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Texto da palestra proferida durante
o Como garantir as identidades culturais e proteger a
criao artstica da mercantilizao?, dia 29 de janeiro,
Eixo III
Armand Mattelart
A grande virtude deste Forum Social
Mundial e da mesa de que participo a de relembrar que no
existe forma alguma de reconstruir o mundo, uma vez que ele foi
demolido. No existe uma forma de reconstru-lo sem tomar a distncia
necessria, que permita ter uma viso histrica.
Se existe j um processo em
andamento, o da globalizao neoliberal, acho que o que est
acontecendo uma lobotomizao dos cidados, ou seja, eles vo
ser arrancados, cindidos, afastados, de suas razes, porque
querem que eles acreditem que no tm histria. Os processos
que vivemos hoje datam, no mximo, de duas ou trs dcadas atrs.
Tudo o que vivemos aqui, o que vivemos no nosso mundo de hoje,
um processo muito longo. O professor Tariq lembrou muito bem: a
globalizao comeou com a conquista das Amricas. Foi nesse
momento que surgiu o processo de integrao mundial. Basta
lembrar os textos de um telogo, Francisco de Vitria, para
perceber que a idia de liberdade de troca, liberdade de comunicao,
liberdade de comrcio, j se encontrava inscrita na doutrina de
legitimao da conquista.
Vou comear por contar uma
historinha. Em 1971, juntamente com meu amigo Ariel Dorfmann, eu
estava no Chile. Fiquei 11 anos no Chile, e Ariel Dorfmann e eu
escrevemos um livro contra o que era um smbolo da cultura a que
hoje nos referimos: essa cultura do Pato Donald. O livro
chamava-se Para ler o Pato Donald. E ns concluamos esse
livro dizendo que os nossos filhos do ano 2000 no seriam os
filhos da cultura de massa, mas os filhos e as filhas dos nossos
processos de liberao.
aram-se 30 anos e, eando em
Paris com o meu filho, que um pintor, parei diante de uma
escola primria e, na janela da escola, viam-se os personagens de
Disney. Muito estranho, disse eu. E o meu filho, que tem 30
anos e artista, se julga importante, respondeu: Mas papai,
por que voc est surpreso? E ele um artista, um crtico
da cultura. O que acho preocupante, e que faz parte do contexto
das lutas, que agora as coisas se do de uma forma mais explcita.
Quando ns escrevemos Para ler o Pato Donald, eu diria que
era possvel perceber uma certa ambio global nesse tipo de
cultura de massa. Mas, hoje em dia, se lermos um tratado de management
ou de geopoltica, podemos perceber que a noo de cultura de
massa que surgiu nos Estados Unidos ganhou a ambio e se
apresenta como um novo universalismo. Acho que esse um problema
central. E gostaria de refletir sobre dois elementos.
O primeiro seria sobre a forma pela
qual a cultura a prpria noo e conceito de cultura
aterrissou nas discusses com relao ao livre mercado, comrcio
etc. Isso primeiramente. Em segundo lugar, gostaria de abordar
algumas referncias que marcam as diferenas, os novos conceitos
que surgiram diante do significado de cultura por parte das
amplas, e contraditrias, frentes de luta cultural.
Comearei por lembrar uma frase do
subcomandante Marcos. Ele dizia que o sculo XXI ser a IV
Guerra Mundial, que ser uma guerra semitica. importante
refletir sobre essas palavras, pois atualmente nos vemos obrigados
a usar uma lngua sobre a qual no temos controle.
Aparentemente, algum, de certa forma, nos impe, a partir de
algum lugar, conceitos que utilizamos no nosso dia-a-dia que
comprovam essa noo de globalizao. Uma prova magistral
disso constatar como a difuso da palavra globalizao foi
assncrona. Por exemplo, ela chegou muito mais rapidamente ao Mxico
do que Espanha. O Brasil j tinha a Rede Globo, ento j
estava muito pertinho do paraso global.
Essa foi s uma outra historinha
para ilustrar a confuso que existe em relao a uma linguagem
global. H quatro anos, lancei um livro que se chamava La
mondialisation de la communication. Em espanhol, quando foi
publicado, chamava-se La mundializacin de la comunicacin.
Em italiano, La comunicazzione global. E no Brasil, A
globalizao da comunicao. O incrvel foi que, apesar
de tudo o que dizemos sobre os Estados Unidos, a editora
norte-americana foi a mais inteligente. Me escreveram e disseram:
Olha, ns no queremos uma palavra tipo worldisation,
nem globalization. Isso um barbarismo e j estamos
cansados de ttulos e artigos que usam a palavra globalizao.
Ento, chamaram o livro Net Working World, com o sub-ttulo:
1974 a 2000. Ou seja, o momento a partir do qual surgiram
as comunicaes internacionais a longa distncia e o ano 2000,
que foi justamente o ano da publicao do livro nos Estados
Unidos. O problema para ns, portanto, o de construir e
reconstruir uma linguagem que possa corresponder ao nosso projeto
de reconstruo do mundo. Porque as palavras foram pervertidas,
de certa forma, foram perturbadas, comeando pela palavra
liberdade, a palavra democracia, a palavra cultura. A recuperao
de uma linguagem, a reconstruo de uma linguagem, a nica
forma de lutar contra o esvaziamento e o empobrecimento do nosso
vocabulrio quando falamos sobre o processo de integrao das
culturas e das sociedades diante de um conjunto mais importante e
dito universal. Essa seria a nica forma de lutar contra o
processo de amnsia que est em andamento.
Gostaria de compartilhar com vocs
algumas reflexes com relao construo da via que levou
a cultura ao mercado e ao centro das discusses em relao
organizao mercantil. Esse um problema muito antigo. H um
elemento histrico que acho muito importante para que possamos
perceber de que forma chegamos situao que vivemos hoje.
No sculo XVII, no era do
iluminismo, falava-se muito numa linguagem universal. E construam-se
lnguas universais. Hoje, obviamente, a linguagem universal a
informtica. E surgem tambm teorias matemticas da comunicao.
O conceito de comunicao foi dissociado, separado, do conceito
de cultura. A noo de comunicao surgiu como uma tentativa
de medir a quantidade de informao, sem a menor preocupao
em relao ao emissor ou ao receptor ou seja, os agentes de
cultura. Vou citar um exemplo muito simples para esclarecer o que
estou querendo dizer. Na Unesco, a delegao sa proibiu os
seus tradutores de traduzirem mass comunication midia por meios
de comunicao de massa. So forados a traduzir por difuso
ou informao, pois a palavra comunicao
pertencia a uma outra herana cultural, que era a
norte-americana. Me parece fundamental a forma pela qual foi
estruturada a noo de comunicao e informao, em torno de
uma noo matemtica de organizao do mundo. E, de certa
forma, isso um desvio do ideal do iluminismo.
Um segundo momento surge quando os
especialistas das organizaes internacionais encarregadas do
desenvolvimento definiram a cultura a partir de indicadores scio-culturais
ou econmicos, a partir de um conceito de desenvolvimento que
traduzia o progresso, ou a melhoria, do produto per capita.
A partir da, a cultura finalmente foi subdivida em indicadores:
quantidade de salas de cinema por cada 100 habitantes, quantidade
de jornais, quantidade de televises, rdios etc. a que
surge a teoria da modernizao do desenvolvimento. Ou seja, o
desenvolvimento das chamadas sociedades primitivas, que avam a
ser denominadas subdesenvolvidas. Esse foi um momento-chave. E,
contra essa teoria, nasceu o movimento dos pases no-alinhados,
em Bandung, em 1955. E, na dcada de 70, em nome de um reequilbrio
dos fluxos de informao, surge, na Unesco, a nova ordem
informativa internacional.
O terceiro momento quando a
cultura ou a fazer parte de uma nomenclatura estatstica
mundial, ou seja, na poca da terceira rodada do GATT, que tinha
como objetivo os servios incluindo nessa categoria a noo
de cultura, junto com management, turismo etc. Esse foi o
percurso atravs do qual a cultura pde ser legitimada como
parte do comrcio. E essa nomenclatura estatstica muito
importante, pois foi a partir da que se comeou a racionalizao
do mercado internacional partindo de um elemento cultural
fundamental criado pelo imperialismo moderno: a exposio
mundial de Londres de 1851.
Esse tambm deve ser um terreno de
luta: a classificao estatstica das atividades das sociedades
humanas. E, juntamente com esse conceito eminentemente mercantil
da cultura, os produtos do esprito, nas discusses com os
Estados Unidos. Primeiro, surgiram as discusses sobre a exceo
cultural que depois se transformou em diversidade cultural,
pois o conceito de exceo cultural tinha uma conotao
especial devido posio da Frana. Depois foi a
desregulamentao das comunicaes, que no final das contas
a base, a logstica, da desregulamentao e da desestabilizao
total ou global do conceito de cultura.
O segundo ponto refere-se forma
pela qual a partir de um campo de resistncias mltiplas,
contraditrias, ambguas e por vezes ambivalentes foi
reconstrudo o pensamento sobre a cultura que nos permite pensar
em modelos de desenvolvimento humano, como diria Aminata, a partir
de culturas singulares. Na dcada de 70, lutvamos contra o
imperialismo cultural. verdade que tnhamos um conceito monoltico,
porque essas eram as condies da luta e era assim que tnhamos
que ser, isso nos era imposto. Mas devemos lembrar que o conceito
de imperialismo cultural surgiu em 1967 no Congresso de Todos os
Povos do Mundo contra o Imperialismo, em Havana. E foi uma
resposta dada por escritores, filsofos e intelectuais,
principalmente contra a agresso que ocorria no Vietn. Hoje
diante de um processo de westernisation, ou de ocidentalizao,
ocorre uma renovao. Observem os discursos do Banco Mundial em
relao a fornecer ao Terceiro Mundo a Internet, de dar o
o, de dar computadores para que eles possam ter o ao
saber universal. Mas o que o saber universal, seno poder
interpretar, atravs da construo dos monoplios de saber, o
mundo a partir do sculo XIX?
Entendo que a fora do pensamento
crtico sobre a cultura provm justamente de ter sido levada em
considerao a chamada revanche das culturas. Comear a
analisar, no partindo de uma modernidade nica euro-americana,
mas a partir de processos de modernidade que tm multi-centros.
Devemos reconhecer tambm a reivindicao da singularidade das
culturas que se desenvolve hoje num contexto muito contraditrio:
poderia ser o retorno s culturas singulares, poderia ser uma
forma de pensar e repensar o universalismo, uma nova forma de
universalismo, mas tambm poderia ser uma forma de reflexo
sobre si mesmo. Esse o grande desafio do sculo XXI. Espero
que neste sculo XXI consigamos resolver o que o sculo XX no
conseguiu.
Reproduo editada da gravao
da palestra proferida, sem reviso final da expositora.
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