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Os
Direitos Humanos e a Tortura
Jos
Genono
A Declarao Universal de
Direitos Humanos, proclamada em 10 de dezembro de 1948 pela Assemblia
Geral das Naes Unidas (ONU), representa um marco inigualvel na
histria do processo civilizatrio da Humanidade. Pela primeira vez, a
maior parte dos pases do mundo ou a comungar um conjunto comum de
valores. Ou seja, apesar de todas as diferenas ticas, culturais,
tnicas e religiosas existentes entre os diversos povos, a Humanidade
deu-se um sentido comum atravs da Declarao Universal.
Os Direitos do Homem s se tornam possveis com a afirmao da
democracia e tm como objetivo a busca da paz no mundo. Praticamente,
todas as constituies democrticas modernas reafirmam os Direitos
Humanos. Um dos aspectos mais relevantes da Declarao Universal de
Direitos Humanos diz respeito condenao da prtica da tortura. O
artigo V da Declarao estabelece que " ningum ser submetido
a tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou
degradante".
A Constituio brasileira de 1988, tambm em seu Artigo V, inciso
XLIII, absorve a recomendao da ONU estabelecendo que a tortura
A constitui prtica de crime inafianvel e insuscetvel de graa ou
anistia. Infelizmente, preciso registrar que tanto no Brasil quanto
em outros pases vai uma distncia grande entre o que estabelece a lei
e a vida real. Nas delegacias brasileiras, a prtica da tortura
ainda largamente empregada. Em alguns pases usa-se a tortura contra
prisioneiros polticos, a exemplo do que aconteceu no Brasil durante a
ditadura militar.
Os regimes autoritrios, de direita ou de esquerda, laicos ou
teocrticos, geralmente usam a tortura para fins polticos. No foi
por acaso que a Declarao Universal surgiu exatamente aps a derrota
da Alemanha nazista, na Segunda Guerra. Foram precisamente os nazistas
que praticaram atrocidades indescritveis contra seres humanos
indefesos nos campos de concentrao. Os Direitos Humanos no so
apenas um marco na busca da paz. Representam uma tentativa de banir
prticas monstruosas, a tortura e a morte pela tortura, que rebaixam os
homens a condies inferiores aos animais.
Dificilmente se encontra na natureza uma espcie animal que sacrifica
os seus integrantes com a perturbadora violncia da crueldade. Do ponto
de vista pessoal, ei pela desagradvel experincia de ser
torturado. Como do conhecimento pblico, participei da preparao
inicial da guerrilha do Araguaia na poca da ditadura militar. Preso
antes do incio do movimento, fui submetido a choques eltricos,
afogamentos e outros tipos de agresso.
Muitos jovens que participaram da resistncia ditadura foram
torturados at a morte. O torturado, a rigor, v-se diante de algumas
alternativas, todas trgicas: no falar, correndo o risco de ser
torturado at a morte; falar para fugir do suplcio, mas pagando o
preo de colocar em risAco a vida de outros companheiros; falar coisas
secundrias inventando "estrias" para enganar a represso,
correndo o risco de ser descoberto; e, suicidar-se, para fugir do horror
ou para preservar outras pessoas. A tortura provoca uma dilacerao,
quase uma ciso, entre o corpo e a mente: a mente no aceita a
violncia fsica e moral a que o corpo submetido.
A tortura uma agresso fsica e psicolgica. Causa traumas
psicolgicos que muitos torturados no sero capazes de super-los
pelo resto de suas vidas. Ao analisar as experincias dos campos de
concentrao nazistas no livro, "As Origens do
Totalitarismo", a escritora poltica Hannah Arendt argumenta que
este tipo de violncia visa aniquilar at mesmo as reaes
espontneas do ser humano submetendo-o a um domnio total.
O ser humano seria reduzido a um autmato, coisa que at mesmo os
animais no so. Os animais, na sua liberdade natural, conservam o
instinto de autodefesa. Conservam sua espontaneidade. Isto significa que
a tortura, em ltima instncia, visa impor o domnio pelo terror. As
ditaduras militares impem esse domnio a indivduos isolados nos
pores das prises. Os regimes totalitrios, como o nazista,
ambicionavam impor o domnio pelo terror a populaes inteiras.
Quem no conhece de perto os mecanismos e as prticas monstruosas da
tortura, dificilmente conseguir imaginar que seres humanos so
capazes de cometer tais atrocidades contra seus semelhantes. At mesmo
muitos dos torturados no conseguem acreditar que foram submetidos a
essas degradantes experincias.
David Rousset, um sobrevivente dos campos de concentrao, ao
constatar a incredulidade das pessoas comuns ante os relatos das
bestialidades, argumenta Aque "o mundo normal no sabe que tudo
possvel".
A recente controvrsia envolvendo a deteno do ex-ditador chileno,
Augusto Pinochet, na Inglaterra, e o pedido de extradio de vrios
pases para julg-lo, recoloca em debate o problema da garantia
efetiva dos Direitos Humanos. Isto quer dizer que os Direitos Humanos
s sero garantidos de fato quando tiverem a proteo de um
organismo internacional. Assim, justo que quando um ditador viola os
Direitos Humanos em seu pas, ordenando a tortura e genocdios, como
foi o caso de Pinochet, seja ele julgado por Cortes Internacionais.
Na medida em que prticas de tortura e de genocdios so definidos
cada vez em termos de "crimes contra a humanidade", a
tendncia que num futuro prximo as Cortes Internacionais julguem
criminosos que conseguem sair impunes em seus respectivos pases. A
internacionalizao da proteo dos Direitos Humanos tornaria cada
indivduo, alm de um cidado em seu prprio pas, tambm um
cidado do mundo. Representaria um avano extraordinrio na expanso
e consolidao da democracia e na garantia da paz mundial.
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