizao), de construo de casas populares(em Braslia uma casa popular construda em regime de mutiro custa a quarta parte do que custa uma cela em unidade de segurana mdia!) vital.

Enquanto a sociedade no entender que investindo em prises est investindo em sua prpria insegurana, no avanaremos. Estudos do Banco Mundial j demonstraram que a criminalidade violenta na Amrica Latina s poder ser prevenida de forma eficaz por meio, principalmente, de investimentos muito significativos na rea social. Dizem tais estudos que preciso reduzir o nmero de pobres nas grandes cidades, estimular a gerao de empregos e propiciar crdito fcil para o desenvolvimento de pequenos negcios, alm de estimular programas educacionais e de lazer que mantenham os jovens longe do crime e da violncia. Enfim, como j dissemos em outro lugar, s um macio esforo de resgatar a dvida social o mais rapidamente possvel, junto com uma profunda reviso de nosso falido modelo de segurana e justia, que nos permitir vislumbrar no horizonte um pas menos injusto e violento. O resto so mitos, ou demagogia de quem busca na manipulao do medo uma fonte de lucro e poder.

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