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O sculo
das multides
Apresentao
Washington
Arajo*
Quem
est escrevendo o futuro?
A
Histria demonstra ser uma sucesso de desafios, experincias
individuais e coletivas, repeties e perseverana na meta maior: a
busca da felicidade. Ela comporta desde campos de concentrao a
gigantescas campanhas de solidariedade, no atendimento a vtimas de
terremotos ou refugiados de guerra. Dessa dicotomia se destaca a
capacidade humana de sobreviver.
O
sculo das multides. E assim que veio o ocaso do sculo XX, o ltimo
do segundo milnio cristo. Multides que se enfrentaram, que lutaram e
que morreram em duas grandes guerras mundiais e em uma centena de
conflitos continentais. Multides a acompanhar o Mahatma Gandhi em suas
greves de fome pela independncia da ndia. Multides que evaporaram em
Hiroshima e em Nagasaki. Multides que fizeram as revolues: pelo
poder, pela igualdade de gnero, pelo comportamento, pela cultura.
Multides de universitrios em marcha sobre Paris por um novo modo de
vida. Multides em Memphis, a seguir Luther King em sua cruzada pela
tolerncia racial. Multides nas ruas de Soweto e Johannesburgo a
comemorar o fim do apartheid, aquela
cicatriz na face da dignidade humana. Multides a acompanhar via satlite
cenas como a descida do homem na Lua, as finais das copas do mundo, como
as de 1 970, 1 994 e 1 998. Multides que se concentraram na Praa de
Maio, no centro de Buenos Aires, lideradas por mes e avs em busca de
filhos e netos desaparecidos. E que se concentraram em conferncias das
Naes Unidas sobre meio ambiente e desenvolvimento, sobre a condio
da mulher, sobre a situao da habitao no planeta. Multides que
usaram mscaras antigases em Haifa, Tel-Aviv e Jerusalm durante a
Guerra do Golfo. Multides que derrubaram o muro de Berlim. Multides
que foram massacradas no Kosovo. Multides que escreveram o sculo XX.
Um
sculo em que as multides no apenas reivindicaram, mas continuam
reivindicando e para isso congregam legies de desempregados e
subempregados. Essas aglomeraes tomam ??????-as ruas de Frankfurt, Havana,
Braslia, Mascou. Embora suas palavras de ordem sejam por melhores salrios,
menores jornadas de trabalho, reforma agrria, creches para seus filhos,
educao para todos, etc., invariavelmente a palavra de ordem que
sobressai nos coraes e nas mentes uma s: queremos justia.
Um
sculo que viu surgir e desaparecer grandes lderes. Lderes que
levaram multides para a direita e para a esquerda. Lideres que
esqueceram do caminho do meio, da moderao, e que custaram a entender
que nenhuma ideologia ou sistema econmico vale o sacrifcio de uma nica
vida humana.
Um
sculo que viu o surgimento de dezenas de pases, devidamente
catalogados em atlas, com as linhas de suas fronteiras demarcadas em
alto-relevo. E viu tambm essas linhas serem abolidas medida que o
planeta encolhia, a interdependncia entre povos e naes tornava-se
uma realidade irrecusvel e crescia o sentimento de pertencer a uma nica
espcie, a espcie humana. Como afirmado por Bahullh, no sculo
ado, folhas e ramos de uma mesma rvore, gotas de um mesmo mar.
Sculo
da informao em escala planetria. Fibras ticas, cabos submarinos,
satlites, impresso a Iaser... Tudo para levar com maior rapidez as
imagens do primeiro clone resultante dos experimentas genticos ou da
enchente num subrbio de Shanghai. E a lnternet a conectar povos, naes,
etnias, idosos e crianas, pessoas cultas ou apenas alfabetizada??????-s, a
veicular informaes no submetidas ao controle de uma nao ou a
uma ideologia em particular. Ao findar do sculo XX, podemos dizer que
vimos cumprir-se a promessa de Daniel de que o conhecimento encheria
a Terra assim como as guas encheriam o mar.
Um
sculo em que os conceitos de produo e de eficincia estiveram em
constante mutao. Na realidade, tudo o que a humanidade conquistou
fruto de seu trabalho, do suor de seu rosto. O mundo desenvolvido produz
somente para aqueles que podem consumir?, aproximadamente 1/5 de todas as
pessoas. Os outros 4/5 que deveriam, pelo menos teoricamente,
beneficiar-se com o excesso da produo no tm como se tornar
consumidores. Estes que esto margem do mercado de trabalho so descendentes
diretos de todos aqueles que, ao longo do sculo, transferiram o fruto de
seu trabalho e de suas riquezas para o mundo mais prspero, afluente; um
mundo a que no conseguiram ter o neste limiar do sculo XXI e
que apresenta srias rachaduras em sua base de sustentao: a conscincia
da humanidade una. Rachadura simbolizada pela diviso do planeta, que
tem um Primeiro Mundo a vivenciar crise de excesso; um Terceiro Mundo em
crise de necessidade e, finalmente, um Segundo Mundo arquitetado sobre
um socialismo em bancarrota.
Um
sculo em que homens e mulheres lutaram por criar um novo mundo, trazer
existncia um sistema de valores cuja nota-chave fosse a unidade na
diversidade. A experincia humana mostrou ser isso possvel, porque
homens e mulheres sabem como se adaptar, resistir e sobreviver.
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Mais
um pouco e este sculo ser Histria. Testemunhou o que tinha de
testemunhar. A histria humana avanou e recuou, registrou e apagou, fez
e desfez, acertou e errou nos ltimos 1 00 anos. Mas esse no um fim
de sculo comum, se que um fim de sculo pode ser algo comum. Estamos
na madrugada de um novo milnio. Nem noite escura no segundo milnio
e nem temos o sol a lanar seu calor e sua luz sobre o terceiro. Momento
mais que oportuno para iniciar avaliaes. Avaliar a ltima dcada, o
ltimo centenrio, o ltimo milnio. Tentar responder, em clima de
balano e de acerto de contas, questes como: O que fica do sculo XX?
O que herdar o Sculo XXI?
Esta
obra busca .trazer superfcie respostas a essas perguntas, reflexes
realizadas por pensadores da mais variada gama de ofcios de filsofos
a poetas, de educadores a juristas, de sindicalistas a empresrios, de
escritores a telogos, de jornalistas a socilogos. Eles tiveram como
fio condutor as eloqentes reflexes sobre o sculo XX elaboradas pela
Comunidade Internacional Bah, apropriadamente intituladas Quem est
escrevendo o futuro?: reflexes
sobre o sculo XX, texto que nos inspirou a coordenar editorialmente o
livro que voc tem em mos.
Em
retrospectiva, adiantamos que este banquete para a mente e o corao
humanos comporta a poesia de AFFONSO ROMANO DE SANTANNA, magnfico
poeta e escritor com o seu lcido Epitfio
para o sculo XX, discorrendo
sobre as agruras de um sculo que morre e que ele espera no se repitam.
ANTNIO
AUGUSTO CANADO TRINDADE, jurista e presidente da Corte Interamericana de
Direitos Humanos, discorre sobre a falncia do conceito de Estado
nacional no aplicao de dispositivos que visam universalidade da
aplicao de convenes e trotados sobre direitos humanos, e vai ao
cerne da questo: a necessidade de uma educao em Direitos Humanos.
BENJAMIN
STEINBRUCH, presidente do Conselho de istrao da Companhia Siderrgico
Nacional e do Companhia Vale do Rio Doce, em reflexo enigmaticamente
intitulado Ns e o jaborandi, destaco ser o acelerao do processo de
aquisio do conhecimento a marco deste final de milnio; falo sobre o
uso desse conhecimento, que pode nos levar extino enquanto espcie,
e foz emergir o pensamento de Scrates, de que o sabedoria e a virtude
so inseparveis, poro concluir que no 3 milnio a virtude dever
ser o fio condutor poro o obteno do conhecimento.
ELIANE
CANTANHDE, jornalista, redige um tributo vigoroso longa luto da
mulher por seus direitos. Um sculo feito por elos. Conquistado dia a
dia, ano a ano, dcada o dcada. Eliane faz eco s ltimos palavras
proferidos pelo poetisa persa Tahirih, que em meados do sculo XIX,
diante do carrasco, gritara: podeis me matar, mas no podeis impedir o
emancipao feminina
FREI
BETTO, escritor e frade dominicano, troto com sensibilidade e senso de
misso o surgimento do Movimento dos Sem-Terra, o MST. E avaliza que esse
movimento est escrevendo o futuro no apenas do Brasil, como tambm do
Amrica Latina, pois prego mais que o reforma agrria: luta pela educao
de um povo em construo.
GILBERTO
DE MELLO KUJAWSKI, pensador e ensasta, aborda sob o temo A cultura do lixo os processos de desintegrao e integrao que
esto conduzindo a humanidade ao 3 milnio.
HEITOR
PIEDADE JNIOR, jurista, vem afirmar que o homem condenado e preso
escreve a histria de seu futuro; questiono os processos de reabilitao
dos apenados e afirma que criar as condies adequadas reabilitao
dos presas o desafio para o prxima milnio.
HENRY
I. SOBEL, rabino, em seu artigo A
tolerncia religiosa, os
direitos humanos e o sculo XX,
reflete que a globalizao no a panacia para unir os coraes.
E vai alm, ao afirmar que, para combater o preconceito, a intolerncia
e o fanatismo que predominam, a soluo a humildade de reconhecer que
idias diferentes no so mutuamente excludentes. Para Sobel, somente
assim alcanaremos a unidade da humanidade.
JONAS
REZENDE, pastor protestante, concede brilho a este projeto com seu texto Unidade
na busca de Deus, que trata da unidade em Deus, da religio e da
humanidade, e convida todos a ver a religio como algo uno, divino em sua
origem, seja ela budista, crist, muulmana ou bah. Ele faz eco
s palavras de Foid H. Ross, que diz: o grande desafio desta hora no
o ecumenismo cristo, mas o ecumenismo humano
JOS
GREGORI, secretrio de Estado de Direitos Humanos, afirma que este o
momento de esforo para se superar a tirania e fazer valer os direitos
humanos de forma ampla. E levanta a seguinte questo: como fazer para que
os ensinamentos sobre direitos humanos alcancem toda a populao?
JOS
RIOS HORTA, Prmio Nobel da Paz de 1996, toma a pena semelhana de um
mile Zola ao escrever o JAccuse!,
e chama sua reflexo de O voto da nossa conscincia, o voto pela independncia. Seu texto um libelo poltico pela independncia
do Timor Leste, escrito poucos dias antes do plebiscito. Tem a fora de
um documento histrico, por tratar da independncia de uma nao num
fim de sculo que viu nascer dezenas de naes.
LEONARDO
BOBE, telogo e escritor, em seu ensaio A
perigosa travessia para a Repblica
Mundial aborda desde a alternncia de crises e vitrias, processos
de integrao e desintegrao, at a acertado diagnstico da crise
social e ecolgica que ora vivemos; disseca temas palpitantes, como o
fim de um mundo e o incio de outro, que dever ser fundamentado na tica
e na espiritualidade. Avana na idia do que chama de Repblica Mundial
como o climax do processo de unificao da humanidade, baseado em
uma justa medida.
Luiz
GUSHIKEN, militante dos direitos humanos, comenta em seu texto as necessrias
estratgias para o futuro: o papel do indivduo na construo do
Estado supranacional, por meio da unidade, e o processo consultivo como
elemento forjador da unidade social; e sinaliza para a importncia da
edificao moral como instrumento para combater as foras que levam
atual desintegrao social que infelicita grande parte da populao
mundial.
MARCELO
BAGLIONE, psiclogo e astrlogo, expressa no ensaio Tantlido nossa
de cada dia: a tragdia que corri Gaio, sua preocupao sobre quem
vai reorientar o futuro. Discorre sobre o progresso material que est em
descomo com o progresso espiritual. Denuncia o matricdio que o mundo
testemunha: estamos matando a Terra! E, ao fim, prope nada menos que
uma nova Pax. A Pax Biosfrica.
MAURO
SANTAYANNA, ensasta, titula seu texto de O sculo da resistncia.
Reflete que a resistncia o instrumento diferenciador da bem e do mal
e declara que a vida um processo continuado de resistncia fsica
e moral. O homem do sculo XX herdou dos sculos anteriores esse dever
de resistir e o homem do sculo a vir no ser diferente. Pode ser que
nunca haja no mundo a realizao da igualdade e da fraternidade tal como
sonhamos mas buscar a utopia j uma forma de viv-la.
MOACYR
SCLIAR, mdico e escritor, abre o corao e escreve Para meu filho, que far 21 anos no ano 2000.
Usando a tinta da esperana, anseia por que a histria do sculo
XXI seja diferente daquela que seus pais e avs e sua prpria gerao
viveram como judeus no sul do Brasil, militando incansavelmente pelo
surgimento de um mundo melhor.
NILMRIO
MIRANDA, presidente da Comisso de Direitos Humanos da Cmara dos
Deputados, discorre em Direitos Humanos em Transio sobre a busca da
unidade entre os diferentes (polticos, religiosos, cientistas) como
sendo a marca em alto-relevo deste fim de sculo. Afirma que a globalizao
peca por excluir grande parte da populao mundial das conquistas cientficas
e faz eco ao ensinamento bah de que cada indivduo guardio do
todo. Defende a idia de que o desafio do terceiro milnio no outro
que a efetivao dos direitos humanos com nfase nos direitos sociais,
econmicos e culturais.
ODED GRAJEW, o
presidente do Instituto Ethos, afirma que somos herdeiros de nossos
pais. Eles escreveram o nosso presente como ns, cada um de ns, est
entalhando os caracteres do futuro.
REGINALDO
OSCAR DE CASTRO, presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados
do Brasil, toma a poesia como instrumento maior ao se referir s mos e
foras que escrevero o futuro, e avana ao sinalizar que a priorizao
dos direitos sociais, culturais e econmicos o atual desafio do Brasil
para chegarmos ao Estado Democrtico de Direito.
RICARDO
YOUNG, fundador do captulo Brasil do World
Business Academy, reafirma o entendimento de que o sculo XX o sculo
da luz. O grande desafio do homem alcanar a felicidade suprema que
vem de dentro, que o aproxima de Deus. Se a sociedade de consumo e a marca
do sculo XX, exercitar o desapego ser a redeno humana. Diz ainda
que a riqueza da unidade est na razo direta dos mltiplos que a
compem fortalecendo os postulados que sustentam o principio de uma
Cidadania Mundial.
RITA
CAMATA, deputada federal, afirma que quem quer seja que programe o futuro
de uma nao, quem quer que tenha alguma responsabilidade sobre ele, h,
necessariamente, de ter em mente tal meta: colocar o avano material
estupendo de nossos dias em favor do avano humano, do ponto de vista
moral e social.
ROBERTO
A. R. DE AGDIAR, filsofo e jurista, em sua reflexo Quando o futuro hoje, afirma, bafejado pela inspirao dos que amam a
espcie humana, que a luta pela integrao dos diferentes, por sua
unidade na diversidade, pelo respeito sua contribuio prpria e
peculiar na humanidade, deve ser um dos nortes para o futuro e
destaca que a aproximao dos diferentes, a pertinncia humanidade e
natureza, podero possibilitar o salto para o mais-ser dos humanos.
Seu
texto um pra-raios de tudo de bom que o homem pode (e sabe que pode)
construir. Ele trata de anunciar o novo quando o velho ainda est
desabando aos nossos ps. E enquanto isso, em meio ao incndio, ele
nos diz para manter acesa a Chama.
VICENTE
PAULO DA SILVA, o Vicentinho, sindicalista, integra este projeto com o
texto Globalizar a solidariedade. Sem meias tintas, declara com nfase
que transcender as fronteiras das naes por uma ao global dos
trabalhadores, sem distino de raa, credo, gnero, idade, etc., o
desafio do prximo sculo. Afirma que somente assim ser possvel
alcanar a meta de um mundo harmonizado.
WANDERLEY
REBELLO, jurista, v dormindo no homem de hoje o homem de amanh. E como
o poeta que, ao contemplar uma semente, sabe que um pomar descansa em seu
ntimo. O jurista se transforma ento no escritor, para ousar extrair da
razo o mel que poder criar um novo homem, um novo futuro.
Para
coroar este projeto editorial, nada mais precioso do que o privilegiadssimo
olhar do fotgrafo SEBASTIO SALGADO, a se debruar sobre a histria
do sculo. Ele nos apresenta 21 imagens que sinalizam para as
transformaes necessrias Humanidade no sculo XXI. Em cada uma, a
preocupao com o que e humano. Esperanas captadas pelas lentes de seu
tempo. Um arteso planetrio que lida com lentes e lunetas, focos e
diques. Mgica que registra a agem do tempo.
As
fotografias encontram eco na poesia de REIVALDO VINAS, que construiu para
cada registro de Salgado um poema-legenda, depois ilustrado por BRANCO
MEDEIROS. Ficou para o leitor o desafio de tentar relacionar os poemas s
imagens do fotgrafo.
Quem
est escrevendo o futuro? Eu e voc e mais uma boa quantidade de gente
como a gente. O transeunte que atravessa o rua; a professora que soletra
as primeiras palavras para um aluno; o leiteiro que entrega o leite; o
padeiro que, na madrugada, pe o po para assar; o sindicalista que
vai se reunir com os patres na busca de manter o emprego dos operrios
que representa; o telogo que vai descobrir novos mistrios na palavra
revelado; o jornalista que precisa continuar a escrever o presente; o
enfermeiro e o mdico que tm uma longa fila de pacientes para cuidar,
tratar, devolver vida.
Tambm
o advogado que busca na tica a fonte para um novo ordenamento jurdico;
e o poeta, que faz vibrar e sonhar a palavra, seja ela saudade, justia,
amor ou paz...
O
futuro tambm est sendo escrito pelos as cadenciados de multides
em busca de glria, luz e esplendor. Ao som das caminhadas, vemos
irromper na pgina do milnio as novas palavras de ordem: povos do
mundo, uni-vos, acima dos sectarismos, das ideologias, das foras da
excluso.
Untar
com sal de lgrimas
Os
solos onde s brotem pedras
Em
linhas vs de poeira,
Tirar
do ventre-me-Terra
Verdura,
couve, cacto, flor de amoreira,
Campos de trigo,
gente.
Escritor,
Coordenador do projeto editorial
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