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Exigncia universal de pluralidade

A "sociedade global" s ser vel se impmos a pluralidade do esprito, do corpo, da cultura e da natureza

Denis Duclos, Le Monde Diplomatique

Publicado em maro de 2000

A evidncia nos cega. No enxergamos mais o que nos acontece. E o que nos acontece, na escala de nossa poca, o fim de uma fico e o comeo de uma outra. O fim da unificao humana no mesmo projeto fatal do jogo do dinheiro; e o comeo de uma busca de diversidade. O fim de um ideal de onipotncia sobre os homens; o comeo de uma nova busca por autonomia e respeito mtuo. O problema da nossa poca colocar em seu devido lugar a unidade humana permitida pela informao, sem que o fantasma totalizante que a acompanha como sua sombra comprometa a liberdade dos seres vivos.

Assim como o indivduo se livra lentamente dos ideais mgicos da infncia, cada unidade cultural humana chega a um ponto onde no pode mais crer na eficcia imediata de seu pensamento. Ela deve ento compor com o real e fazer com que este ltimo ita sua prpria diviso interior, entre as palavras que o inspiram e a vida que o sustenta. Ora, a unidade cultural na qual estamos envolvidos -- ns, seres humanos do incio do terceiro milnio -- , por sorte ou fatalidade, a humanidade ela mesma, em sua pretenso de abranger sob o mesmo conceito a espcie e a organizao poltica. Temos a honra insigne de conhecer a situao com a qual os filsofos das Luzes tinham sonhado -- Kant em particular. A questo central realmente aquela que aporta necessariamente a universalidade: a exigncia universal de pluralidade. Empreendimento exaltante e terrvel, tanto planetrio quanto pessoal, ntimo quanto pblico, nacional quanto mundial. A festa da mudana de sculo e de milnio, por mais ftil e simblica que seja, portanto a ocasio de refletir sobre este fato "absolutamente simples": a humanidade, ideal carregado de conflitos, tornou-se realidade material; e sobre sua conseqncia inelutvel: somente a pluralidade pode permitir respirar, sobreviver neste fechamento do mundo humano sobre si mesmo.

Das culturas particulares a uma "sociedade global"

At aqui, cada cultura, cada viso do mundo, cada sistema econmico, pretendia opor sua definio de humanidade a todas as outras. Isto ainda bastante verdadeiro, mas, doravante, ao contrrio do que anunciava Samuel Huntington em sua obra O Choque das Civilizaes, estas unidades coletivas foram obrigadas a compor suas divergncias, a "formar sociedade". Uma sociedade ainda indefinida, certamente: nem sociedade das naes, nem globalidade, nem potncia imperial nica, mas algo que transita entre tudo isso.

esta indefinio do quadro comum que, doravante, cada grupo suficientemente poderoso tenta atrair em seu proveito e super-la, sem jamais chegar a ela. Mesmo os Estados Unidos, ltima potncia com capacidade de tutela, no podem mais organizar o mundo em torno de si, sem encontrar graves contradies com seus prprios princpios democrticos e liberais. Mesmo o capitalismo, ltima forma concreta de pensamento totalizante, no consegue imergir completamente as massas humanas em sua lgica exclusivamente contbil, cuja crueldade se agrava a partir do momento em que a preciso cientfica colocada a seu servio.

Tudo se a como se, de um s golpe, ao chegar situao de universalidade concreta, a humanidade no pudesse mais se entregar inteiramente a um de seus componentes ou figuras especiais (identidade tnica, poder nacional, escolha religiosa, corrida ao poder ou riqueza, paixo pela ordem, etc.). Como se o o ao universal significasse, ao mesmo tempo, o o a um certo jogo que limitaria e equilibraria as paixes.Este jogo de equilbrio anunciaria o fim da histria? Talvez o fim das histrias particulares dos antigos coletivos em concorrncia pela verdade universal. Talvez mesmo o fim da histria capitalista, em razo do seu trabalho no controle espiritual abstrato das massas humanas. Mas , ao contrrio, necessariamente, o comeo de uma outra histria: aquela que contamos enquanto membros de uma espcie politizada como tal, e no mais somente como enfrentamento de humanidades em uma competio guerreira ou econmica. Fim ou comeo (e provavelmente os dois, sem afrontar a lgica), pouco importa: a poca s pode ser a da preocupao poltica com a diversidade, uma vez que esta irrompe em nossa realidade, por ordem da prpria essncia desta universalidade praticamente realizada.

Poderamos nos indagar a respeito de porque no temos sido capazes, at aqui, de levantar a questo da diversidade em termos de absoluta necessidade, liberando-a da associao de idias saudosistas com os etnicismos ou particularismos. A resposta a seguinte: a conscincia poltica que funda esta preocupao no da ordem de uma histria objetiva, econmica e tcnica, mas da alada de uma histria subjetiva e de sua prpria dialtica. Ainda no colocamos a diversidade no eixo de nossa ao histrica, porque, simplesmente, ela ainda no nos tinha aparecido como o trmino de nossas aventuras em direo universalidade.

A histria material da humanidade e a histria-que-faz-sentido

preciso no confundir, de um lado, a evoluo material da humanidade sob a gide de uma cultura da linguagem (e de seu principal efeito explosivo: a cincia tecnolgica) e, de outro, a histria que adquire sentido atravs de ns, sujeitos. Tanto o movimento da primeira um continuum irreversvel, se bem que contrastado de uma regio para outra, enquanto a segunda se divide em ciclos dramticos sucessivos ou paralelos. A histria-que-faz-sentido se desenrola como uma narrao onde ns fazemos papis de autores ou atores, narrao que comea, se desenvolve e termina em um ciclo chamado a recomear em outros termos, em outro lugar e amanh. Deve-se, com efeito, ir at o fim de um relato para que ele adquira sentido (caso contrrio, que sentido teria fazer o relato?), e depois disso se associa a ele um outro, porque no queremos viver na angstia da ausncia de sentido. Enquanto a humanidade existir como tal (e no possvel ver como a democracia de mercado aboliria a condio simblica na qual nos banhamos desde a origem da palavra), ns pretenderemos sempre continuar nossa histria, e depois, tendo esta terminado, desejaremos contar uma outra. Sempre. Eis um postulado antropolgico to fundamental quanto o da relatividade na fsica. Ora, este mecanismo narrativo obedece a certas regras: tentamos, em geral, contornar uma certa preocupao que permanece central para muitos de ns, num perodo de vrias dcadas, s vezes de alguns sculos. O caminho: isto , tentamos sucessivamente diversas solues contrrias para o mesmo problema, diversas expresses opostas da mesma metfora que nos serve de filtro momentneo para interrogar o mundo.

Assim, desde que somos maciamente confrontados universalidade concreta -- desde a metade do sculo XIX e da apario dos imprios modernos capazes de governar o mundo real --, temos tentado pelo menos trs solues logicamente encadeadas:

1. Controlar a tendncia globalizao pelo triunfo da particularidade: a guerra entre os imprios, cada um pretendendo encarnar a totalidade. Os dois conflitos mundiais do sculo XX foram os produtos mais (de) flagrantes.

2. Unir o pensamento global e a particularidade: o ideal nacional-estatal internacionalizado, do qual vimos as vantagens e os riscos especialmente em sua maior realizao, o movimento comunista sovitico.

3. Realizar o pensamento global unicamente na materialidade dos agenciamentos tcnicos: o ideal liberal que , de fato, um apelo informatizao dos jogos contbeis para regulamentar o desejo humano, em todas as suas formas particulares.

A proposta que falta

A evidncia deveria nos mostrar a proposta que falta, aquela que ns ainda no tentamos: realizar a universalidade, renunciando ao pensamento globalitrio em todas as suas formas, polticas, econmicas ou tcnicas -- pois ele no a de um sucedneo coletivo de um fantasma infantil de onipotncia. Mas para "ver" esta proposta no realizada, ainda no experimentada, seria preciso que tomssemos um pouco de distncia em relao a nossa prpria histria. Isso exige o abandono de uma posio de ator imediato, com o que raramente concordamos. Por exemplo, vrios entre ns aram diretamente dos papis da segunda soluo (militantes da metfora poltico-social da universalidade) aos papis da terceira (crentes no milagre regulador do mercado). Muitos, nas diversas "tribos de esquerda" tm vergonha de ter se engajado num projeto cujos imes constatam hoje. Mas, assim como na psicanlise a vergonha uma fase do lento recuo do recalcamento, seria bom que as pessoas compreendessem que a atual irao pela regulao tcnica (financeira-informacional) do mundo to fantasmtica quanto a precedente mobilizao. Ela mesmo, provavelmente, mais fatal ainda, uma vez que leva todo o mundo a "representar" sem descanso o valor criado, como se o verdadeiro objetivo escondido da mobilizao globalitria fosse desafiar a vida at a runa.

Nos dois casos, na verdade, experimenta-se a gravitao de nossa histria em torno de uma questo essencial: o limite do "totalismo", quer ele seja "poltico-intelectual" (socialismo), quer seja tcnico (a lei da oferta e da procura). Comunistas e liberais trabalharam no desvelamento do corao da poca: a questo de um real humano que transcende toda soluo unificada nos crebros...intelectuais ou cibernticos.No pois o fim da histria, mas o centro dela que se manifesta hoje. A resposta capitalista integral ao comunismo no foi, contrariamente ao que muitos acreditam, um ataque em regra contra o totalitarismo. Foi bem mais uma tentativa de salvamento -- desesperada, apesar da aparncia "eufrica" dos mercados -- de uma outra forma, mais absoluta ainda, de totalismo: aquele da mquina que faz circular sem fim o valor. um esforo para negar que no encontro da gesto financeira global que se concentram as foras do drama e da tragdia que nos incitaram a ir mais adiante na narrativa humana.O que o capitalismo informatizado nega que a alternativa civismo-automatismo gestionrio (antes expressa pela oposio "comissrio do povo"-"financista") no importa mais verdadeiramente. Na Rssia, fortunas particulares e burocracia se entendiam bem. O regime chins tornou-se um anexo funcional do capitalismo mundial, gerando por sua vez massas assalariadas remuneradas ao mais baixo preo possvel. Nos Estados Unidos, que se crem freqentemente ser o reino da especulao absoluta, as aposentadorias por repartio representam ainda 70% do total e os fundos de penso somente o resto: sua competio se desenvolve sobre o fundo de uma "gestonite" istrativa, onde mal se consegue distinguir o burocrata do homem de dinheiro, tal eles se parecem.

O mundo unificado ser vel?

O que o regime mundial esconde cuidadosamente por trs da comdia destas falsas oposies que a civilizao est, doravante, chamada a escolher entre o monoplio geral e a diversidade. Quando concentraes e fuses se aceleram por todos os cantos, dando origem a gigantescas organizaes mundiais, evidentemente destinadas a se fundir, por sua vez, em uma ou duas estruturas restantes; quando as organizaes internacionais so cada vez mais solicitadas a limitar ou dissolver as soberanias nacionais ou locais, o sentido do que vivemos nos aparece j sob a forma de um questionamento simples: o mundo ser vel quando estiver unificado?

A resposta se situa, nos parece, na sabedoria das culturas, em sua experincia imemorial dos momentos de unidade: uma cultura humana unificada s vel se ela testemunha de uma diversidade interna real, ou seja, de uma pluralidade que no outorgada -- e, portanto, pr-digerida -- por um sistema dominante. Assim, a seduo capitalista nos prope, aparentemente, uma gigantesca diversidade de objetos. Mas ns j sabemos a homogenizao que ela supe num segundo plano e na disciplina dos prprios consumidores.De um lado, somente um sistema industrializado perfeitamente integrado pode segmentar seus produtos numa infinidade de opes, enquanto, por outro lado -- ns o vemos com a destruio de produtos agrcolas, estigmatizados pela menor bactria -- , as opes finais propostas no catlogo gigantesco de vendedores da Internet s apresentam variaes na aparncia ou em detalhes superficiais, perfeitamente controlados.

A emergncia da diversidade real como problema central da poca se manifesta em todos os domnios imaginveis, materiais e humanos. Mas a conscincia de sua significao fundamental demora a se libertar de sentimentos parasitas.A "diversidade biolgica" ameaada exprime, por exemplo, um fantasma que diz respeito (vimos seu emprego delirante pelos partidos de extrema-direita) tanto s formas de vida quanto s entidades culturais ou tnicas. Mais que recorrer ao seu contra-emprego e suas derivaes ideolgicas perigosas, talvez fosse melhor abordar diretamente a preocupao recalcada que se esconde a: medo da excluso de uma multiplicidade de atitudes individuais pela lgica do relatrio contbil.

Angstia do encolhimento das elites locais ou nacionalismos forados ociosidade e diminuio por uma instncia correlativa de concentrao da hiper-burguesia num Estado-maior mundial. Terror de um nivelamento dos comportamentos que a moral globalizada decreta como aceitveis -- conduzidos a uma nica posio de vitma iva, entregues s manipulaes da milcia humanitria etc. Estas preocupaes so srias: s os cnicos podem itir que uma boa diviso mundial do trabalho legitima a pesquisa cientfica nos Estados Unidos enquanto a sia e a Europa seriam limitados a fabricar sapatos, a vender gua ou a montar veculos. contudo o que comea a acontecer , com a ajuda da expatriao voluntria dos departamentos de pesquisas das empresas europias, em particular as sas . S os idiotas podem supor que melhor para as populaes "locais" serem dirigidas por uma casta mundial do que por suas prprias elites. porm o que acontece com o rpido deslocamento das direes das empresas, principalmente as sas, para as metrpoles anglo-saxnicas. S os ingnuos podem crer que no exista nenhuma relao entre a inteno pura de ajuda s vtimas e o clculo estratgico do novo controle colonial do mundo pelos pases "liberais".

As velhas identidades no voltam

A proliferao.... de recusas da pluralidade pode inquietar. Preferimos aqui consider-la como um sintoma daquilo que ela exige: uma outra representao partilhada da diversidade. Mas qual, nos perguntamos, posto que no se trata de um retorno fragmentao de identidades antigas?O problema no foi suficientemente delimitado; amos muito rapidamente diante da evidncia mais banal, a mais repisada no cotidiano, a saber, que o princpio mesmo da pluralidade que est em causa hoje, e no esta ou aquela forma de respeito do mltiplo.Temos observado, por exemplo, que a pluralidade enquanto tal que negada pela ideologia dominante da informatizao do mundo? Uma pluralidade mnima no comea a no ser que pelo menos duas entidades coexistam. Notemos que a pluralidade, iniciada a dois, tende imediatamente a se multiplicar: um mundo realmente dual no se basta jamais a si prprio, pois implica obrigatoriamente a presena do terceiro, ou seja, a posio do comentador segundo o qual um modo de mediao ser escolhido entre duas "alteridades".Uma lgica plural implica no mnimo trs princpios: o ser, sua ausncia (que permite situ-lo, calcul-lo) e sua mediao. De fato, um mundo plural -- mesmo minimamente -- no somente trinitrio. Ele pelo menos quaternrio.

Com efeito, esprito, corpo e cultura coexistem no interior de um espao-tempo real que no pode ser traduzido sem ser trado por um simbolismo qualquer, mesmo sendo altamente formalizado. Este quarto elemento a natureza, na medida em que esta, no sentido etimolgico do termo, " o que deve ser apresentado ao mundo", queiramos ou no, estejamos nela ou no. o que nos "deixamos ser", porque o segundo plano de nossas agitaes teatrais, sem o qual este teatro no existiria. Certamente, a cincia estuda o lado objetivo desta realidade exterior, mas ela interfere nela, deixando necessariamente de lado outros aspectos.

Enfim, o pluralismo de princpio pode ser impelido, sem deixar o terreno da deduo, at um "quinto elemento", que suficientemente evocado pelas ardentes heronas dos filmes de Luc Besson (Joana d'Arc, por exemplo), a saber, o desejo indestrutvel que nasce das proibies de toda representao do mundo. Com efeito, um mundo quaternrio, por mais pluralista que seja (quatro vezes mais que o mundo unipolar que nos fabricamos obsessivamente!), no seria menos "pobre" de potencialidades que ele excluiria para existir. Este seria o papel dos loucos, dos amantes e dos criadores: colocar este mundo em causa para abrir o caminho para outras histrias futuras ou colaterais (como o fazem, por exemplo, os autores de space opera).

Reanimando Marx e Brecht

Contando com isso, claro que, no que concerne ao nosso futuro prximo, deixar-se levar rumo pluralidade minimal do esprito, do corpo, da cultura e da natureza corresponderia a um consolo, a uma formidvel liberao da extrema tristeza de um universo inteiramente comandado, em nome da unidade humana, pelos riqussimos ascetas da moeda eletrnica. Karl Marx percebeu muito bem como o capitalismo fazia desaparecer os reais valores de uso sob a abstrao do valor de troca. Ele no divisara a que ponto a tica puritana universalizada nos transformaria a todos em autistas prdigos das cifras. Seria preciso reanimar Bertolt Brecht para escrever uma pea sobre o magnata das finanas mundiais que no deixa o pequeno escritrio sem janelas de seu iate, ancorado a um porto "paradisaco", que ali a sua vida inteira a comprar e vender montanhas de objetos e pessoas que no conhecer jamais. Que podemos dizer deste ideal de homem moderno, seno: "Que pobre tipo!"
Quatro princpios soberanos, portanto, que no se deixariam mais destruir uns pelos outros:1. A natureza, primeiro, enquanto representa (simbolicamente, claro) o que no manipulado. Seria por simples acaso que os Jos Bov se tornam os raros heris de um mundo onde capitalismo e cincia se renem para se dedicar a nossa relao com a exterioridade, com a auteridade radical da vida "selvagem"? Queremos respirar outra, alm de ns mesmos. Recusamos uma relao incestuosa, uma relao autofgica. Pretendendo comer queijos de leite cru (sob risco de engolir alguns inevitveis listeriae), recusamos que a fobia asseptizante seja uma percepo normal do real. Resistindo aos organismos geneticamente modificados, criticamos o aprendiz de feiticeiro multinacional que pretende captar a vida nas redes de seus genes industriais. Desejamos aceder a espaos no contaminados pela explorao tcnica do mundo, afim de a viver um pouco (ou muito) de aventura direta, no inserida na lgica da mercadoria, no organizada "para nosso bem". Eis a uma primeira soberania (algo a instaurar talvez no contexto de um patrimnio mundial) que o capitalismo dever, pacificamente ou na violncia engendrada por sua obstinao, aprender a reconhecer.2. Os corpos em seguida, em sua atualidade localizada. Ser um acaso que uma das grandes lutas da nossa poca aquela dos jovens "habitantes dos bairros"? Estes heris reivindicam o direito de existir de entidades locais, dotadas de costumes, de estilos corporais e de falares bem identificados sobre uma base geogrfica (eu sou de tal cidade, do bairro 93, etc.). Considerados deste ponto de vista, eles no so "vtimas da excluso", mas, ao contrrio, vanguardas da resistncia abstrao virtual internetizada, qual opem o lugar, o corpo, o atual, a vizinhana e a convivialidade. Certamente eles so censurados freqentemente por serem fascinados por cones do consumo de massa, por serem os futuros "idiotas da ral", por favorecerem, contra as elites cultivadas de sua prpria sociedade, a unio do McDonald's e do djihad. Trata-se de maus argumentos na verdade (mesmo quando apresentam algo de verdadeiro), pois no levam em conta o essencial: a subverso urbana antecipa a resistncia das comunidades de situao e de partilha de lugares de vida homogeneizao sem limites.

Ela representa a defesa do prprio corpo, sempre encarnado aqui e agora, em constante movimento, danante, alimentando-se do "tu" (e tambm contra "eles"), em sua recusa da imobilizao diante das telas do universal. Evidentemente, permanece quase tudo a inventar neste domnio de luta, especialmente em termos de bens e de servios comunitrios inalienveis propriedade mercantil.

Dficit cultural, dficit poltico e totalitarismo

3. A cultura, igualmente, em sua caracterstica primordial de palavra partilhada, de criao contnua de experincias, de "maneiras de ver", transcende a fabricao industrial de folhetins e merece a salvaguarda e a promoo de redes de distribuio que no organizam a raridade e no generalizam o deserto cultural. Ser tambm um acaso que ela constitua um dos principais pontos de discrdia dos debates sobre a desregulamentao do comrcio internacional? A questo aqui no somente que o produto hollywoodiano mais medocre agrade as pessoas (o que reenvia questo da real participao de massa, do empobrecimento cultural, fenmeno do tipo "servido voluntria"). que o confisco das possibilidades concretas de encenao dos jogos humanos pelos membros de tal sociedade probe no fim das contas o comentrio sobre a prpria universalidade. Nos tornamos incapazes de enderear nossa avaliao do mundo social e de suas relaes a outros sujeitos deste mesmo mundo. O dficit cultural cava um dficit poltico que, por sua vez, refora o totalitarismo opressivo da mquina automtica "acultural". A independncia financeira das instituies de cultura e de ensino provavelmente uma das vias de resistncia, com a condio de que sua funo de diverso e livre criao dos meios cultos prevalea finalmente na opinio pblica sobre a busca quimrica de "empregos". 4. E, enfim, a prpria informao. Se ns a submetemos a uma crtica virulenta na sua pretenso mesma de abarcar toda a realidade humana, no se trata evidentemente de buscar sua destruio, posto que --, no nos esqueamos --, graas a ela que a questo da diversidade no universal foi colocada como centro de nossa histria. A informao endossa, no h dvida, a construo da humanidade como tal mas, ciente de sua responsabilidade gigantesca, ela no deve precipitar imediatamente esta mesma humanidade na absoluta inumanidade da transparncia contbil. Nas grandes empresas, os executivos coletivamente sdicos infligem a muitos assalariados os sofrimentos que se pode esperar de casernas cibernticas. Sobre o manto da adaptao s normas globalizadas eles espetam os assalariados como os insetos de um novo taylorismo mais prximo, desta vez, do controle dos espritos. preciso frear esta tendncia monstruosa como tambm ser muito til introduzir a presena das trs outras instncias independentes (cultura, corpo e natureza) no interior dessas fortalezas da perverso produtiva. Por exemplo: a luta dos pesquisadores da Elf, em Pau, para conservar algo do pensamento no imediatamente rentvel (sob pretexto de reclamar daquilo que deveriam agradecer aos acionistas mais vidos) antecipa uma luta muito mais global para limitar a vida ativa a pura contabilidade.

As quatro instncias cardeais

Para resumir "o negcio do sculo": quer queiramos ou no, a universalidade, j adquirida na globalizao, s ser vel atravs do reconhecimento do princpio da pluralidade. Este no tem nada a ver com a infinita fragmentao dos objetos e dos homens que nos propem os catlogos comerciais. Ele representa, inicialmente, a dualidade, a saber, eu e o outro, e no zero e um; o esprito e o corpo, e no os corpos decifrados pelo esprito e desmembrados por suas ferramentas de "relao". Desta dualidade elementar, se deduz a presena de livres comentadores: na cultura, e somente nela, que podemos discutir qual "a boa maneira" de contar uma histria de respeito mtuo. Nenhuma cincia do homem, nenhuma inveno estatstica das opinies, nenhum sistema de vdeo-vigilncia pode substitu-la. Nela reside provavelmente o registro poltico maior: aquele onde discutimos a pea que vamos encenar, e no somente os detalhes de um determinado ato, ou a escolha dos atores e de seus salrios. Enfim, tudo isso exige uma testemunha silenciosa: a natureza, sobre uma parte da qual, por pura conveno, decidimos no agir, a fim de no nos deixarmos encerrar em uma confuso louca entre ns mesmos e o mundo, entre a vida e nossas intenes de ser a fonte dela.Um mundo plural no assim um mundo ordinal (onde tudo torna-se seguido de nmeros), nem mesmo um mundo fracionrio (onde todos os nmeros so finalmente colocados em um crculo entre 0 e 1). um mundo onde ao menos quatro instncias cardeais se consideram mutuamente e respeitam seus prprios modos, irredutveis, de pensar e de agir, seus prprios smbolos fundamentais distintos e separados: o dinheiro (para a informao), o lugar do presente (para o corpo), a palavra (para a cultura), a vida selvagem (para a natureza). Saberemos fazer surgir este mnimo de pluralidade?

Traduzido por Marco Aurlio Weissheimer.


* Socilogo, diretor de pesquisa no Centro Nacional de Pesquisa Cientfica (CNRS), em Paris. Autor, entre outros, de Nature et democratie des ions, Presses universitaires de , Paris, 1996.


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