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Os muitos vus da impunidade:
sociedade, tortura e ditadura no
Brasil


Daniel Aaro Reis Filho




1. Conhecimento e impunidade: tortura e ditadura no Brasil

O presente artigo quer tratar da impunidade com que foi agraciada a prtica da tortura no Brasil nos tempos sombrios da ditadura. Com efeito, como se sabe, ningum, pessoas ou instituies, foi acusado ou processado, nem recebeu qualquer tipo de punio por aquilo que, por convenes internacionalmente consideradas, e inclusive assinadas pelo Brasil, denominado um crime contra a humanidade, sem direito prescrio.

O interessante que, j h muito tempo, nenhuma pessoa, desde que minimamente informada e de boa f, pe em dvida que a tortura foi sistematicamente utilizada pelas foras armadas brasileiras como meio de obter confisses dos presos polticos, que foi empregada como verdadeira poltica de Estado, autorizada pelas mais altas instncias do poder civil e militar. Ou seja, nunca demais repeti-lo, a violncia fsica no foi produto de excessos, cometida aqui e ali por oficiais e policiais violentos ou por pessoas doentes de sadismo, embora elas no faltassem nas obscuras, fedorentas e geladas cmaras de tortura. Mas de uma poltica calculada, pesada e definida pelos altos responsveis da Nao e na sua prtica se envolveram no apenas bestas feras, mas tambm honrados pais de famlia, e jovens oficiais das foras armadas, peritos nas tcnicas de informao e contra-informao, e mdicos que aconselhavam prudncia ou ousadia, segundo avaliaes precisas que faziam a respeito da resistncia do preso, e escreventes, e soldados, e toda uma caterva de ajudantes e auxiliares, uma galeria de tipos que, embora envolvidos naqueles crimes, no perdiam o apetite, nem o senso do dever, nem as responsabilidades familiares. No perdiam a capacidade de sentir alegria, de chorar ou de rir, nem deixavam de torcer pelo Brasil nos campos de futebol. Em uma palavra: brasileiros normais.

Logo depois da anistia, vrios livros, entre os quais o do jornalista Fernando Gabeira, que ento ganhou ampla notoriedade, com grandes tiragens, apontavam justamente o fenmeno de que a tortura no era apenas, nem maiormente, obra de bate-paus obtusos. Sua eficcia repousava fundamentalmente no trabalho da chamada Inteligncia, ou seja, dos servios de informao e contra-informao, que funcionavam suficientemente longe das salas dos horrores para que se pudesse, com tranquilidade, no ar condicionado, analisar os depoimentos e as informaes disponveis e orientar o rumo das torturas (1).

O prprio General Geisel, antes de morrer, fez questo de itir claramente que a tortura de presos polticos foi um recurso de que lanou mo o Estado por se encontrar em perigo. Podia ser indecente, mas os outros fariam o mesmo, se vencessem, alegou o excelente general (2). Outras publicaes recentes tm voltado ao assunto de modo que nem o brasileiro mais inocente pode hoje ter dvidas a respeito da utilizao sistemtica da tortura no Brasil nos anos 60 e 70 (3).

Diga-se, a bem da verdade, que a tortura dos presos polticos no perodo da ditadura inovou apenas no sentido de que ela fez intervir no campo especfico da luta poltica uma tcnica que at ento estava confinada -- e legitimada socialmente -- para tratar da chamada criminalidade comum. Assim, pode a tortura poltica haurir inspirao em longa e conhecida tradio. Seus instrumentos principais, como o conhecido pau-de-arara, que se tornou artigo de exportao para inmeras polcias polticas do continente, j tinham sido devidamente provados em carne humana, e com sucesso. Da, em parte, sua eficcia prtica. Voltaremos, mais tarde, a este assunto.

Muito bem, ento temos um quadro aparentemente bem definido: houve tortura sistemtica, patrocinada pelo Estado, reconhecida por gregos e troianos, e a tal ponto que, de um assunto tabu, nos anos 70, virou alguma coisa universalmente conhecida e reconhecida.

E, no entanto, ningum, rigorosamente ningum, foi punido pelos atos de tortura. No faltaram vozes -- at hoje no faltam -- a gritar pela abertura de processos, pela identificao de responsveis e pela sua punio. Podem-se formular crticas atividade que desenvolvem, aos ngulos que escolhem, linguagem que empregam, mas no se pode negar que o trabalho de denncia e de divulgao que fizeram -- e fazem -- muito tem contribudo para que as pessoas no possam mais alegar que ento nada sabiam, ou que ainda nada sabem a propsito desta mazela nacional.

O que se conclui deste encadeamento? Que a sociedade brasileira constituda em sua maioria por seres perversos, trogloditas, partidrios confessos das ditaduras, que, apesar de saberem de tudo, no se aprestam a fazer nada? Sabem que houve tortura mas no se dispem a punir os responsveis. isto mesmo? Ento, de que se trata? Cumplicidade?

A tentao de uma resposta positiva precisa, porm, decifrar antes um enigma: que a sociedade, longe de se comprazer no culto aos valores autoritrios, pretende-se defensora zelosa dos valores democrticos. Recentemente inclusive deu provas cabais disto -- estamos nos referindo s comemoraes dos trinta anos de 1968.

2. 1968 -- o Brasil, as evidncias de um pas democrtico

As comemoraes relativas ao turbulento ano de 1968 tm uma histria indecisa. Em 1978, dez anos depois do ano vermelho, a ditadura fenecia, mas ainda estava viva. O assunto foi divulgado e debatido, mas predominou uma abordagem negativa. Surgiram analistas para dizer que em 1968 houve uma primavera do nada, ou seja, como na famosa pea, muito barulho por coisa alguma.

Mas j a partir de 1988 esboou-se uma ntida mudana, confirmada e ampliada em 1998. O sentido da reviravolta? O da celebrao da rebeldia ditadura. Artigos, livros, mesas-redondas, conclaves, congressos, no concerto de vozes, pouqussimas dissonncias -- quase todos os que se pronunciaram sobre o assunto fizeram questo de ressaltar o aspecto positivo da luta, da indignao, da revolta, da resistncia, esta ltima palavra aparecendo com uma recorrncia digna de nota, esvaziando-se de sentido o movimento de carter ofensivo que, embora sem foras, e por isso fadadas ao fracasso, quiserem empreender as autodenominadas organizaes revolucionrias dos anos 60.

Encontrara-se o mote: a sociedade havia resistido ditadura. E foi possvel enfatizar este aspecto at o paroxismo quando, no apagar das luzes do ano de 1998, fez-se a anticomemorao dos 30 anos do Ato Institucional n. 5.

Nada poderia ser mais emblemtico do estado de exceo em que se converteu a ditadura brasileira do que o referido Ato. Mal chamado de institucional, porque apenas consagrava o arbtrio, o Ato Cinco concentrou o poder de uma forma brutal: dissolveu o congresso nacional e as cmaras legislativas em geral, submeteu os poderes estaduais e municipais, liquidando na prtica o prprio conceito de federao, cassou mandatos em todos os nveis, suspendeu direitos polticos e garantias jurdicas, e, como se no bastasse, excluiu de apreciao judicial todas as aes e decises a ele referidas. Um completo fechamento da vida poltica, e sem prazo para terminar.

Todos estes aspectos foram recordados -- e excomungados -- na anticomemorao de 1998. AI-5 NUNCA MAIS, gritou, em unssono, a nao indignada.

Claro que o grito contra o Ato foi melhor do que se tivesse sido a favor. Mas foi, no mnimo, estranho constatar a quase unanimidade nacional na condenao e rejeio ao Ato. Como se fssemos uma sociedade constituda por 150 milhes de democratas. Esmagados por uma ditadura alheia a nossa vontade, imposta, um corpo estranho, como um parasita corroendo o vioso tronco de uma frondosa rvore. Retomando tradies bem ao gosto de grande parte dos intelectuais brasileiros que analisam a sociedade partida em antinomias: uma sociedade saudvel ruminando amarguras sob a chapa de chumbo de um poder terrvel. A resistncia dos mais fracos e a bota dos mais fortes. Flores contra tanques. Generosidade versus vileza. Civis X militares. Seres humanos X gorilas. Inteligncia X fora bruta. Em suma, uma sociedade saudvel e bem disposta submetida, malgr elle-mme, por elites corrompidas e autoritrias (4).

Aqui e ali, isoladas, vozes quase inaudveis defenderam a pertinncia e a validade do Ato, logo soterradas pelo peso das amplas maiorias. O Ato virou um bode expiatrio, condensando todas as misrias e os refugos de uma sociedade ento perdida e que, agora, se reencontrava, democraticamente realizada. E que,no espelho do ado, se revia e se identificava na gerao perdida de 68.

Adensava-se o enigma: como uma sociedade to democrtica pudera ar uma ditadura longa de vinte anos?

3. Sociedade e ditadura no Brasil: uma intimidade recusada

A anlise precisa remontar ao incio do longo perodo ditatorial, a 1964, aos idos de maro e queda de abril (5), quando se instaurou a ditadura militar. Ao contrrio do que as esquerdas sempre sustentaram -- e denunciaram --, no houve ali um golpe de estado, na tradio dos pronunciamientos to comuns na Amrica Latina. O cenrio, de to repetido, tornou-se conhecido: os tanques deslocam-se na madrugada, algumas tropas ocupam locais estratgicos, h o cerco do palcio presidencial, surge um mediador, pode ser o nncio apostlico ou uma eminncia religiosa qualquer, seguem-se conversaes tensas, em que os contendores medem suas foras pelo telefone. Se o golpe, afinal, fracassa, os golpistas partem para o exlio; se, ao contrrio, vitorioso, so as lideranas do governo existente que partem. Os vitoriosos, sejam quais forem, deitam proclamaes pelos meios de comunicao disponveis anunciando rigorosos inquritos -- que daro em nada -- e o advento de uma nova era -- que no comear.

No foi este o padro do 1964 brasileiro.

O que ocorreu ento em nosso pas foi a culminncia de um grande enfrentamento poltico e social, gestado ao longo dos anos 50 e acelerado de forma brutal desde 1961, quando, tentando um golpe, renunciou o presidente Janio Quadros, e assumiu, depois de intensa crise, o vice-presidente Joo Goulart. Inaugurou-se ento um processo de lutas sociais indito na histria republicana brasileira: grandes movimentos, de trabalhadores rurais e urbanos, entraram em ao exigindo a realizao de reformas na estrutura social e econmica do pas e o fortalecimento de seus centros de deciso interna, as chamadas reformas de base, no sentido da distribuio da renda e do poder e da afirmao da soberania nacional. O processo tambm envolveu os estudantes e, em sua fase terminal, comeou a contaminar os escales inferiores das foras armadas, ameaando seu fundamento mais sagrado: o automatismo da cadeia de comando (6).

Contra estes movimentos, articularam-se no apenas as elites sociais, mas tambm considerveis contingentes populares, presentes nas chamadas Marchas da Famlia com Deus e pela Liberdade, que chegaram a mobilizar milhes de pessoas em todo o pas. Estes movimentos, de direita, no sentido prprio da palavra, ou seja, conservadores, mas de massa, ofereceram o background decisivo para que se possa compreender o carter fulminante da vitria dos partidrios da derrubada de Joo Goulart.

Ainda muito pouco estudadas pela sociologia, pela cincia poltica e pela histria contempornea de nosso pas, estas Marchas, alm de minar a coeso do dispositivo militar do governo constitucional, garantiram uma base social relativamente slida implantao da ditadura. E conferiram instaurao da mesma um carter de movimento civil e militar e no de um mero golpe/pronunciamiento, na conhecida tradio latino-americana.

Mesmo sem ter a pretenso de esgotar o assunto, que no nosso objeto de estudo no presente artigo, parece-nos importante destacar um trao essencial que esteve na base deste movimento de massa de direita, conservador e anti-reformista: um grande medo de que a ascenso de massas populares, em curso no contexto das lutas pelas reformas de base, pudesse acarretar uma alterao drstica nos padres de organizao social, poltica e econmica tpicos da formao social brasileira, padres marcados por tendncias terrivelmente concentradoras. Um grande medo de que a canalha pudesse adquirir voz no captulo. Neste sentido, a interveno militar serviria para colocar no seu devido lugar, de onde nunca deveriam ter sado, aquelas gentes indistintas que estavam ousando demandar novos lugares ao sol.

Posteriormente, e ao longo dos ciclos mais ou menos duros e repressivos da ditadura militar, a ampla base social de sustentao do movimento civil-militar conheceria um movimento ziguezagueante, ora se expandindo, ora se contraindo. Contraiu-se nos momentos consecutivos implantao do primeiro governo militar, decepcionada com a cassao e/ou neutralizao dos principais lderes civis de direita no pas e com a poltica econmico-financeira ento adotada, de arrocho de salrios e de crditos. A insatisfao alcanou um pico em 1968, associando-se inclusive com os clamores do movimento estudantil ento em franco apogeu. Logo em seguida, porm, e apesar da durssima represso exercida pelo governo militar de turno, voltou a se ampliar no quadro do milagre econmico, assegurando grande estabilidade poltica e social ao pas. Mais tarde, no transcorrer da longussima transio -- lenta, segura e gradual (7) -- do estado de exceo a instituies legitimadas pela Lei, pareceu identificar-se com os ritmos e as grandes orientaes do assim chamado processo de distenso(8), desde que assegurada a Ordem, o que, de fato, salvo pequenos acidentes de percurso, acabou ocorrendo.

Mas em todo este processo da ditadura, incluindo sua fase de transio (9), vale destacar uma referncia absolutamente essencial: que as tendncias concentradoras -- de poder e de renda --, tpicas, como referido, continuaram em ao, exacerbando-se de modo violento, fazendo do Brasil, de acordo com insuspeitas fontes internacionais, um dos pases campees do mundo nas desigualdades de toda a ordem que apresenta (10).

Deste ponto de vista, e para alm de desencontros ocasionais, o programa da ditadura esteve sintonizado com sua base de sustentao, reproduzindo -- e consolidando -- as condies sociais que geraram o grande medo de 1964. Ainda vivo, e cada vez mais vivo, atrs das grades dos condomnios e dos edifcios protegidos das grandes cidades brasileiras, das blindagens e dos vidros fums e sempre fechados dos automveis, sob a guarda das verdadeiras milcias de vigilantes privados, encolhido e agarrado a seus privilgios que fatalmente havero de ser contrariados em qualquer processo consequente de distribuio de poder e de riqueza.

esta situao -- um modelo social de desenvolvimento --, que capaz de combinar os mais fulgurantes aspectos das sociedades ditas de primeiro mundo com as mais degradantes misrias do quarto ou quinto mundos, fazendo com que um economista chamasse o Brasil de Belndia (em parte, Blgica, em parte, ndia)
(11) : esta situao que d o contexto e as razes sociais da impunidade da tortura e dos torturadores em nosso pas.

Com efeito, e a rigor, o que fez a tortura enquanto poltica de estado seno proteger a ditadura e o modelo social por ela instaurado dos revolucionrios que a queriam destruir? De que serviu ela seno para destroar estes mesmos revolucionrios?

Respostas positivas para estas indagaes apontam para a sintonia entre as polticas adotadas pela ditadura e os interesses dos amplos contingentes que sentiam e sentem um grande medo dos de baixo e formam a parte belga do Brasil. Mas desta sintonia, como j se viu, muito poucos querem ouvir hoje falar porque no h praticamente ningum que reivindique algum tipo de intimidade com a ditadura que regeu durante tantos anos a sociedade brasileira.

Em todo o caso, a ltima vez em que a sociedade poderia ter se interessado em discutir o assunto, foi no contexto dos debates que precederam a Anistia, no ocaso da Ditadura, em fins dos anos 70.

4. A anistia recproca -- vamos esquecer esta dor!

O movimento pela anistia surgiu em meados dos anos 70, animado
fundamentalmente por familiares e amigos dos envolvidos nos movimentos revolucionrios ou por estes mesmos, ainda presos, ou ex-presos, j em liberdade. Tambm teve uma dimenso internacional, impulsionado por exilados ou/e por simpatizantes brasileiros e estrangeiros.

No se pretende aqui narrar a histria deste movimento, que ainda carece de cronistas e de intrpretes sua altura.

O que interessa aqui, para nossas reflexes, observar uma srie de deslocamentos de sentido que, conscientemente ou no, foram introduzidos no e pelo debate a respeito da anistia.

Primeiro deslocamento: os revolucionrios deixaram de ser apresentados como partidrios de um movimento ofensivo que pretendia destruir a ditadura e o sistema que ela representava para aparecerem como membros de um processo de resistncia democrtica, ponta visvel de um vasto iceberg, a prpria sociedade brasileira, que, embora submetida pela ditadura, nunca deixara de cultivar os valores democrticos. Em fins dos anos 60 e incios dos 70, os revolucionrios figuravam-se como mulheres e homens dispostos a tudo para revolucionar o pas e o mundo. Pois seriam agora figurados como democratas, vtimas de um sistema insano e cruel, que no tinha nada a ver com as tradies da nao brasileira.

A manobra ttica deu resultados: embora falsificando a histria, atraiu a simpatia geral. Por trs motivos: primo, os revolucionrios estavam mesmo derrotados, suas organizaes desmanteladas, e tendiam, naturalmente, a atrair compaixo. Secundo: nenhum deles perseverava em seus propsitos anteriores: enfrentar o poder pela luta armada: ou porque haviam mudado de concepes -- a grande maioria -- ou porque reconheciam sua extrema fraqueza. Qual o sentido de perseguir concepes j abandonadas? Tertio, e mais importante: a idia da resistncia democrtica absolvia a sociedade de toda e qualquer cumplicidade com a ditadura. Embalado por estas circunstncias, o movimento ganhou mpeto e cresceu de modo imprevisto.

A ditadura evidentemente no aceitou estes termos. Jogou pesado na caracterizao do carter nocivo das organizaes revolucionrias e de suas aes, alegando que haviam travado uma guerra suja e vil contra as instituies e tradies brasileiras.

Houve a um segundo deslocamento de sentido: aes armadas mal articuladas e pequenas organizaes, rapidamente destroadas, foram apresentadas como mentoras de uma guerra que, por ser suja, e vil, carreara todo tipo de lama e detritos. Em outras palavras: um jogo sujo, por sua prpria natureza, no tem regras, vale tudo (nas entrelinhas, a isso das torturas, que, porm, jamais seriam explicitamente mencionadas, ou reconhecidas, do lado da ditadura).

Assim, a pouco e pouco, caminhou-se para a introduo de dispositivos que, na prtica, garantiram a estranha tese da anistia recproca, ou seja, anistiavam-se, no mesmo movimento, os revolucionrios e suas aes e a tortura e os torturadores.

O ncleo radical do movimento pela anistia sentiu-se burlado: queria uma anistia ampla, geral e irrestrita (12) -- para os revolucionrios, agora travestidos de democratas. Ela viria, mas parcial (13) e, ainda por cima, recproca, ou seja, abrangendo a tortura e os torturadores.

Entretanto, a chamada sociedade civil, no caso do Brasil, a sociedade que conta, ou seja, a situada nos estratos superiores da pirmide social, em suma, a que mal ou bem, mais bem do que mal, beneficiou-se das tendncias concentradoras do modelo social, enfim, para retomar a famosa imagem, os belgas, no pareceram incomodados com os deslocamentos de sentido e com os resultados obtidos com a lei da anistia, afinal aprovada em fins de agosto de 1979.

Ao contrrio: houve jbilo, o que prprio das grandes reconciliaes.

Todos os crimes seriam absolvidos. De todos os lados. A sociedade, soberana e indulgente, concedia sua absolvio geral aos criminosos de uma guerra de que ela, a sociedade, no havia, a rigor, sequer participado.

Por outro lado, e melhor ainda, no mesmo movimento, a sociedade,
reconhecendo-se como essencialmente comprometida com os valores democrticos, se auto-absolvia de qualquer transao com a ditadura. Nos piores momentos, nos anos de chumbo, a democracia e seus valores tinham sido avassalados, mas haviam permanecido nos stos e nos subterrneos, ficaram l latejando, espera de circunstncias propcias, afinal amadurecidas. Emergiam agora, luz de um novo congraamento universal.

A ditadura foi considerada corpo estranho. Um poltico imaginativo empregaria uma curiosa metfora: o povo brasileiro, macunaimicamente, comera lentamente a ditadura, mastigando-a devagarzinho, a digerira, e se estava agora preparando para expeli-la pelos canais prprios (14). Um verdadeiro achado. A sociedade brasileira no s resistira ditadura, mas a vencera. Difcil imaginar poo melhor para revigorar a auto-estima.

O interessante que a grande maioria dos exilados e de ex-presos compartilhou estas tendncias -- ativa ou ivamente, pouco importa. S uma minoria, acusada de sectarismo e de revanchismo, permaneceu insatisfeita, mas se encontrou totalmente isolada.

E assim o manto da impunidade cobriu a tortura e os torturadores.

5. Os muitos vus...

Considerar a questo da tortura e dos torturadores hoje no Brasil a pelo reconhecimento dos muitos vus -- densos vus -- que cobrem e cobriram o assunto.

A tradio de seu uso sistemtico contra os prisioneiros ditos comuns inquestionvel. Ou seja, como diria o poeta (15) , permanece fecundo o ventre que, no ado recente, fez migrar esta terrvel tcnica para o terreno poltico.
Consolidou-se a perspectiva da sociedade brasileira como sociedade sem compromissos com a ditadura, revigorada, como vimos, pelas comemoraes dos 30 anos de 1968. O que uma sociedade democrtica tem a ver com torturas praticadas no mbito de uma ditadura que j se foi? Alm disso, a lei da anistia clara em seus efeitos e questionar leis aprovadas no o melhor procedimento democrtico.

Fortaleceu-se nos anos 80 e 90 o modelo social instaurado pela ditadura -- desequilbrios e desigualdades continuam a se reproduzir, vencendo resistncias e propostas alternativas. Assim, as bases sociais que asseguraram a impunidade de que tratamos esto mais firmes do que nunca.

Finalmente, a fauna dos revolucionrios dos anos 60 parece extinta, ou em vias de extino. Na melhor das hipteses so hoje democratas radicais, mas sem exageros.
A maioria est de tal forma institucionalizada e de tal maneira envolvida pelas prioridades fixadas pela parte belga... difcil imagin-la questionando a lei da anistia.

Sobram, quase indistintos, pequenos grupos que fazem denncias. Visivelmente, clamam no deserto.

Uma reviravolta no impensvel. Mas ela s vir como produto de outras transformaes, mais profundas, que possam rasgar todos estes vus. Nas circunstncias atuais, difcil prever se, e quando, acontecero...

(Texto apresentado na Fundao Humberto Delgado, Lisboa, no colquio sobre impunidade realizado entre 20 e 21 de maio de 1999.

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Daniel Aaro Reis Filho professor titular de Histria Contempornea do Departamento de Histria da Univ. Federal Fluminense/ UFF

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Notas

(1) Cf. Gabeira, F.: O que isso, companheiro? Rio de Janeiro, Codecri, 1979;
outros textos iriam no mesmo sentido: Caldas, A.: Tirando o Capuz. Rio de Janeiro,
Codecri, 1981; e Costa, A. H. da: Baro de Mesquita, 425, a fbrica do medo.
So Paulo, Brasil-Debates, 1981.

(2) Cf. D'Arajo, M.C. e Castro, C. (orgs.): Ernesto Geisel (depoimento). Rio de
Janeiro, Ed. Fundao Getulio Vargas, 1997

(3)Cf. recentes reportagens sobre a prtica da tortura com o tenente Marcelo
Paixo, torturador assumido em Minas Gerais (Veja, ano 31, 9 dez. 1998, p. 42-53
) e com o chamado Cabo Anselmo, convertido em agente da polcia poltica
(pocaM, ano 1, n. 43, 15 mar. 1999, p. 92-107).

(4) A tese sobre as elites "podres e corrompidas", responsveis e impunes, muito popular entre setores de esquerda no Brasil. O famoso antroplogo, Darci Ribeiro, a defendeu ardorosamente, enquanto viveu. Recentemente, um artigo de Leandro Konder retomou, em parte, suas temticas: cf. O Globo, 2 abr. 1999, p. 7:
"Corrupo, impunidade".

(5) Cf. Dines, A. e outros: Os idos de maro e a queda de abril. Rio de Janeiro,
Jos Alvaro Editor, 1964.

(6) muito ampla a bibliografia sobre os acontecimentos que se desenrolaram entre 1961-1964. Entre outros, podemos destacar: Affonso, A. Razes do golpe. Marco Zero, SP, 1988; Bandeira, M. O governo Joo Goulart, 1961-1964. Rio de
Janeiro, Civilizao Brasileira, 1983; Carone, E. A quarta repblica, 1945-1964.
So Paulo, Difel, 1980; Delgado, L. PTB, do getulismo ao reformismo. Marco
Zero, SP, 1989; e, da mesma autora, O CGT no Brasil, 1961-1964. Petrpolis,
Vozes, 1986; Dreifuss, R. A.: 1964: a conquista do Estado. Vozes, Petrpolis,
1984; Fausto, B. O Brasil Republicano, 1930-1964. So Paulo, Difel, 1986;
Moniz, E.: O golpe de abril. Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 1965; Schilling,
P. : Como se coloca a direita no poder. So Paulo, Global, 1981; Victor, M.:
Cinco anos que abalaram o Brasil. Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 1965.
Entretanto, e sem desmerecer as obras referidas, a conjuntura continua a exigir uma anlise digna de sua importncia histrica.

(7) Este era o mote adotado pelo general Ernesto Geisel desde que assumiu o seu
governo em 1974.

(8) Outra expresso utilizada pelo general Geisel. Distender, ou seja, tornar mais
elstico o sistema, mas no mud-lo.

(9) H uma certa polmica sobre a durao da ditadura no Brasil. Instaurada em
1964, alguns sustentam que terminou em 1974, com o incio da distenso promovida pelo general Geisel. Outros a estendem at fins de 1978 (fim do AI-5) ou at agosto de 1979 (aprovao da lei da anistia), ou ainda at o fim do mandato do ltimo general presidente, Joo Baptista de Figueiredo (1985), no faltando os que a item at a primeira eleio direta presidencial (1989). Assim, a ditadura teria
durado de 10 a 25 anos.

(10) Desde o incio dos anos 70, relatrios do Banco Mundial e da ONU enfatizam
as desigualdades gritantes que marcam a formao social brasileira.

(11) Edmar Bacha, em ensaio para o jornal Opinio, cunhou a expresso.

(12) Palavra de ordem central do movimento pela anistia.

(13) Afinal, todos os presos polticos seriam soltos pela ao combinada de revises judiciais que asseguravam reduo de penas (foi aprovada uma nova lei de segurana nacional, com penas mais brandas e/ou liberdade condicional. Muitos, no entanto, no poderiam, no futuro, alegar a condio de rus primrios porque, embora livres, no tinham sido anistiados...

(14) Leonel Brizola, ao voltar do longo exlio, em 1979, divertia-se, e divertia as
pessoas, com esta metfora.

(15) B. Brecht, referindo-se s relaes promscuas entre capitalismo (ventre fecundo) e nazismo (a besta)

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