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Comit Estadual pela Verdade, Memria e Justia RN - Rio Grande do Norte Centro de Direitos Humanos e Memria Popular CDHMP Rua Vigrio Bartolomeu, 635 Salas 606 e 607 Centro CEP 59.025-904 Natal RN 84 3211.5428 [email protected] 3c561k

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Capa Dermi

Travessias Torturadas
Dermi Azevedo

Coleo Memria das Lutas Populares

Home Page de Dermi Azevedo
e

Este livro , ao mesmo tempo, um registro autobiogrfico e poltico do autor e um testemunho sobre os anos de chumbo na Brasil, entre os anos de 1964/1985. Esse perodo marcou profundamente a situao existencial de Dermi Azevedo. Ele optou, em plena juventude, por dedicar-se integralmente luta pela dignidade humana e por uma sociedade justa, fraterna, solidria e democrtica. Pagou conscientemente o duro preo de sua escolha, como relata nesse livro. Um preo mais alto ainda foi pago por centenas de brasileiros e brasileiras que se empenharam nas lutas contra a ditadura civil-militar. Eles/elas constituem o grande universo dos mortos e dos desaparecidos polticos.


Este livro-memria soma-se a todos os demais relatos dos/das combatentes contra o regime fascista que dizimou a Nao brasileira. E cujas consequncias nunca sero plenamente vencidas. A linha seguida pelo autor corresponde ao pensamento emitido por Danton na Revoluo sa: “No tenho rancor. Tenho memria”.


O autor

Jornalista e Cientista Poltico, graduado em Jornalismo pela UFRN (1979); Especialista em Relaes Internacionais pela Fundao Escola de Sociologia e Poltica de SP (FSESP) com estudo sobre a poltica externa do Vaticano; Mestre em Cincia Poltica pela USP, em 2001, com dissertao sobre o tema "Igreja e Ditadura Militar. Colaborao Religiosa com a Represso de 1964". Doutor em Cincia Poltica pela USP, em 2005, com tese sobre "Igreja e Democracia. A Democracia na Igreja", sob a orientao do Prof. Dr. Paulo Srgio Pinheiro.

Exerce o Jornalismo desde 1967, tendo trabalhado como reprter, redator, editor e correspondente em vrias revistas e jornais. Fez a cobertura de diversas viagens do Papa Joo Paulo II e de importantes eventos ligados aos Direitos Humanos e aos Movimentos Sociais. No servio pblico, ocupou vrios cargos e funes nos governos do RN e de SP. Em Natal, dirigiu a FETAC (Fundao Estadual do Trabalho e da Ao Comunitria). Em SP, foi Assessor Tcnico da Secretaria da Justia e da Defesa da Cidadania. Presidiu, de 1999 a 2009, o Conselho Deliberativo do Programa Estadual de Proteo s Testemunhas (PROVITA), integrou o Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CONDEPE). Foi um dos coordenadores do Programa Estadual de Direitos Humanos (SP). um dos fundadores do Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH). Foi preso poltico em 1968, no XXX Congresso da UNE, em Ibina/SP e em 1974, em So Paulo/SP. anistiado poltico. Participou como um dos representantes da sociedade civil brasileira, da II Conferncia Mundial de Direitos Humanos, promovida pela ONU, em Viena (ustria), em 1993. um dos membros da IEAB (Igreja Episcopal Anglicana do Brasil). portador da Sndrome de Parkinson.

Travessias Torturadas - Excertos
Dermi Azevedo

Aos eternos companheiros e companheiras de luta Emmanuel Bezerra, Manoel Lisboa de Moura, frei Tito de Alencar Lima, Maria Nilde Mascellani, Jos Luiz Brum, Nelson Martinez, Vanderlei Caixe, Flvio Canalonga, Joo Bittar, frei Giorgio Callegari e Paulo Freire.

Dedico em especial este livro ao meu primeiro filho Carlos Alexandre Azevedo que, com menos de dois anos, sofreu em seu frgil corpo de criana a brutalidade da represso fascista nos pores do DEOPS/SP.

Dedico tambm aos meus pais Jos e Amlia, s minhas irms Sebastiana e seus filhos Walter, Ftima e Vera, Judy e seus filhos Judson e Josenaldo, Cludia, aos meus filhos Carlos Alexandre, Daniel, Estevo e Joana, minha esposa Elis Regina Almeida Azevedo e s nossas filhas Paula, Betnia e Fernanda, a d. Jlia Almeida e Valdir e aos seus filhos.

A todos os companheiros de luta por um mundo mais justo, na pessoa de Roberto Monte e Maise e aos homens e mulheres decentes que marcaram a minha vida.


O Povo Como Protagonista

Este livro tem como protagonista o povo brasileiro. Isto significa dizer que os fatos aqui narrados e testemunhados esto intimamente vinculados ao doloroso processo de emancipao dos povos originrios, dos negros, dos quilombolas, dos trabalhadores urbanos e rurais, das mulheres e dos homens, das crianas, dos jovens e dos idosos deste pas chamado Brasil.

O autor integra esse povo e sua trajetria pessoal est diretamente ligada a essa caminhada histrica. Como dizia Ortega y Gasset, “o homem o homem e suas circunstncias”. Talvez se o autor fosse oriundo das classes sociais que historicamente controlam o poder no Brasil, suas palavras manifestariam outra ideologia conservadora elitista, preconceituosa e legitimadora da violncia.

No entanto, a sua origem de classe e as circunstncias favoreceram o seu processo de conscientizao no seio da classe trabalhadora e, portanto, do povo. Esse universo especfico representado pelos migrantes nordestinos, pelos mineradores do interior do Rio Grande do Norte, pelos paulistanos apressados para chegar ao trabalho, por todas as vtimas de qualquer discriminao.

Foi contra o povo brasileiro que as elites civis e militares levantaram-se em 1964, com o apoio do governo dos Estados Unidos. Elas j haviam percebido que o processo de reformas democrticas no Brasil levaria o povo a conquistar espaos talvez definitivos na afirmao de seus direitos de cidadania. Deste modo, a preocupao do autor a de resgatar, na sua prpria histria pessoal e no testemunho gritante de centenas de mortos e desaparecidos polticos, o carter deste processo.

Outra nfase dada pelo autor refere-se aos aspectos subjetivos da vivncia de uma ditadura fascista e repressora por natureza. Ningum consegue descrever, com inteireza, o impacto desumano e destrutivo da ditadura de 1964 no plano ideolgico. Durante a Guerra Civil espanhola, a imprensa perguntou a um general por que o franquismo perseguia a esquerda: “Porque pensam”.

Os golpistas de 1964 fizeram exatamente o mesmo: tentaram extirpar o pensamento crtico no Brasil, substituindo-o pela ideologia da segurana nacional. No me esqueo da recomendao que recebia de alguns editores de jornais e revistas onde trabalhei. De antemo, eu reprter no poderia, nas entrevistas, mencionar a expresso direitos humanos. Muitos homens e mulheres das Igrejas colaboraram nessa srdida tarefa de esmagar o pensamento crtico.

A histria cobra deles hoje a sua responsabilidade. E o faz por meio das armas democrticas representadas pelas comisses da verdade e da memria, embora criadas muito recentemente (e o Brasil um dos pases mais atrasados nesse ponto na Amrica Latina), essas instituies expressam um avano na interveno da sociedade civil e do povo brasileiro.

O autor considera que h muito que fazer, muito mais do que j foi feito. Os mortos e desaparecidos polticos esperam a nossa atuao permanente e firme. O autor reconhece e agradece a todas as pessoas que colaboraram para que esse livro fosse publicado. E espera que cada leitor e cada leitora reveja o seu papel nesse processo.

A democracia formal no pode iludir-se sobre o carter efmero e susceptvel das democracias de Estado de Direito. Trata-se de uma planta bela e fraca, por natureza, que exige ser cuidada a cada minuto do dia; do contrrio, a falta de gua felicitar a tarefa dos abutres e todas as nossas sero exterminadas. No entanto, existem sinais de esperana. Espero que este livro contribua para reforar a esperana em um Brasil justo, e fraterno, e solidrio.

Apresentao I
Vladimir Platilha*

Os que lutam,
“H aqueles que lutam um dia, e por isso so bons.
H aqueles que lutam muitos dias, e por isso, so muito bons.
H aqueles que lutam anos, e so melhores ainda, porm h aqueles que lutam toda a vida.
Esses so os imprescindveis”. (Bertolt Brecht)

O livro do companheiro Dermi Azevedo se enquadra dentro dessa viso do poeta Bertolt Brecht. um livro imprescindvel. Possui uma das poucas caractersticas dentro da autobiografia literria, que o equilbrio humanista de um esteta com a conscincia social de um jornalista poltico. Seu livro nos faz retornar ao tempo tenebroso da ditadura militar; sua travessia torturada em meio a um deserto de crimes e de atrocidades mais do que uma lio, uma reflexo para que todos os patriotas se unam para barrar as tentativas fascistas que querem que a juventude esquea as barbaridades do ado.
O livro repleto de um clamor por justia. O companheiro Dermi Azevedo nos transmite uma esperana e uma f alicerada na convico de que, apesar das maiores injustias que possamos sofrer, nunca devemos desanimar, mas sempre acreditar que um mundo solidrio e fraterno o futuro da humanidade. As futuras geraes sero feitas de homens como Dermi Azevedo, que sabem transformar dio em perdo, quedas em recomeos. O escritor Stephan Zweig disse: “Um homem s pode dizer que j viveu, quando sentiu na pele as misrias desta vida”. Dermi Azevedo fez isto, transformou as misrias da vida em uma travessia para um mundo de liberdade e amor.

*Vladimir Platilha
Membro do Diretrio Estadual do PPL-PA, Partido Ptria Livre

Apresentao II
Dalmo Evangelista

Mestre Dermi,
Sei que voc ter uma surpresa muito grande ao receber esta correspondncia. Mas, diferentemente de Sofia (GAARDER, Jostein) no precisa entregar a Hilde Knag! Afinal, eu sei quem voc!

Na verdade, a remessa deveria ter sido feita h meses, no momento em que comemoramos os 80 anos do Seminrio de So Pedro. Mas atribuo o atraso no falta de ateno ou gentileza para com o inesquecvel amigo, mas, certamente, s atribulaes do dia adia e prpria rotina espartana comum ao nosso cotidiano.

Mestre, embora as pessoas nem sempre percorram os mesmos caminhos, muitas vezes ocorrem momentos de aproximao. Estes no devem ser desperdiados, pois materializam o resgate de aspectos e lembranas da histria de cada um e ainda produzem conforto espiritual e sentimentos de alegria e satisfao. nesta perspectiva e com esprito de fraternidade que envio esta carta para voc, mesmo correndo o risco de algum j t-lo feito e voc j deve ter lido a “Revista Comemorativa” em anexo.

Talvez voc no saiba, mas voc foi a pessoa que me presenteou um livro, pela primeira vez na minha vida. E aquilo serviu para despertar em mim o gosto e o zelo pela leitura. Voc era, poca, chefe da equipe de Cultura, no Seminrio de So Pedro. O livro potico da Bblia, os Salmos, teria sido uma homenagem de reconhecimento apresentao de um trabalho em um dos Ncleos de Improviso, ento existentes no Seminrio.

Sempre falamos aqui em voc. Quis o destino que eu fosse ensinar em Currais Novos (atualmente sou professor da UFRN – Curso de istrao), belssima cidade, sobre a qual tanto ouvi comentar, ainda no Seminrio, tanto por voc quanto pelos colegas Ernane e Erli (meus atuais “vizinhos”, em Natal). Em l chegando, conheci Lcia, pessoa amvel que dispensa comentrios, e a quem devo oportunidade deste contato. E sobre voc ela tem sempre elogios!

Mestre Dermi, a festinha de comemorao pelos 80 anos do Seminrio foi altamente agradvel. Reuniu, no Amrica, toda a cpula da igreja local e do Seminrio, tanto as autoridades do ado, como as de hoje, tendo havido uma interessante integrao com os atuais e os ex-seminaristas. Sei que voc quer saber, mesmo no sendo possvel citar todos os que estavam presentes: os mestres Misael, lder e principal incentivador dos frequentes encontros das turmas – Adauto, Ernane, Pedro Avelino, Z Lus, Lcio, Lira, Marcos e Anchieta (irmo), Campos, Canind, Cassiano, Z Aquino, Z Gonalves, Gildenor, Tarcsio, Z Gomes, Ivanilson, Joo Agripino, Jocelin, Tarcsio Palhano, Jaime (agora Dom) e muitos outros. Notou-se a ausncia do mestre Ferreira, tambm meu vizinho; e ainda a do pessoal da “Pax et Bonum”, com todo o respeito que merece!

Dermi, mesmo distncia, procuramos sempre ter alguma informao sobre voc. Desde a Editora Vozes, onde voc esteve; nas entrevistas na televiso com alguma frequncia; e tambm na Folha de S. Paulo, atravs de algumas reportagens suas. Infelizmente, s leio a Folha aos domingos, pois aqui o preo do jornal alto (R$ 6,00 aos domingos), e completo a leitura durante a semana pela internet.

Agora vou preparar o envelope para mandar pra voc, mesmo com o sentimento de que voc esteja at em Currais Novos hoje, pois estou escrevendo em plena festa de Santana! No deverei ir s festividades, pois ei a semana em Braslia, onde apresentarei um trabalho na SBPC, que termina hoje.

A voc muitas felicidades e um abrao amigo,

Dalmo Evangelista

Assim comearam minhas travessias

Eu tinha apenas 16 anos quando avistei, nos cus de Natal, dezenas de avies que sobrevoavam baixo a cidade. Eu e os outros alunos do Seminrio de So Pedro fomos convocados pelo reitor, cnego Lucilo Machado, para a sala de reunies. Logo lhe per-guntamos o que estava acontecendo. Respondeu que eram ”as foras armadas que estavam derrubando o comunismo”.

O rdio da sala estava ligado no Reprter Esso e Heron Domingues narrava o deslocamento de tropas de Minas Gerais para o Rio de Janeiro, sob o comando do general Olmpio Mouro Filho. As notcias do sucesso do golpe chegavam filtradas aos nossos ouvidos, mas j eram fortes as informaes sobre a priso de dezenas e centenas de pessoas acusadas de “subverso”.

Uma das primeiras memrias que eu tenho da infncia a de um caso de injustia social. Meus pais, Jos e Amlia, lembravam sempre, entre lgrimas, o que aconteceu com Derci, o nico sobrevivente do primeiro casamento de minha me com Joo Aprgio de Azevedo, seu parente de Jardim do Serid. Joo havia deixado para Darci um pedao de terra como herana, mas logo depois de sua morte, um fazendeiro rico da regio, Jos Ginani, a tomou dele sob ameaas. O fato ficou por isso mesmo. Anos depois Derci, sua esposa Iracema e seus filhos Joo e Ftima se mudaram para o Rio de Janeiro, onde ele trabalhou como motorista e cobrador de nibus. Depois, j doente, voltou para Currais Novos. Morreu moo aos 30 e poucos anos.

Influiu tambm na minha formao religiosa a Cruzada Eucarstica Infantil dirigida pela professora Gisela Pereira, que nos deu, por exemplo, as primeiras lies sobre o mistrio da Eucaristia.

Quando eu tinha nove anos, fiz a minha primeira confisso com Mons. Paulo Herncio de Melo, vigrio de Currais Novos. No confessionrio da Igreja Matriz de Sant’ana, ele me perguntou: “Voc quer entrar no seminrio?”. Eu respondi: “Sim”. Pouco tempo depois, minha me arrumou uma malinha de madeira e segui para o seminrio de Caic, a maior cidade da regio do Serid.

O seminrio era dirigido por padres holandeses, da Congregao da Misso. Eles nos ensinaram a dividir o tempo entre o estudo das disciplinas obrigatrias e a leitura de obras clssicas da literatura mundial. Tnhamos um especial apreo pela rainha da Holanda, Juliana, isto porque, no dia do seu aniversrio, era tambm feriado para ns. Alguns seminaristas de Currais Novos formaram um grupo para uma interveno cultural no municpio durante as frias. O grupo era integrado por mim, por Manoel Jaime Xavier Filho, por Jos Adailson de Medeiros e por Jos Alves Pinheiro. Colaborvamos com a redao do jornal Tribuna Estudantil, onde eu escrevia uma coluna sobre poltica internacional, e com os programas da Rdio Breju, da famlia Salustino, a mais rica da cidade. Participava tambm do grupo o professor Antnio Quintino, historiador e dono de uma grfica. Seu trabalho era muito bem organizado e isto me ajudou bastante, mais tarde, no aspecto metodolgico da pesquisa acadmica.

Encerrado o perodo de estudos em Caic, mudei-me para Natal para fazer o colegial. A disciplina no Seminrio de So Pedro era rgida. De manh bem cedo, amos sonolentos para a missa na capela. Depois se iniciavam as aulas. No almoo, costumvamos escutar em silncio a histria dos mrtires no Imprio Romano. De vez em quando, havia uma hora matinal de meditao embaixo das mangueiras e cada um recebia um livro com a histria de um santo. Vrios colegas aproveitavam para ler clandestinamente outros livros como “A Carne”, do portugus Jlio Ribeiro, e “A vida sexual dos solteiros e casados”, do padre e mdico maranhense Joo Mohana.

Trs anos depois, eu aria a ser uma das pessoas perseguidas e procuradas pela ditadura. Em 1967, fiz o meu primeiro vestibular e ingressei na Escola de Servio Social, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

Essa primeira travessia representou uma dupla mudana qualitativa em minha vida: de um lado, afastei-me definitivamente do projeto de ser padre; de outro, ei a ter um contato direto com uma gerao de intelectuais cuja viso sobre o ser humano e sua insero na sociedade, de forma transformadora, iria marcar para sempre a minha prpria leitura da realidade. Foram figuras como o professor Otto de Brito Guerra e as assistentes sociais do Movimento de Natal (mobilizao reformista da Igreja Catlica no Nordeste) que mais influram sobre minha formao universitria.

Em 1967, fui eleito o primeiro presidente do Centro Acadmico D. Hlder Cmara, da Escola de Servio Social. Logo comecei a atuar no movimento estudantil. Iniciamos ento os preparativos para o XXX Congresso da UNE, em Ibina, no interior de So Paulo. Tomei conscincia, cada vez mais, do meu papel de lutar por uma sociedade livre, democrtica e soberana.

Mesmo fragilizados pela represso, os diversos partidos e organizaes de esquerda continuaram a sua luta, agora toda voltada contra o regime de fato, imposto ao pas. Em Natal, nos reunamos regularmente no restaurante universitrio, para anlise da conjuntura. Cada um se encarregava de preparar uma resenha crtica de suas leituras para o debate no grupo. Pela primeira vez na vida, tomei conhecimento mais sistemtico do marxismo, graas a Emmanuel Bezerra, que me emprestou o livro clssico Princpios Fundamentais de Filosofia, do francs George Politzer.

No auge da mobilizao, decidimos ocupar o restaurante universitrio. A alimentao servida aos estudantes era a pior possvel e a sujeira era generalizada. Durante 15 dias, os estudantes e a populao uniram esforos para reformar a cozinha e para melhorar o servio e a luta foi vitoriosa.

Os slogans predominantes nas manifestaes variavam de acordo com as organizaes e partidos de esquerda. Contudo, havia consenso em torno da palavra unitria de ordem que era: “Desgastar a ditadura e formar quadros para a Revoluo’’.

Eplogo

Camaradas Emmanuel e Manoel Lisboa,

Faz tempo que ns no nos encontrvamos pessoalmente. Estivemos juntos em So Paulo, durante o governo de Luiza Erundina, quando seus corpos foram trasladados para o Nordeste. Foi cumprido, assim, o ritual exigido pelos homens e mulheres justos de todos os tempos: o cerimonial que indica para toda a sociedade um parmetro eterno e imprescritvel, o da dignidade humana. Confesso que chorei discreta e copiosamente ao ver aqueles ossos e aquelas sandlias carcomidos pelo tempo. Misteriosamente, os ossos se juntaram e surpreenderam os carcereiros e seus chefes, certos que estavam de que vocs tinham sido esmagados para sempre...

Emmanuel e Manoel: eles entenderam tudo errado. No foram capazes de compreender que, mais cedo ou mais tarde, vocs sairo novamente pelas ruas, plenos de vida, como lderes de uma nova sociedade de homens e mulheres livres. Alis, cama-radas, vocs sabem muito bem que os corpos podem ser triturados inumerveis vezes; a vitria dos inimigos do povo poder ser proclamada em decretos, discursos e festejada em orgisticas manifestaes.

Mas ningum ser capaz de aprisionar e de matar a chama de vida permanentemente acesa no corao de cada criana, de cada menina, de cada menino, de cada jovem, de cada me, de cada pai...

Depois de todo esse longo perodo voltei a encontr-los em Belm do Par, no ato pblico organizado pelo Sindicato dos Professores, em parceria com o PCR. Reencontrei-os na pessoa de Caj. Fazia tempo que ns no nos vamos, mas voltou a ocorrer, nessa noite, o que acontece entre verdadeiros amigos: os assuntos esto sempre na ordem do dia, como se a reunio anterior tivesse acontecido na vspera...

Anotei na minha memria que a marca registrada do ato em Belm foi a da simplicidade. Vocs sabem, alis, que foram homens e mulheres simples todos os grandes revolucionrios: Karl Marx, Rosa Luxemburgo, Zumbi, Che Guevara, Ho Chi Minh, Ben Bella, Agostinho Neto, Luiz Carlos Prestes, Carlos Marighella, Carlos Lamarca, Gregrio Bezerra, Djalma Maranho, Pedro Pomar, Amaro Lus de Carvalho, frei Tito, irm Dorothy Stang, Margarida Maria Alves, Vladimir Herzog, entre tantos ou-tros nomes de heris e heronas na histria da humanidade.
O nosso ltimo encontro pessoal, camaradas, aconteceu numa tarde de sbado de 1967, numa tosca escadaria entre a Cidade Alta e a Ribeira, em Natal. Refletimos sobre a terrvel conjuntura que se abatera no Brasil, desde que o Estado policial, repressivo e torturador se abateu sobre a Nao em nome da “segurana nacional”. Nessa reunio, discutimos o que poderia ser a melhor estratgia para o movimento estudantil naquele momento histrico. Voc, Manoel, resumiu didaticamente a orientao do Partido: o nosso movimento deveria empenhar-se na luta para desgastar a ditadura e na formao de quadros para a Revoluo.
Antes desse sbado, eu me encontrara com voc, Emmanuel. E voc confiou-me a primeira tarefa: estudar e fazer um resumo do livro “Princpios fundamentais de Filosofia”, do filsofo marxista francs Georges Politzer. Lembro-me muito bem o que voc me disse naquele momento: “Procure ler e estudar esse livro com esprito revolucionrio e no burocrtico. Estude sempre e tenha sempre em mente o projeto que move a nossa vida, que o de construir, na luta, um mundo livre da explorao do ser humano”.

Ao registrar essas memrias, quero enfatizar que tenho bem presente, em todo o meu ser, o significado de todo um processo existencial. Nele, aprendi as lies de simplicidade e ternura dos meus pais Jos e Amlia; de engajamento e de firmeza ide-olgica de Emmanuel Bezerra, Manoel Lisboa de Moura e de outros companheiros de luta contra a ditadura; de honestidade e de esprito cientfico de professores como Paulo Srgio Pinheiro e Benjamin de Souza Netto; de compromisso evanglico de Antnio Henrique Pereira Neto, Paulo Evaristo Arns, Pedro Casaldliga, Toms Balduno e Sumio Takatsu; de engajamento revolucionrio de Ana Lobo e de sua filha Elsa, de Eliana Rollemberg, de Isabel Peres e de Maria Sala; de conscincia de classe de Valdemar Rossi, Nelson Martinez, Jos Luiz Brum, Brs Joison, Nilson, Gacho; de engajamento em favor dos direitos humanos de Roberto Monte, Nilmrio Miranda, Perly Cipriano, Nilda Turra e Marga Rothe. Aprendi tambm que no basta dizer-se de esquerda para proclamar-se militante. Em muitos casos, sobretudo com respeito condio feminina, as violncias acontecem mais no campo progressista.

Em todas essas andanas, sempre tentei ser amoroso. Fracassei muitas vezes. Mas continuo pensando que, sem amor, a vida se esteriliza. O amor verdadeiro exige um exerccio permanente de busca, pacincia e de recomeo. Poder-se-ia perguntar: como possvel falar em amor depois de ter vivido e de relembrar tantas tragdias? Responderia que o ser humano no uma pedra jogada no espao. Sua primeira vocao a de amorizar o mundo. Isto significa lutar por relaes humanas autnticas e construir um espao vital inspirado na liberdade, na igualdade e na fraternidade. Significa tambm eliminar todos os fatores que levaram a sociedade a ser um recanto de bem-estar para poucos e de misria para bilhes de seres humanos.

Se fosse preciso recomearia tudo. Voltaria s ruas de Natal para participar de eatas estudantis. Reencontraria outros militantes para a partilha de leituras e de estudos. Se fosse preciso, pediria de novo o apoio e o refugio a outros militantes. E continuaria a sonhar com um mundo novo, de homens e de mulheres novos.

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