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Durban:
Um Processo de Lutas
Talvez
as conquistas sejam reconhecidas no pelos resultados, mas pelo
processo que se desenvolveu
Maria Luisa Mendona, ALAI
A Conferncia
Mundial Contra o Racismo pode ser analisada como um evento e como
um processo. Como evento, ela simbolizou as desigualdades entre os
pases do norte e do sul, entre ricos e pobres, poderosos e
oprimidos. Alm disso, a conferncia tornou evidente a
inflexibilidade dos governos em aceitar as posies defendidas
pelas organizaes da sociedade civil.
A primeira demonstrao de inflexibilidade foi a sada dos
Estados Unidos e de Israel, que no aceitavam discutir a questo
palestina no mbito da conferncia. Essa atitude tinha tambm o
objetivo de esvaziar o evento e, conseqentemente, de enfraquecer
a prpria ONU. Apesar de ter permanecido em Durban, a Unio
Europia tambm adotou uma postura de intransigncia,
condicionando sua participao na conferncia as decises de
cada dia. Essa ameaa constante se intensificou na vspera do trmino
do evento, com uma declarao do Primeiro Ministro francs
Lionel Jospin, afirmando que sua delegao abandonaria o evento,
caso o Sionismo fosse considerado como uma forma de racismo.
Esse tipo de posio por parte dos governos estava em total
contradio com as resolues divulgadas pelo Frum das ONGs
sobre a questo palestina. Algumas ONGs acreditam que Israel tem
promovido o genocdio do povo palestino, durante mais de 40 anos
de ocupao militar. O termo "genocdio" foi
rejeitado pela Secretria Geral da Conferncia, Mary Robinson,
que criticou o texto elaborado pelas ONGs sobre esse tema.
Enquanto a ONU se concentra em uma discusso sobre o vocabulrio
adequado para definir a situao no Oriente Mdio, o povo
palestino continua sofrendo constantes violaes de direitos
humanos. Ao mesmo tempo, a ONU tem sido incapaz de implementar
suas prprias resolues, que determinam a retirada de Israel
dos territrios palestinos. Esse tipo de contradio demonstra
as diferentes dinmicas entre representantes de governos e da
sociedade civil.
Outra situao emblemtica foi a discusso sobre as origens do
racismo e as reparaes pelo trfico de escravos e pela
escravido. Mais uma vez, observamos um contraste radical entre
os pases colonizadores e os colonizados, e entre determinados
setores dos governos e da sociedade civil.
Enquanto representantes da Unio Europia se mantinham inflexveis
em relao a esse tema em Durban, o prefeito de Londres, Ken
Livingstone, divulgou uma nota afirmando que "o trfico de
escravos se constituiu em um crime contra a humanidade e o governo
do Reino Unido deveria se unir a outros pases e pedir perdo".
Essa posio tambm foi defendida por parlamentares
norte-americanos e ses, que elaboraram projetos de lei sobre
a herana do colonialismo e sobre formas de reparaes.
Ao final da conferncia, os governos s foram capazes de
concordar com uma declarao vaga sobre o colonialismo. A
palavra "reparaes" foi substituda por
"medidas compensatrias" (remedial measures) e a
proposta do cancelamento da dvida externa, apresentada pelos pases
africanos, foi substituda por "alvio da dvida" (debt
relief). Essa declarao radicalmente diferente do documento
preparado pelas ONGs, que reivindica um pedido de perdo formal
por parte dos pases colonizadores e diferentes formas de reparaes.
As resolues dos governos sobre os direitos indgenas tambm
geraram grande frustrao entre os movimentos sociais. A declarao
final da conferncia adota o termo "povos indgenas",
mas determina que esse termo no seja "interpretado como
tendo qualquer ligao com o direito internacional". Blanca
Chancoso, representante da Confederao das Nacionalidades Indgenas
do Equador, considerou essa deciso
como uma "reafirmao do racismo, mas agora em termos
institucionais, porque isso significa que h povos de primeira e
povos de segunda categoria".
A delegao oficial do Equador foi a nica a divulgar uma nota
de protesto sobre esse tema, explicando que a Declarao de
Durban representa um retrocesso se comparada a Constituio de
seu pas, que se define como "um Estado pluricultural, multitnico
e multilinge, no qual se reconhece a realidade diversa de sua
composio nacional e tambm dos direitos coletivos dos Povos
Indgenas". Todavia, essa foi uma posio praticamente
isolada porque os outros pases do Grupo Latinoamericano e do
Caribe (GRULAC) acabaram cedendo a presses, principalmente dos
Estados Unidos, da Inglaterra e do Canad para limitar os
direitos indgenas.
Diante de tantas disputas, possvel que as maiores conquistas
dos movimentos sociais sejam reconhecidas no pelos resultados
desse evento, mas pelo processo que se desenvolveu e que deve ter
continuidade. Apesar das dificuldades das ONGs em unificar suas
lutas, pelo fato de pertencerem a diversos setores (estavam
presentes em Durban representantes de movimentos negros, indgenas,
homossexuais, rabes, judeus, jovens, mulheres, migrantes, entre
muitos outros), existe uma perspectiva de se criar uma Aliana
Global Contra o Racismo.
As ONGs lograram destacar temas importantes, que normalmente so
ignorados pelos governos e pela mdia, como, por exemplo, o
sistema de castas na ndia, que discrimina os setores da populao
chamados Dalits ou "intocveis" (termo que significa
"inferiores"). Alm disso, o Plano de Ao das ONGs
sobre racismo no sistema judicirio, e que condena a pena de
morte, foi publicamente elogiado por Mary Robinson.
Organizaes de direitos humanos, como a Anistia Internacional,
fizeram tambm uma avaliao positiva sobre o comprometimento
dos governos em reafirmar seu apoio a Conveno da ONU sobre
Refugiados. Porm, o coordenador da Anistia Internacional,
Claudio Cordone, enviou um alerta para os Estados: "As
declaraes das vtimas do racismo so essencialmente um grito
de socorro. No devemos virar as costas simplesmente por no
concordar com sua forma de se expressar. Os governos tm a obrigao
de escutar e agir".
A representante do Geleds-Instituto da Mulher Negra, Maria
Aparecida da Silva, avaliou que "a conferncia serviu para
mostrar como a questo racial explosiva e divisora de guas.
Como disse Fidel, quem so os governos que esto contra as
reparaes? De que lado esses governos sempre estiveram?".
E conclui com uma frase que resume o sentimento dos movimentos
sociais em Durban: "O importante o processo, no a conferncia
em si. Est claro que os governos no podem mais fugir da questo
racial".
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