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Riscos
e virtudes da cibermilitncia
Seriam
as aes no ciberespao suficientes para modificar a ordem das
coisas?
Marco Aurlio Nogueira, La Insignia
O mundo assistiu
horrorizado violncia da polcia italiana, em Gnova, na Itlia,
por ocasio da reunio do G-8, em julho ado. As cenas
chocaram e incomodaram. Alm de uma morte, muita pancadaria no
melhor estilo fascista, centenas de prises e diversos
desaparecidos. Durante semanas, diversos pases europeus exigiram
do governo de Silvio Berlusconi uma explicao, indignados com a
barbrie injustificvel. A prpria Cmara dos Deputados
italiana instalou comisso para apurar fatos e responsabilidades.
A globalizao revelou em Gnova sua face mais dura, perversa e
injusta.
Houve quem se perguntou se aqueles militantes estavam escolhendo a
melhor forma de protestar e lutar contra a verso dominante da
globalizao. Mas muitos tambm se questionaram sobre o sentido
de uma ordem mundial que apregoa estar fundando uma era de paz e
colaborao mas que no consegue legitimar-se nem proceder com
civilidade diante de seus crticos e opositores.
Auxiliados por contatos feitos via internet e mobilizados, por
isso, com grande rapidez mas tambm sem muita coordenao, os
militantes de Gnova agiam como pequenos e ruidosos Davis contra
o Golias do mundo globalizado. Seriam eles merecedores de tanta
violncia? Encarnariam os heris dos tempos modernos, sucedneos
dos grandes sujeitos histricos da modernidade?
Ainda que seja evidente, hoje, o crescimento das possibilidades de
uma maior comunicao entre povos e indivduos, graas rpida
difuso da internet, o mundo est cada vez mais condicionado
pela ao de poucos e poderosos conglomerados. O cenrio est
tomado pelo avano tecnolgico avassalador, pela convergncia
multimdia, por uma mescla de mundializao cultural e
globalizao econmica. As finanas globais predominam sem
controle sobre os direitos de cidadania, ainda que estes cresam
sem cessar. O capital invade tudo, impelido pela revoluo
digital, pelos celulares, pela internet mvel, pelas plataformas
de comrcio eletrnico, por satlites, chips e cabos de fibra
tica. Dada a sua prpria natureza tcnica, o jogo escapa dos
mecanismos de regulao ou interferncia estatal. O prprio
Estado-nao parece enfartar.
Pela Web correm fluxos financeiros e comerciais, mas tambm
iniciativas destinadas a converter a grande rede num canal planetrio
de difuso de idias e opinies, livre de comandos e
hierarquias. Por ela ativam-se movimentos anti-sistmicos, hostis
globalizao neoliberal e propensos a viabilizar uma nova
etapa de vida cvica: a cidadania mundial.
este o cenrio examinado em O concreto e o virtual. Mdia,
cultura e tecnologia (Rio de Janeiro, DP&A Editora, 2001),
mais recente livro de Dnis de Moraes, professor do Programa de Ps-Graduao
em Comunicao da Universidade Federal Fluminense. Sua proposta
simples: mostrar a complexidade do quadro atual, indicando as
possibilidades abertas pela nova configurao
infotelecomunicacional, sem se deixar levar pelo otimismo fcil,
que no considera os obstculos e riscos inerentes nova forma
de vida em constituio.
Seriam as aes no ciberespao - verdadeiras operaes de
guerrilha virtual - suficientes para modificar a ordem das coisas?
No haveria uma dose excessiva de "anarquismo" na rede,
a ponto de problematizar a construo de ambientes efetivamente
integrados e pautados por critrios superiores de convivncia?
Multiplicando-se sem cessar, os movimentos ciberespaciais
debatem-se e pressionam, mas no deixam de viver sob a constante
ameaa da diluio, em decorrncia justamente da grande
dificuldade que enfrentam de fixar uma rota planejada ou formar um
todo mais articulado. No conseguem suplantar o poderio das
megacorporaes.
Apesar disso, so um extraordinrio campo de luta e cumprem uma
funo de inegvel relevo, graas capacidade que tm de
difundir prticas interativas, informaes e idias,
impulsionando assim a formao de uma conscincia planetria e
de novos parmetros ticos. A grande rede, na verdade,
"pode propiciar aos movimentos sociais uma interveno gil
em assuntos especficos, acentuando-lhes a visibilidade pblica",
observa Dnis. Pode, tambm, facilitar a constituio de
comunidades virtuais por aproximaes temticas, anseios e
atitudes, que "reforam a sociabilidade poltica e praticam
uma tica por interaes".
Mas no se trata de um processo de mo nica, sem contradies.
Ele requer a definio rigorosa de estratgias de comunicao,
a ampliao do nmero de usurios da internet e, sobretudo, a
capacitao dos prprios ciberativistas. Seria o caso, ainda,
de enriquecer o campo dos valores e das competncias humanas, at
mesmo para que os movimentos possam manter de p utopias plausveis
e perspectivas cvicas consistentes, marginalizando hackers e
piratas sem causa.
Em suma, se verdade que o mundo da internet tende a se firmar
como um meio de ativar a hiptese de uma cidadania mundial, tambm
certo que seu futuro depende de uma aproximao entre o
concreto e o virtual: o ciberespao mostra-se tanto mais capaz de
se converter numa efetiva arena de mobilizao quanto mais se
combinar com efetivas aes polticas no meio fsico. Afinal,
afirma Dnis de Moraes, numa poca em que metade da populao
da Terra sobrevive com menos de dois dlares por dia, "no
cabe escolher fruns de resistncia cvica ou campos de
luta". essencial conjug-los e foment-los, de modo a
fortalecer a sociedade civil mundial e revitalizar a esfera pblica
supranacional.
Seria trgico, por exemplo, se o ativismo ciberespacial se
pusesse contra a democracia representativa ou se a sociedade civil
por ele projetada se lanasse para fora do campo pblico ou
deixasse de ter um Estado como referncia. O ciberespao e as aes
anti-sistmicas no tm como se converter num terreno frtil
para a democracia se se dissociarem dos embates sociais concretos,
das tradies enraizadas, das instituies que organizam
(ainda que precariamente) o mundo real.
Trata-se, no fundo, de viabilizar uma articulao em nvel
superior, que no despreze nem banalize a fora virtuosa das
novas tecnologias e saiba valorizar plenamente o meio fsico,
mostrando-se competente para encontrar neste meio - no mundo histrico
concreto - as bases de uma constante revitalizao.
Livros, artigos, ensaios e esforos intelectuais certamente no
podem muito nesta complexa e delicada articulao, que
eminentemente poltica. Sem eles, porm, todo progresso ser
tentado s cegas, sem balizas tericas mais consistentes, e
tender, por isso, a se revelar apenas como um grito herico
parado no ar.
(*) Marco Aurlio Nogueira professor de Poltica na
Unesp/Araraquara e autor, entre outros, de Em defesa da poltica
(Editora Senac, 2001).
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