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e poltica na perspectiva latino-americana
verdade: uma certa concepo da mstica incompatvel com
certo modo de fazer poltica
Frei Betto, FSM
Predomina ainda
entre os cristos a idia de que a mstica nada tem a ver com a
poltica. Seriam como dois elementos qumicos que se repelem.
Basta observar como vivem uns e outros: os msticos, trancados em
suas estufas contemplativas, alheios aos ndices do mercado,
absorvidos em seus exerccios ascticos, indiferentes s
discusses polticas que se travam em volta deles.
Os polticos, consumidos por infindveis reunies, correndo
contra o relgio da histria, mergulhados no redemoinho de
contatos, de anlises e de decises que saturam o tempo e no
abrem espao sequer ao convvio familiar, quanto mais meditao
e orao!
verdade: uma certa concepo da mstica incompatvel com
certo modo de fazer poltica. A Vida Religiosa est imbuda
deste conceito de que contemplativo quem d as costas ao mundo
para postar-se diante de Deus. Todavia, no bem no Evangelho
que se encontram as razes desse modo de testemunhar o absoluto
de Deus, mas sim em antigas religies pr-crists e nas escolas
filosficas gregas e romanas, que proclamavam a dualidade entre
alma e corpo, natural e sobrenatural, sagrado e profano.
O monaquismo, que nasce no sculo IV como afirmao da
fidelidade evanglica perante o desfibramento da emergente Igreja
constantiniana leiam-se as cartas de So Jernimo), no teve
alternativa histrica seno se nutrir na ideologia em voga: o
platonismo. A idia de uma natureza humana conflitantemente
dividida entre carne e esprito representou, para a
espiritualidade crist, o que a cosmologia de Ptolomeu significou
antes das teorias cientficas de Coprnico e Galileu -quem se
dedica s coisas do mundo, plis, arrisca-se perdio. A
santidade era concebida como negao da matria, mortificao
(morte) da carne, renncia da vontade prpria, fruio de xtase
espiritual. Nessa tica atomstica de se compreender a relao
da pessoa com a divindade, havia acentuada dose de solipsismo: o
cuidado do aprimoramento espiritual do eu sobrepunha-se exigncia
evanglica de amor aos outros.
Como nem mesmo a discusso em torno do sexo dos anjos deixa de
ter seus reflexos polticos, tal concepo pag da mstica -
que conduziu por desvios a espiritualidade crist - serviu de
matriz s utopias polticas da Repblica de Plato, das
Cidades de Santo Agostinho, das propostas de Thomas Morus e de Toms
de Camla. Na Igreja, o equvoco alcana o seu ponto alto na
Idade Mdia, confinado entre as fronteiras polticas do poder
eclesistico e na idia de que o Reino de Deus se estabelecera
neste mundo.
O engajamento do mstico
interessante constatar que os grandes msticos foram
simultaneamente pessoas mergulhadas na efervescncia poltica de
sua poca: Francisco de Assis questionou o capitalismo nascente
(como bem o demonstra a magistral obra de Leonardo Boff, So
Francisco, Ternura e Vigor); Toms de Aquino defendeu, em O
Regime dos Prncipes , o direito insurreio contra a
tirania; Catarina de Sena, analfabeta, interpelou o papado; Teresa
de vila, "mulher inquieta, errante, desobediente e
contumaz" - como a qualificou Dom Felipe Sega, nncio papal
na Espanha, em 1578 - revolucionou, com So Joo da Cruz, a
espiritualidade crist.
Por mais que as escolas espirituais do Ocidente antigo tenham a
ensinar, bem como as obras dos msticos cristos, no
Evangelho que se encontram os fundamentos da mstica crist.
A vida de Jesus no busca a recluso dos monges essnios e nem
se pauta pela prtica penitencial de Joo Batista (Mateus 9,
14-15). Ela se engaja na conflitividade da Palestina de seu tempo.
O Filho revela o Pai andando pelos caminhos; seguido por apstolos,
discpulos e mulheres; acolhendo pobres, famintos, doentes e
pecadores; desmascarando escribas e fariseus; cercado por multides;
fazendo-se presena incmoda nas grandes festas em Jerusalm;
perseguido e assassinado na cruz como prisioneiro poltico.
Dentro dessa atividade pastoral, com fortes repercusses polticas,
Jesus revela-se mstico, ou seja, como algum que vive
apaixonadamente a intimidade amorosa com o Pai, a quem ele trata
por Abba - termo aramaico que exprime muita familiaridade, como o
nosso "papai" (Marcos 14, 36). Seu encontro com o Pai no
exige o afastamento da plis, mas sim abertura de corao
vontade divina.
A mstica do mstico
Fazer a vontade de Deus a primeira disposio espiritual do mstico.
Essa vontade no se descobre pela correta moralidade ou pela
aceitao racional das verdades de f. Antes de ser uma
conquista tica, a santidade dom divino. Portanto, nas pegadas
de Jesus, o mstico centra sua vida na experincia teologal; sua
conduta e sua crena derivam dessa relao de amor que ele tem
com Deus. Teresa de vila dir isso com outras palavras: "A
suprema perfeio no consiste, obviamente, em alegrias
interiores, nem em grandes arroubos, vises ou esprito de
profecia, mas sim em adequar nossa vontade de Deus" (Fundaes
, 5, 10).
A orao o hbito que nutre a mstica. Mesmo Jesus
reservava, entre sua atividade, momentos exclusivos de acolhimento
do Pai em seu esprito.
"Permanecia retirado em lugares desertos e orava" (Lucas
5, 16). "Ele foi montanha para orar e ou a noite
inteira em orao a Deus" (Lucas 6, 12).
Para aprofundar a f, a orao to importante quanto o
alimento para nutrir o corpo ou o sono para recuperar energias. No
entanto, mesmo dentre o ativismo das grandes cidades, os cristos
encontram tempo para comer e dormir - se o mesmo no ocorre com a
orao no apenas por culpa deles. No Ocidente, perdemos os
vnculos que nos ligavam s grandes tradies espirituais e
somos herdeiros de um cristianismo racionalista, fundado no
aprendizado de frmulas ortodoxas, bem como pragmtico, voltado
promoo de obras ou ao desempenho imediato de tarefas.
Fazemos de nosso cristianismo uma resposta mais prxima de nossa
fome de po do que de nossa fome de beleza. A dimenso de
gratuidade - essencial em qualquer relao de amor - fica
relegada a momentos formais, rituais, de celebraes, sem dvida
importantes, mas insuficientes para fazer da disciplina da orao
um hbito que permita penetrar os sucessivos estgios da experincia
mstica.
Ao contrrio de certas escolas pags, a mstica crist no
visa a oferecer uma tcnica que leve o crente s npcias
espirituais com a divindade - embora isso possa ocorrer como dom
misericordioso do Pai. Antes, ela visa a ensinar-nos a amar -
assim como Deus ama - as pessoas com as quais convivemos, nossos
parentes, a comunidade com a qual estamos comprometidos em nossa
pastoral, o povo a que pertencemos e, especialmente, os pobres,
imagens vivas de Cristo. "Ningum jamais contemplou a Deus.
Se nos amarmos uns aos outros, Deus permanece em ns e o seu Amor
em ns perfeito" (1 Joo 4, 12).
O amor de Jesus a seu povo proporcional sua fidelidade ao
Pai. Por isso, ele aceita o clice: no retm para si a sua
vida, porque entende que o Pai a exige por seu povo (Marcos 14,
36). aqui que a experincia mstica encontra seu ponto de
contato com a atividade poltica.
Mstica e poltica
O exerccio poltico como acmulo pessoal de poder - mesmo na
Igreja - incompatvel com a experincia mstica. "Os
reis das naes as dominam e os que as tiranizam so chamados
Benfeitores. Quanto a vs, no dever ser assim; pelo contrrio,
o maior dentre vs torne-se como o mais jovem, e o que governa
como aquele que serve" (Lucas 22, 25-26).
A poltica que no se baseia democraticamente na participao
popular tende a ser privilgio de um grupo, de uma casta ou de
uma classe. Essa participao popular deve abranger as trs
esferas da vida social: politicamente, por mecanismos que permitam
a todos participar das decises; ideologicamente, pelo direito de
crtica e pelo dever de autocrtica; economicamente, pelo igual
direito de o aos bens necessrios vida.
Fora disso, ainda que com o ttulo de democracia, o que h so
estruturas idoltricas de poder, pois se impem ao povo como foras
onipotentes, oniscientes e onipresentes. Para o poltico que
usufrui delas, a poltica uma perversa maneira de pretender se
comparar a Deus. o Olimpo no qual o desejvel se torna possvel.
Da por que muitos polticos burgueses, cercados de incontveis
fortunas e ameaados pela idade avanada, ainda insistem em
ar at mesmo revezes e humilhaes na atividade poltica
- ela , para eles, uma espcie de divinizao do prprio
ego. Fora do poder ou da funo poltica eles se veriam
inavelmente reduzidos prpria identidade, obrigados a
sofrer o abismo que, para o comum dos mortais, h entre o desejvel
e o possvel. Por isso, no so raros os casos de polticos
que, excludos do poder, preferem a morte (Getlio Vargas).
"... e o que governa como aquele que serve". Nessa
dimenso evanglica a poltica compatvel com a mstica,
pois as exigncias fundamentais coincidem: descentralizao de
si nos outros, fidelidade vontade alheia e humildade no
compromisso com a verdade. Inmeros militantes polticos,
sobretudo quando ainda no chegaram ao poder, vivem essa mstica,
a ponto de aceitarem, na tortura, antes morrer do que trair a
causa que abraaram.
As adversidades de uma prtica poltica oposta situao
dominante so, por vezes, comparveis disciplina asctica
necessria dilatao mstica: as privaes fsicas, o
anonimato na clandestinidade, a f no processo histrico e no
povo, a esperana de vitria, a dom de si a cada momento de
risco etc. Ainda que no haja uma conscincia teolgica dessa
experincia, inegvel que toda prtica de amor - na qual o
bem dos outros se coloca acima do prprio bem - a realizao
plena do mistrio de Deus na vida humana, pois "aquele que
permanece no amor, permanece em Deus e Deus permanece nele"
(1 Joo 4, 16).
Para o cristo, em sua conscincia teolgica, essa dimenso mstica
deve ser apreendida como experincia teologal: no seu amor aos
outros ele vive o amor do Pai. Paulo VI dizia que "a poltica
a forma mais perfeita de caridade". Porque ela diz
respeito a todos e a quase tudo, do preo do po s disciplinas
que se ensinam nas escolas, do uso pornogrfico da mulher na
publicidade ao sistema social de sade, tudo depende do projeto
poltico vigente.
Ora, sem repetir erros ados - como formar partidos
confessionais ou crer que, por ser cristo, algum melhor poltico
- deve-se buscar a sntese entre a poltica, como exerccio de
transformao libertadora da sociedade, e a mstica, como
converso permanente ao Amor. Aceitar que a mstica nada tem a
ver com a poltica seria desencarnar Jesus da histria e afirmar
que as coisas de Deus no servem para este mundo que Ele criou. O
que de mais ntimo Deus pode nos dar - a unio espiritual com
Ele j nesta vida - estaria reservado queles que fazem o
movimento contrrio ao de Jesus: saem da conflitividade histrica
para "melhor" viver a sua f.
Pai Nosso & Po Nosso
A proposta evanglica vai em outra direo: a comunho com o
Pai manifesta-se na unio com o povo livre dos sinais de morte
(Apocalipse 21, 3-4). Na orao que o Senhor ensina h uma relao
dialtica entre o mergulho na f e a promoo da justia: ao
Pai Nosso pedimos o Po Nosso. E, nos Evangelhos, das bodas de
Can aos discpulos de Emas, na partilha do po - smbolo
dos bens necessrios vida - que se manifesta a bondade do Pai.
Nesse sentido, no haver completa justia enquanto no se
puder viver a liberdade como mstica, ou seja, na dimenso de
que uma pessoa tanto mais livre quanto mais descentrada de si
mesmo e centrada no Outro e nos outros. Do mesmo modo, nesse mundo
e nessa cultura de propores globais, em que o pobre uma
inumervel coletividade, o amor no pode ser mais pensado e
vivido somente em termos de relao interpessoal. Ele se torna
tambm uma exigncia poltica, de entrega da vida ao resgate da
fraternidade entre os homens, de compromisso libertador. Isso no
significa racionaliz-lo a ponto de, a pretexto do coletivo,
ignorar o pessoal. A raz e o fruto de toda transformao
social que se queira completa sero sempre nicos: o corao
humano, a onde a divinizao da pessoa transborda para a
divinizao da histria.
Viver a f a partir da causa dos pobres
Na Amrica Latina, vive-se hoje num contexto de opresso/libertao.
No se pode imaginar aqui uma vivncia crist politicamente
neutra ou capaz de unir religiosamente o que as relaes econmicas
injustas contrapem antagonicamente. Para ns cristos
latino-americanos, comprometidos como projeto do Deus da Vida, a
existncia da pobreza como fenmeno coletivo nos exige, em nome
da f, uma tomada de posio.
Tal realidade comprova que o projeto de justia e felicidade
proposto ao ser humano por Deus, descrito nas primeiras pginas
do Gnesis, foi rompido pelo pecado. As vtimas dessa ruptura so
principalmente os pobres, destinatrios e portadores da Palavra
de Deus. Por isso Jesus se coloca ao lado deles. No o faz por
serem os pobres sejam mais santos ou melhores do que os ricos, mas
simplesmente porque os pobres so pobres - e a existncia
coletiva de pobres no estava prevista no projeto original de
Deus, pelo qual todos deveriam partilhar os bens da Criao e
viver como irmos.
Ningum escolhe ser pobre. Todo pobre vtima involuntria de
relaes injustas. Por isso os pobres so chamados
bem-aventurados, pois s eles nutrem a esperana de mudar tal
situao e de que a justia de Deus prevalea.
Assim, a vivncia da f crist na Amrica Latina supe
inevitavelmente um posicionamento poltico. Seja do lado das foras
de opresso, como o fazem aqueles que condenam a violncia poltica
dos oprimidos, sem se perguntarem pelos mecanismos de violncia
econmica do capitalismo; seja do lado das foras de libertao,
como todos ns que comungamos a opo preferencial pelos
pobres.
fato que as nossas referncias ideolgicas nem sempre nos
permitem reconhecer com clareza a prpria posio em que nos
encontramos. H cristos que sinceramente percebem os sintomas -
a misria, as enfermidades, a morte prematura de milhes - e no
chegam a descobrir as causas de tais problemas sociais. Em geral,
tais pessoas e setores ocupam o lugar social reservado queles
que usufruem de privilgios sociais e/ou patrimoniais, como
detentores da propriedade privada de bens simblicos e/ou
materiais. Esses elaboram uma teologia que procura legitimar os
mecanismos de dominao atravs do seqestro da linguagem,
promovendo-a esfera da abstrao, como se o discurso
religioso pudesse, de alguma forma, deixar de ser tambm poltico.
Essa arqueologia da linguagem possui exemplo singular na parbola
do Bom Samaritano (Lucas 10, 25-37). A resposta do doutor da Lei no
estava teologicamente equivocada, mas carecia de incidncia poltica,
como se a linguagem da f servisse para diluir, ao nvel dos
conceitos, realidades contraditrias e conflitivas ao nvel dos
fatos e da vida. Jesus prefere um segundo discurso - situado no
aqui-e-agora do homem que descia de Jerusalm a Jeric - e capaz
de decifrar e denunciar as diversas posturas teolgicas/polticas
da conjuntura em que viviam: o sacerdote, o levita e o samaritano.
Ora, fazer teologia a partir das aspiraes libertadoras dos
pobres recuperar a fora proftica e sacramental do discurso
sobre a f, ainda que consciente de que, em ltima instncia,
cabe o silncio de nossa parte e, de outra, a manifestao inefvel
do Esprito de Deus (Romanos 8, 26-27).
Teologia da libertao
A teologia que hoje se produz na Amrica Latina a partir dos
pobres - conhecida como Teologia da Libertao - assume
conscientemente sua incidncia poltica e suas mediaes ideolgicas.
Trata-se de uma teologia que no nasce do limbo acadmico das
universidades ou das bibliotecas, mas sim da luta de milhares de
comunidades eclesiais de base que fertilizam a nossa f com o
sangue de inmeros mrtires como Mons. Oscar Romero, de El
Salvador, abatidos pela fora da opresso.
Por isso, nos Documentos de Santa F, que estabeleceram as
diretrizes das polticas externas dos governos Reagan e Bush, em
1980 e 1989, a Teologia da Libertao considerada como a ameaa
maior aos interesses norte-americanos no continente. Em resposta a
esta ameaa, surge a Igreja Eletrnica, de perfil
pentecostalista, dispondo de ampla rede de satlites, emissoras
de TV e rdios, revistas e jornais. Do lado catlico, a verso
da Igreja Eletrnica o Projeto Lumem 2000, de re-evangelizao
do mundo na prxima dcada, com um oramento inicial de 400
milhes de dlares, oferecidos pela organizao catlica
fundamentalista da Holanda, Testemunhas do Amor de Deus.
Na prtica da luta por justia que os cristos
latino-americanos entram em contato com foras polticas e ideolgicas
aparentemente contrrias ao universo da f. No se trata de um
dilogo formal entre Igrejas e partidos ou entre cristos e polticos
de esquerda. Trata-se de uma prtica comum junto ao mesmo povo,
contra o imperialismo norte-americano e o neoliberalismo, e a
favor dos mesmos direitos dos pobres e do futuro socialista. Tal
aproximao a partir da prtica tem sido igualmente benfica a
cristos e militantes de esquerda. O inimigo, alis, no faz
distino entre um e outro, tratando-nos todos como comunistas
ateus, pois nada pior para ele do que ver-se desprovido de sua
legitimidade religiosa, que acoberta seus reais interesses.
Cristo e marxistas
Nem sempre foi fcil a aproximao entre cristos e marxistas.
Havia muitos preconceitos e temores de ambos os lados. Na maioria
dos pases que ingressaram na esfera socialista, as Igrejas crists
tinham sido aliadas das antigas classes opressoras. Por isso, nos
anos 60, alguns setores cristos latino-americanos abandonaram a
Igreja e a prpria condio de cristos, na medida em que a
luta revolucionria os levou a descobrir a teoria marxista. Porm,
a crise enfrentada pelas concepes dogmticas marxistas, aps
as denncias dos crimes de Stalin, e as mudanas operadas na
Igreja catlica, refletidas nas novas formulaes do Conclio
Vaticano II, propiciaram condies para outros cristos se
engajassem no processo revolucionrio, em nome mesmo da f crist,
como os cubanos Frank Pas e Jos Antonio Echeverra e o
sacerdote colombiano Camilo Torres.
Hoje, na Amrica Latina, cristos e marxistas atuam juntos nos
mesmos movimentos populares, nos mesmos sindicatos combativos, nos
mesmos partidos revolucionrios. No queremos confessionalizar
os instrumentos de luta poltica, pois a diviso da sociedade no
se d entre crentes e no-crentes, e sim entre opressores e
oprimidos.
Uma srie de acontecimentos mudaram o perfil da Amrica Latina
nos ltimos 30 anos. A renovao da Igreja catlica pelo Conclio
Vaticano II, as conferncias episcopais de Medelln (1968) e
Puebla (1979), o fracasso das concepes desenvolvimentistas e
da Aliana para o Progresso, a vitria da Revoluo cubana e a
nova hegemonia poltica do capital internacional, na forma de
ditaduras militares - foram fatores que levaram muitos cristos a
se engajarem na luta social e, a partir desse compromisso com os
oprimidos, a se depararem com a realidade gritante da pobreza
coletiva. No foi o marxismo que levou amplos setores cristos a
descobrirem os pobres. Foram os pobres que levaram os cristos a
descobrirem a importncia das mediaes analticas. Pois,
diante de tanta misria, foi preciso perguntar por suas causas
estruturais e pelas condies de sua superao.
Hoje, as mudanas no Leste europeu obrigam a Teologia da Libertao
a revisar sua concepo de socialismo e a rever os fundamentos
do marxismo. No se trata apenas de um esforo terico para
separar o joio do trigo, mas sobretudo de restaurar a esperana
dos pobres e de abrir um novo horizonte utpico luta da classe
trabalhadora. Ignorar a profundidade das atuais mudanas
querer tapar o sol com a peneira. itir o fracasso completo do
socialismo real desconhecer suas conquistas sociais - sobretudo
quando consideradas do ponto de vista do Terceiro Mundo - e
aceitar a hegemonia perene do capitalismo. preciso detetar as
causas dos desvios crnicos dos regimes socialistas e redefinir o
prprio conceito de socialismo.
A f abre-nos ao imperativo da vida, mas no oferece mediaes
analticas e instrumentos polticos necessrios construo
do projeto de fraternidade social. As importantes contribuies
das cincias polticas no podem ser ignoradas pela reflexo
teolgica latino-americana, se queremos compreender os mecanismos
capitalistas que excluem milhares de pessoas dos direitos
fundamentais vida. E a contribuio das teorias econmicas e
sociais teologia no ameaa a integridade de nossa f, pois
j no podemos aceitar que o marxismo, por exemplo, seja uma
religio ou que a f crist seja uma mera ideologia.
No se trata de assumir um materialismo vulgar ou um mecanicismo
que a nega a vida espiritual e ignora o papel da subjetividade
humana nos processos histricos. Nem de ter f no dogma de uma
metafsica "marxista". Ou de acatar a verso
stalinista contida em manuais maniquestas, nos quais o atesmo
prevalece, como postura revolucionria, sobre os compromissos
efetivos com a libertao da classe trabalhadora.
Imbudos de uma vivncia teologal e de uma reflexo teolgica
fundadas na opo pelos pobres, no compromisso com o projeto do
Reino de Deus, os cristos assumem mediaes ideolgicas sem
conflitos, mesmo porque a urgncia da fome torna secundrias
certas questes teorticas. Em nossas vivncias pastorais e polticas,
f e ideologia relacionam-se mutuamente, mas nem a revelao de
Deus se esgota em qualquer projeto de sociedade, nem a ideologia
pode prescindir da racionalidade prpria autonomia da esfera
poltica. Contudo, tal racionalidade jamais invade e ocupa o espao
inefvel da experincia teologal.
preciso reconhecer ainda que a crtica marxista religio
tem servido purificao de nossa f e de nossa vivncia
crist. O Deus no qual cremos no o mesmo deus que o marxismo
nega, pois no cremos no deus do capital, das torturas
ditatoriais ou das idolatrias modernas. Cremos no Deus da vida
anunciado por Jesus aos oprimidos. Deus que exige justia para
todos e quer libertar tambm os opressores de sua condio de
opressores.
Portanto, fazer teologia hoje na Amrica Latina supe uma
abertura ecumnica, no sentido etimolgico do termo, que vai alm
da articulao crist dos discursos teolgicos ou das prticas
pastorais dos catlicos e dos evanglicos. Implica tambm
incorporar o discurso ideolgico e a prtica poltica dos
movimentos e dos partidos que assumem as aspiraes libertadoras
de nossos povos.
Assim, a teologia na Amrica Latina liberta-se do limbo das
categorias acadmicas e, de novo, encarna-se na vida e na luta de
inmeros crentes e oprimidos que j no podem separar f e
vida, pastoral e poltica, salvao e libertao. O terreno
concreto da poltica, com as suas expresses ideolgicas,
constitui-se no novo lugar teolgico por excelncia, onde se
decide no s a sorte de milhes de seres humanos, mas tambm
a nossa fidelidade ao Pai no servio ao povo, em vista da construo
do projeto de Deus na histria.
Desse programa libertador, que se impe como dever aos cristos,
participam ateus, e homens e mulheres de boa vontade - enfim, todo
um contingente de pessoas que, por enquanto, s capaz de
reconhecer a presena viva de Jesus nos oprimidos que padecem
fome, no tm roupa, encontram-se desabrigados, explorados e
marginalizados (Mateus 25, 31-46).
o pobre, como sacramento de Deus, que em nosso continente
dilata as fronteiras da Igreja e faz da poltica e da ideologia
verses profanas, porm teologais, do discurso teolgico,
quando proferidos desde seus interesses. E ainda que a f no
seja to forte a ponto de transportar montanhas, ao menos fica a
certeza de que o amor, refletido nas prticas libertadoras, nos
faz todos participantes da comunho entre o Pai, o Filho e o Esprito
Santo.
Frei Betto frade dominicano e escritor, autor do romance
sobre a vida de Jesus, Entre todos os homens (tica), entre
outros livros.
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