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Estadual pela Verdade, Memria e
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Travessias
Torturadas
Dermi Azevedo
Coleo
Memria das Lutas Populares
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Page de Dermi Azevedo
e
Este
livro , ao mesmo tempo, um registro
autobiogrfico e poltico
do autor e um testemunho sobre os anos de
chumbo na Brasil, entre os anos de 1964/1985.
Esse perodo marcou profundamente
a situao existencial de
Dermi Azevedo. Ele optou, em plena juventude,
por dedicar-se integralmente luta
pela dignidade humana e por uma sociedade
justa, fraterna, solidria e democrtica.
Pagou conscientemente o duro preo
de sua escolha, como relata nesse livro.
Um preo mais alto ainda foi pago
por centenas de brasileiros e brasileiras
que se empenharam nas lutas contra a ditadura
civil-militar. Eles/elas constituem o grande
universo dos mortos e dos desaparecidos
polticos.
Este livro-memria soma-se a todos
os demais relatos dos/das combatentes contra
o regime fascista que dizimou a Nao
brasileira. E cujas consequncias
nunca sero plenamente vencidas.
A linha seguida pelo autor corresponde ao
pensamento emitido por Danton na Revoluo
sa: “No tenho rancor.
Tenho memria”.
O autor
Jornalista e Cientista Poltico,
graduado em Jornalismo pela UFRN (1979);
Especialista em Relaes Internacionais
pela Fundao Escola de Sociologia
e Poltica de SP (FSESP) com estudo
sobre a poltica externa do Vaticano;
Mestre em Cincia Poltica
pela USP, em 2001, com dissertao
sobre o tema "Igreja e Ditadura Militar.
Colaborao Religiosa com
a Represso de 1964". Doutor
em Cincia Poltica pela USP,
em 2005, com tese sobre "Igreja e Democracia.
A Democracia na Igreja", sob a orientao
do Prof. Dr. Paulo Srgio Pinheiro.
Exerce o Jornalismo desde 1967, tendo trabalhado
como reprter, redator, editor e
correspondente em vrias revistas
e jornais. Fez a cobertura de diversas viagens
do Papa Joo Paulo II e de importantes
eventos ligados aos Direitos Humanos e aos
Movimentos Sociais. No servio pblico,
ocupou vrios cargos e funes
nos governos do RN e de SP. Em Natal, dirigiu
a FETAC (Fundao Estadual
do Trabalho e da Ao Comunitria).
Em SP, foi Assessor Tcnico da Secretaria
da Justia e da Defesa da Cidadania.
Presidiu, de 1999 a 2009, o Conselho Deliberativo
do Programa Estadual de Proteo
s Testemunhas (PROVITA), integrou
o Conselho Estadual de Defesa dos Direitos
da Pessoa Humana (CONDEPE). Foi um dos coordenadores
do Programa Estadual de Direitos Humanos
(SP). um dos fundadores do Movimento
Nacional de Direitos Humanos (MNDH). Foi
preso poltico em 1968, no XXX Congresso
da UNE, em Ibina/SP e em 1974, em
So Paulo/SP. anistiado
poltico. Participou como um dos
representantes da sociedade civil brasileira,
da II Conferncia Mundial de Direitos
Humanos, promovida pela ONU, em Viena (ustria),
em 1993. um dos membros da IEAB
(Igreja Episcopal Anglicana do Brasil).
portador da Sndrome de
Parkinson.
Travessias
Torturadas - Excertos
Dermi Azevedo
Aos
eternos companheiros e companheiras de luta
Emmanuel Bezerra, Manoel Lisboa de Moura,
frei Tito de Alencar Lima, Maria Nilde Mascellani,
Jos Luiz Brum, Nelson Martinez,
Vanderlei Caixe, Flvio Canalonga,
Joo Bittar, frei Giorgio Callegari
e Paulo Freire.
Dedico
em especial este livro ao meu primeiro filho
Carlos Alexandre Azevedo que, com menos
de dois anos, sofreu em seu frgil
corpo de criana a brutalidade da
represso fascista nos pores
do DEOPS/SP.
Dedico
tambm aos meus pais Jos
e Amlia, s minhas irms
Sebastiana e seus filhos Walter, Ftima
e Vera, Judy e seus filhos Judson e Josenaldo,
Cludia, aos meus filhos
Carlos Alexandre, Daniel, Estevo
e Joana, minha esposa Elis Regina
Almeida Azevedo e s nossas filhas
Paula, Betnia e Fernanda, a d. Jlia
Almeida e Valdir e aos seus filhos.
A
todos os companheiros de luta por um mundo
mais justo, na pessoa de Roberto Monte e
Maise e aos homens e mulheres decentes que
marcaram a minha vida.
O Povo Como Protagonista
Este
livro tem como protagonista o povo brasileiro.
Isto significa dizer que os fatos aqui narrados
e testemunhados esto intimamente
vinculados ao doloroso processo de emancipao
dos povos originrios, dos negros,
dos quilombolas, dos trabalhadores urbanos
e rurais, das mulheres e dos homens, das
crianas, dos jovens e dos idosos
deste pas chamado Brasil.
O
autor integra esse povo e sua trajetria
pessoal est diretamente ligada a
essa caminhada histrica. Como dizia
Ortega y Gasset, “o homem
o homem e suas circunstncias”.
Talvez se o autor fosse oriundo das classes
sociais que historicamente controlam o poder
no Brasil, suas palavras manifestariam outra
ideologia conservadora elitista, preconceituosa
e legitimadora da violncia.
No
entanto, a sua origem de classe e as circunstncias
favoreceram o seu processo de conscientizao
no seio da classe trabalhadora e, portanto,
do povo. Esse universo especfico
representado pelos migrantes nordestinos,
pelos mineradores do interior do Rio Grande
do Norte, pelos paulistanos apressados para
chegar ao trabalho, por todas as vtimas
de qualquer discriminao.
Foi
contra o povo brasileiro que as elites civis
e militares levantaram-se em 1964, com o
apoio do governo dos Estados Unidos. Elas
j haviam percebido que o processo
de reformas democrticas no Brasil
levaria o povo a conquistar espaos
talvez definitivos na afirmao
de seus direitos de cidadania. Deste modo,
a preocupao do autor
a de resgatar, na sua prpria histria
pessoal e no testemunho gritante de centenas
de mortos e desaparecidos polticos,
o carter deste processo.
Outra
nfase dada pelo autor refere-se aos
aspectos subjetivos da vivncia de
uma ditadura fascista e repressora por natureza.
Ningum consegue descrever, com inteireza,
o impacto desumano e destrutivo da ditadura
de 1964 no plano ideolgico. Durante
a Guerra Civil espanhola, a imprensa perguntou
a um general por que o franquismo perseguia
a esquerda: “Porque pensam”.
Os
golpistas de 1964 fizeram exatamente o mesmo:
tentaram extirpar o pensamento crtico
no Brasil, substituindo-o pela ideologia
da segurana nacional. No
me esqueo da recomendao
que recebia de alguns editores de jornais
e revistas onde trabalhei. De antemo,
eu reprter no poderia, nas
entrevistas, mencionar a expresso
direitos humanos. Muitos homens e mulheres
das Igrejas colaboraram nessa srdida
tarefa de esmagar o pensamento crtico.
A
histria cobra deles hoje a sua responsabilidade.
E o faz por meio das armas democrticas
representadas pelas comisses da
verdade e da memria, embora criadas
muito recentemente (e o Brasil
um dos pases mais atrasados nesse
ponto na Amrica Latina), essas instituies
expressam um avano na interveno
da sociedade civil e do povo brasileiro.
O
autor considera que h muito que
fazer, muito mais do que j foi feito.
Os mortos e desaparecidos polticos
esperam a nossa atuao permanente
e firme. O autor reconhece e agradece a
todas as pessoas que colaboraram para que
esse livro fosse publicado. E espera que
cada leitor e cada leitora reveja o seu
papel nesse processo.
A
democracia formal no pode iludir-se
sobre o carter efmero e susceptvel
das democracias de Estado de Direito. Trata-se
de uma planta bela e fraca, por natureza,
que exige ser cuidada a cada minuto do dia;
do contrrio, a falta de gua
felicitar a tarefa dos abutres e
todas as nossas sero exterminadas.
No entanto, existem sinais de esperana.
Espero que este livro contribua para reforar
a esperana em um Brasil justo, e
fraterno, e solidrio.
Apresentao
I
Vladimir Platilha*
Os
que lutam,
“H aqueles que lutam um dia,
e por isso so bons.
H aqueles que lutam muitos dias,
e por isso, so muito bons.
H aqueles que lutam anos, e so
melhores ainda, porm h aqueles
que lutam toda a vida.
Esses so os imprescindveis”.
(Bertolt Brecht)
O
livro do companheiro Dermi Azevedo se enquadra
dentro dessa viso do poeta Bertolt
Brecht. um livro imprescindvel.
Possui uma das poucas caractersticas
dentro da autobiografia literria,
que o equilbrio humanista
de um esteta com a conscincia social
de um jornalista poltico. Seu livro
nos faz retornar ao tempo tenebroso da ditadura
militar; sua travessia torturada em meio
a um deserto de crimes e de atrocidades
mais do que uma lio,
uma reflexo para que todos
os patriotas se unam para barrar as tentativas
fascistas que querem que a juventude esquea
as barbaridades do ado.
O livro repleto de um clamor por
justia. O companheiro Dermi Azevedo
nos transmite uma esperana e uma
f alicerada na convico
de que, apesar das maiores injustias
que possamos sofrer, nunca devemos desanimar,
mas sempre acreditar que um mundo solidrio
e fraterno o futuro da humanidade.
As futuras geraes sero
feitas de homens como Dermi Azevedo, que
sabem transformar dio em perdo,
quedas em recomeos. O escritor Stephan
Zweig disse: “Um homem s pode
dizer que j viveu, quando sentiu
na pele as misrias desta vida”.
Dermi Azevedo fez isto, transformou as misrias
da vida em uma travessia para um mundo de
liberdade e amor.
*Vladimir
Platilha
Membro do Diretrio Estadual do PPL-PA,
Partido Ptria Livre
Apresentao
II
Dalmo Evangelista
Mestre
Dermi,
Sei que voc ter uma surpresa
muito grande ao receber esta correspondncia.
Mas, diferentemente de Sofia (GAARDER, Jostein)
no precisa entregar a Hilde Knag!
Afinal, eu sei quem voc!
Na
verdade, a remessa deveria ter sido feita
h meses, no momento em que comemoramos
os 80 anos do Seminrio de So
Pedro. Mas atribuo o atraso no
falta de ateno ou gentileza
para com o inesquecvel amigo, mas,
certamente, s atribulaes
do dia adia e prpria rotina
espartana comum ao nosso cotidiano.
Mestre,
embora as pessoas nem sempre percorram os
mesmos caminhos, muitas vezes ocorrem momentos
de aproximao. Estes no
devem ser desperdiados, pois materializam
o resgate de aspectos e lembranas
da histria de cada um e ainda produzem
conforto espiritual e sentimentos de alegria
e satisfao. nesta
perspectiva e com esprito de fraternidade
que envio esta carta para voc, mesmo
correndo o risco de algum j
t-lo feito e voc j
deve ter lido a “Revista Comemorativa”
em anexo.
Talvez
voc no saiba, mas voc
foi a pessoa que me presenteou um livro,
pela primeira vez na minha vida. E aquilo
serviu para despertar em mim o gosto e o
zelo pela leitura. Voc era,
poca, chefe da equipe de Cultura,
no Seminrio de So Pedro.
O livro potico da Bblia,
os Salmos, teria sido uma homenagem de reconhecimento
apresentao de um
trabalho em um dos Ncleos de Improviso,
ento existentes no Seminrio.
Sempre
falamos aqui em voc. Quis o destino
que eu fosse ensinar em Currais Novos (atualmente
sou professor da UFRN – Curso de istrao),
belssima cidade, sobre a qual tanto
ouvi comentar, ainda no Seminrio,
tanto por voc quanto pelos colegas
Ernane e Erli (meus atuais “vizinhos”,
em Natal). Em l chegando, conheci
Lcia, pessoa amvel que dispensa
comentrios, e a quem devo oportunidade
deste contato. E sobre voc ela tem
sempre elogios!
Mestre
Dermi, a festinha de comemorao
pelos 80 anos do Seminrio foi altamente
agradvel. Reuniu, no Amrica,
toda a cpula da igreja local e do
Seminrio, tanto as autoridades do
ado, como as de hoje, tendo havido uma
interessante integrao com
os atuais e os ex-seminaristas. Sei que
voc quer saber, mesmo no
sendo possvel citar todos os que
estavam presentes: os mestres Misael, lder
e principal incentivador dos frequentes
encontros das turmas – Adauto, Ernane,
Pedro Avelino, Z Lus, Lcio,
Lira, Marcos e Anchieta (irmo),
Campos, Canind, Cassiano, Z
Aquino, Z Gonalves, Gildenor,
Tarcsio, Z Gomes, Ivanilson,
Joo Agripino, Jocelin, Tarcsio
Palhano, Jaime (agora Dom) e muitos outros.
Notou-se a ausncia do mestre Ferreira,
tambm meu vizinho; e ainda a do
pessoal da “Pax et Bonum”, com
todo o respeito que merece!
Dermi,
mesmo distncia, procuramos
sempre ter alguma informao
sobre voc. Desde a Editora Vozes,
onde voc esteve; nas entrevistas
na televiso com alguma frequncia;
e tambm na Folha de S. Paulo, atravs
de algumas reportagens suas. Infelizmente,
s leio a Folha aos domingos, pois
aqui o preo do jornal alto
(R$ 6,00 aos domingos), e completo a leitura
durante a semana pela internet.
Agora
vou preparar o envelope para mandar pra
voc, mesmo com o sentimento de que
voc esteja at em Currais
Novos hoje, pois estou escrevendo em plena
festa de Santana! No deverei ir
s festividades, pois ei a semana
em Braslia, onde apresentarei um
trabalho na SBPC, que termina hoje.
A
voc muitas felicidades e um abrao
amigo,
Dalmo
Evangelista
Assim
comearam minhas travessias
Eu
tinha apenas 16 anos quando avistei, nos
cus de Natal, dezenas de avies
que sobrevoavam baixo a cidade. Eu e os
outros alunos do Seminrio de So
Pedro fomos convocados pelo reitor, cnego
Lucilo Machado, para a sala de reunies.
Logo lhe per-guntamos o que estava acontecendo.
Respondeu que eram ”as foras
armadas que estavam derrubando o comunismo”.
O rdio da sala estava ligado no
Reprter Esso e Heron Domingues narrava
o deslocamento de tropas de Minas Gerais
para o Rio de Janeiro, sob o comando do
general Olmpio Mouro Filho.
As notcias do sucesso do golpe chegavam
filtradas aos nossos ouvidos, mas j
eram fortes as informaes
sobre a priso de dezenas e centenas
de pessoas acusadas de “subverso”.
Uma das primeiras memrias que eu
tenho da infncia a de um
caso de injustia social. Meus pais,
Jos e Amlia, lembravam sempre,
entre lgrimas, o que aconteceu com
Derci, o nico sobrevivente do primeiro
casamento de minha me com Joo
Aprgio de Azevedo, seu parente de
Jardim do Serid. Joo havia
deixado para Darci um pedao de terra
como herana, mas logo depois de
sua morte, um fazendeiro rico da regio,
Jos Ginani, a tomou dele sob ameaas.
O fato ficou por isso mesmo. Anos depois
Derci, sua esposa Iracema e seus filhos
Joo e Ftima se mudaram para
o Rio de Janeiro, onde ele trabalhou como
motorista e cobrador de nibus. Depois,
j doente, voltou para Currais Novos.
Morreu moo aos 30 e poucos anos.
Influiu tambm na minha formao
religiosa a Cruzada Eucarstica Infantil
dirigida pela professora Gisela Pereira,
que nos deu, por exemplo, as primeiras lies
sobre o mistrio da Eucaristia.
Quando eu tinha nove anos, fiz a minha primeira
confisso com Mons. Paulo Herncio
de Melo, vigrio de Currais Novos.
No confessionrio da Igreja Matriz
de Sant’ana, ele me perguntou: “Voc
quer entrar no seminrio?”.
Eu respondi: “Sim”. Pouco tempo
depois, minha me arrumou uma malinha
de madeira e segui para o seminrio
de Caic, a maior cidade da regio
do Serid.
O seminrio era dirigido por padres
holandeses, da Congregao
da Misso. Eles nos ensinaram a dividir
o tempo entre o estudo das disciplinas obrigatrias
e a leitura de obras clssicas da
literatura mundial. Tnhamos um especial
apreo pela rainha da Holanda, Juliana,
isto porque, no dia do seu aniversrio,
era tambm feriado para ns.
Alguns seminaristas de Currais Novos formaram
um grupo para uma interveno
cultural no municpio durante as
frias. O grupo era integrado por
mim, por Manoel Jaime Xavier Filho, por
Jos Adailson de Medeiros e por Jos
Alves Pinheiro. Colaborvamos com
a redao do jornal Tribuna
Estudantil, onde eu escrevia uma coluna
sobre poltica internacional, e com
os programas da Rdio Breju,
da famlia Salustino, a mais rica
da cidade. Participava tambm do
grupo o professor Antnio Quintino,
historiador e dono de uma grfica.
Seu trabalho era muito bem organizado e
isto me ajudou bastante, mais tarde, no
aspecto metodolgico da pesquisa
acadmica.
Encerrado o perodo de estudos em
Caic, mudei-me para Natal para fazer
o colegial. A disciplina no Seminrio
de So Pedro era rgida. De
manh bem cedo, amos sonolentos
para a missa na capela. Depois se iniciavam
as aulas. No almoo, costumvamos
escutar em silncio a histria
dos mrtires no Imprio Romano.
De vez em quando, havia uma hora matinal
de meditao embaixo das mangueiras
e cada um recebia um livro com a histria
de um santo. Vrios colegas aproveitavam
para ler clandestinamente outros livros
como “A Carne”, do portugus
Jlio Ribeiro, e “A vida sexual
dos solteiros e casados”, do padre
e mdico maranhense Joo Mohana.
Trs anos depois, eu aria a ser
uma das pessoas perseguidas e procuradas
pela ditadura. Em 1967, fiz o meu primeiro
vestibular e ingressei na Escola de Servio
Social, da Universidade Federal do Rio Grande
do Norte.
Essa primeira travessia representou uma
dupla mudana qualitativa em minha
vida: de um lado, afastei-me definitivamente
do projeto de ser padre; de outro, ei
a ter um contato direto com uma gerao
de intelectuais cuja viso sobre
o ser humano e sua insero
na sociedade, de forma transformadora, iria
marcar para sempre a minha prpria
leitura da realidade. Foram figuras como
o professor Otto de Brito Guerra e as assistentes
sociais do Movimento de Natal (mobilizao
reformista da Igreja Catlica no
Nordeste) que mais influram sobre
minha formao universitria.
Em 1967, fui eleito o primeiro presidente
do Centro Acadmico D. Hlder
Cmara, da Escola de Servio
Social. Logo comecei a atuar no movimento
estudantil. Iniciamos ento os preparativos
para o XXX Congresso da UNE, em Ibina,
no interior de So Paulo. Tomei conscincia,
cada vez mais, do meu papel de lutar por
uma sociedade livre, democrtica
e soberana.
Mesmo fragilizados pela represso,
os diversos partidos e organizaes
de esquerda continuaram a sua luta, agora
toda voltada contra o regime de fato, imposto
ao pas. Em Natal, nos reunamos
regularmente no restaurante universitrio,
para anlise da conjuntura. Cada
um se encarregava de preparar uma resenha
crtica de suas leituras para o debate
no grupo. Pela primeira vez na vida, tomei
conhecimento mais sistemtico do
marxismo, graas a Emmanuel Bezerra,
que me emprestou o livro clssico
Princpios Fundamentais de Filosofia,
do francs George Politzer.
No auge da mobilizao, decidimos
ocupar o restaurante universitrio.
A alimentao servida aos
estudantes era a pior possvel e
a sujeira era generalizada. Durante 15 dias,
os estudantes e a populao
uniram esforos para reformar a cozinha
e para melhorar o servio e a luta
foi vitoriosa.
Os slogans predominantes nas manifestaes
variavam de acordo com as organizaes
e partidos de esquerda. Contudo, havia consenso
em torno da palavra unitria de ordem
que era: “Desgastar a ditadura e formar
quadros para a Revoluo’’.
Eplogo
Camaradas Emmanuel e Manoel Lisboa,
Faz tempo que ns no nos
encontrvamos pessoalmente. Estivemos
juntos em So Paulo, durante o governo
de Luiza Erundina, quando seus corpos foram
trasladados para o Nordeste. Foi cumprido,
assim, o ritual exigido pelos homens e mulheres
justos de todos os tempos: o cerimonial
que indica para toda a sociedade um parmetro
eterno e imprescritvel, o da dignidade
humana. Confesso que chorei discreta e copiosamente
ao ver aqueles ossos e aquelas sandlias
carcomidos pelo tempo. Misteriosamente,
os ossos se juntaram e surpreenderam os
carcereiros e seus chefes, certos que estavam
de que vocs tinham sido esmagados
para sempre...
Emmanuel e Manoel: eles entenderam tudo
errado. No foram capazes de compreender
que, mais cedo ou mais tarde, vocs
sairo novamente pelas ruas, plenos
de vida, como lderes de uma nova
sociedade de homens e mulheres livres. Alis,
cama-radas, vocs sabem muito bem
que os corpos podem ser triturados inumerveis
vezes; a vitria dos inimigos do
povo poder ser proclamada em decretos,
discursos e festejada em orgisticas
manifestaes.
Mas ningum ser capaz de
aprisionar e de matar a chama de vida permanentemente
acesa no corao de cada criana,
de cada menina, de cada menino, de cada
jovem, de cada me, de cada pai...
Depois de todo esse longo perodo
voltei a encontr-los em Belm
do Par, no ato pblico organizado
pelo Sindicato dos Professores, em parceria
com o PCR. Reencontrei-os na pessoa de Caj.
Fazia tempo que ns no nos
vamos, mas voltou a ocorrer, nessa
noite, o que acontece entre verdadeiros
amigos: os assuntos esto sempre
na ordem do dia, como se a reunio
anterior tivesse acontecido na vspera...
Anotei na minha memria que a marca
registrada do ato em Belm foi a
da simplicidade. Vocs sabem, alis,
que foram homens e mulheres simples todos
os grandes revolucionrios: Karl
Marx, Rosa Luxemburgo, Zumbi, Che Guevara,
Ho Chi Minh, Ben Bella, Agostinho Neto,
Luiz Carlos Prestes, Carlos Marighella,
Carlos Lamarca, Gregrio Bezerra,
Djalma Maranho, Pedro Pomar, Amaro
Lus de Carvalho, frei Tito, irm
Dorothy Stang, Margarida Maria Alves, Vladimir
Herzog, entre tantos ou-tros nomes de heris
e heronas na histria da
humanidade.
O nosso ltimo encontro pessoal,
camaradas, aconteceu numa tarde de sbado
de 1967, numa tosca escadaria entre a Cidade
Alta e a Ribeira, em Natal. Refletimos sobre
a terrvel conjuntura que se abatera
no Brasil, desde que o Estado policial,
repressivo e torturador se abateu sobre
a Nao em nome da “segurana
nacional”. Nessa reunio, discutimos
o que poderia ser a melhor estratgia
para o movimento estudantil naquele momento
histrico. Voc, Manoel, resumiu
didaticamente a orientao
do Partido: o nosso movimento deveria empenhar-se
na luta para desgastar a ditadura e na formao
de quadros para a Revoluo.
Antes desse sbado, eu me encontrara
com voc, Emmanuel. E voc confiou-me
a primeira tarefa: estudar e fazer um resumo
do livro “Princpios fundamentais
de Filosofia”, do filsofo
marxista francs Georges Politzer.
Lembro-me muito bem o que voc me
disse naquele momento: “Procure ler
e estudar esse livro com esprito
revolucionrio e no burocrtico.
Estude sempre e tenha sempre em mente o
projeto que move a nossa vida, que
o de construir, na luta, um mundo livre
da explorao do ser humano”.
Ao registrar essas memrias, quero
enfatizar que tenho bem presente, em todo
o meu ser, o significado de todo um processo
existencial. Nele, aprendi as lies
de simplicidade e ternura dos meus pais
Jos e Amlia; de engajamento
e de firmeza ide-olgica de Emmanuel
Bezerra, Manoel Lisboa de Moura e de outros
companheiros de luta contra a ditadura;
de honestidade e de esprito cientfico
de professores como Paulo Srgio
Pinheiro e Benjamin de Souza Netto; de compromisso
evanglico de Antnio Henrique
Pereira Neto, Paulo Evaristo Arns, Pedro
Casaldliga, Toms Balduno
e Sumio Takatsu; de engajamento revolucionrio
de Ana Lobo e de sua filha Elsa, de Eliana
Rollemberg, de Isabel Peres e de Maria Sala;
de conscincia de classe de Valdemar
Rossi, Nelson Martinez, Jos Luiz
Brum, Brs Joison, Nilson, Gacho;
de engajamento em favor dos direitos humanos
de Roberto Monte, Nilmrio Miranda,
Perly Cipriano, Nilda Turra e Marga Rothe.
Aprendi tambm que no basta
dizer-se de esquerda para proclamar-se militante.
Em muitos casos, sobretudo com respeito
condio feminina,
as violncias acontecem mais no campo
progressista.
Em todas essas andanas, sempre tentei
ser amoroso. Fracassei muitas vezes. Mas
continuo pensando que, sem amor, a vida
se esteriliza. O amor verdadeiro exige um
exerccio permanente de busca, pacincia
e de recomeo. Poder-se-ia perguntar:
como possvel falar em amor
depois de ter vivido e de relembrar tantas
tragdias? Responderia que o ser
humano no uma pedra jogada
no espao. Sua primeira vocao
a de amorizar o mundo. Isto significa
lutar por relaes humanas
autnticas e construir um espao
vital inspirado na liberdade, na igualdade
e na fraternidade. Significa tambm
eliminar todos os fatores que levaram a
sociedade a ser um recanto de bem-estar
para poucos e de misria para bilhes
de seres humanos.
Se fosse preciso recomearia tudo.
Voltaria s ruas de Natal para participar
de eatas estudantis. Reencontraria outros
militantes para a partilha de leituras e
de estudos. Se fosse preciso, pediria de
novo o apoio e o refugio a outros militantes.
E continuaria a sonhar com um mundo novo,
de homens e de mulheres novos.
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