Comit
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Reprimidos no Rio Grande do Norte
Rubens
Manoel Lemos
Memrias
do Exlio, por Rubens Lemos
Dirio de Natal, Abril de 2004
Dos
sertes de Pixor para o Chile
de Allende
Parte 1 - Memrias do Exlio,
por Rubens Lemos
Fugindo
ao cerco at o encontro com Djalma
Maranho
Parte 2 - Memrias do Exlio,
por Rubens Lemos
Jango
me disse: “Os militares no
entregam o poder to cedo”
Parte 3 - Memrias do Exlio,
por Rubens Lemos
Trs
dias e trs noites de perigo na Cordilheira
Sem Texto
Parte 4 - Memrias do Exlio,
por Rubens Lemos
Na
Polcia Federal:ali comea
a “Operao-Terror”
Parte 5 - Memrias do Exlio,
por Rubens Lemos
Ele
vai ver que aqui no adianta ser
macho?
Parte 6 - Memrias do Exlio,
por Rubens Lemos
“Minha
morte havia sido decretada, mas fui salvo
pelo gongo”
Parte 7 - Memrias do Exlio,
por Rubens Lemos (Final)
Memrias
do Exlio, por Rubens Lemos
Dirio de Natal, Abril
de 2004
“Acima
do tempo e do medo” um livro
que venho escrevendo desde 1974. Um livro-reportagem
sobre o duro perodo ditatorial,
a partir dos anos 60. mais precisamente:
entre 68 e 1973. Acontece que livro
livro: pode sair ou no. Depende
do tema. E quando se trata de falar das
barbaridades praticadas contra um sem nmero
de brasileiros,em decorrncia de um
regime insano e brutal, as coisas se complicam.
Eu fui personagem desse perodo de
obscurantismo.
Vivi a realidade das sombras, da clandestinidade,
do exlio e da priso. Sou
um daqueles que viveram e sofreram as atrocidades
cometidas contra o ser humano pelos esbirros
e torturadores do regime que se implementara
em 1964, no pas.
Mas no pretendo – como nunca
pretendi – ser heri ou mrtir.Nem
alimento sentimentos revanchistas estpidos.
Alimento, sim, o sonho de justia.Uma
justia que resgate a verdade.No
a verdade transformada em auto-referencialismos
ou automitificaes,to
ao gosto de alguns guerrilheiros urbanos
ou falsos lderes daquele tempo de
resistncia. As prateleiras das livrarias
– eu j disse – esto
cheias de literatura desse tipo. Na maioria
das vezes,vamos encontrar meias verdades,
atravs da folclorizao
debochada de aes, atitudes
e gestos de pessoas que no tiveram
a felicidade de continuar vivas. Que foram
mutiladas moral e fisicamente.
Quando nasci, h 48 anos, em Pixor,
hoje municpio de Santana do Matos,
no imaginava o que viria depois
das veredas da minha vida.No poderia
pensar que, um dia, estaria frente-a-frente
com Djalma Maranho, numa cidade
chamada Montevidu, recebendo a solidariedade
de um homem que fora prefeito de Natal.
De um ser humano digno que morreu de saudade
- de Natal e da Redinha.
E quem diria? Fosse, no futuro,aquele menino
de Pixor ir dar com os costados
nas terras de Salvador Allende – o
Chile. O mesmo Chile de Pablo Neruda, de
Violeta Parra, de Gabriela Mistral, onde
fui encontrar milhares de brasileiros perseguidos
pela Ditadura brasileira, entre os quais
alguns notveis da poltica
de hoje: Almino Afonso, Fernando Henrique
Cardoso, Miguel Arraes (de agem), Jos
Serra, Fernando Gabeira e at o traidor
maior da esquerda brasileira, conhecido
como Cabo Anselmo.
Voltando aos meus pagos,j no
encontrei Luiz Maranho, os jovens
Emmanuel Bezerra e Jos Silton,assassinados
barbaramente pela Ditadura.Encontrei a delao
que me levou Colnia Penal
“Joo Chaves” Encontrei
seqestradores que, na calada da noite,
me pam culos de borracha,algemas
e me levaram para o circo de horrores do
DOI-CODI, em Recife,onde gritos de torturados
sucumbiam ante o som alto,alegre e estridente
dos rdios executando “Eu te
amo,meu Brasil ,eu te amo”.
CAADO
POR TODA PARTE
1970.
Odilon Ribeiro Coutinho era candidato a
senador pelo MDB, nico agrupamento
poltico legal de resistncia
contra a Ditadura, consentido pelo regime
militar. Eu estava no interior. Saa
de Acari, onde Odilon tinha comcio
marcado. Na chamada “boca da noite”,
no meio da estrada poeirenta, a Kombi que
me levava era interceptada por um fusca
branco, que piscava as luzes. Parei e reconheci
o amigo comum:
-
Rubens a situao t
ruim pro seu lado. Sua casa foi invadida
em Natal, a casa de sua sogra tambm.
Esto lhe caando por toda
parte. H muita gente presa e voc
no pode voltar l.
Ajudado por Odilon e Roberto Furtado, consegui,
assim mesmo, entrar em Natal, altas horas
da noite do dia seguinte. Fiquei escondido
num a praia durante quatro dias. E, na verdade,
consegui romper o cerco que se estabelecera
contra mim. Houve tempo de ver minha mulher
(Isolda) e meu filho (Rubinho) recm-
nascido.
Quer eu quisesse,quer no, bateu
dentro de mim uma coragem que nunca tive.
O menino de Pixor aplicava a primeira
derrota contra a ditadura. Rompia o cerco,caa
no “oco do mundo”. Nos ouvidos
a cano de Vandr:
” Vem, vamos embora que esperar no
saber. quem sabe faz a hora no
espera acontecer...”
Primeiro,fui pras brenhas paraibanas e ,de
l, um dia parti para o Rio de Janeiro,
onde cheguei pensando:
“Vai,
jornalista, aprender a dar bofetada no vento.”
Os dias ando, dinheiro acabando.Dinheiro
que Odilon Ribeiro Coutinho me dera,mas
que hospedaria humilde em que me instalara
levava tudo.J “nas ltimas”
, tomei um nibus na Praa
15.Destino:Cordovil, bairro distante, onde
morava o meu querido tio Chico, irmo
do meu pai.To querido e solidrio
que, depois de lhe contar tudo e pedir abrigo
“por uns poucos dias”,ele respondeu:
- Lamento muito,meu filho,mas eu no
quero me envolver com essas coisas de subverso.V
embora e Deus lhe abenoe.
Com
fome,com raiva quase sem dinheiro qualquer,mandei
meu tio enfiar sua beno
em lugar imprprio e subi a rua Arago
Gesteira com gosto de morte e horror na
boca.
E sem destino, fui chegar na esquina da
rua Ferreira Viana,entre o Flamengo e a
rua do Catete. Era um bar-restaurante, tipo
prato-feito. Pedi um copo de leite pingado
e um po com manteiga. Nem peguei
no copo:uma voz me chegou ao ouvido,fazendo
explodir um medo quase estranho:
-
Voc no Rubens Lemos?
Voltei-me
quase de mos estendidas esperando
as algemas. O sangue me chegou de novo,
quando vi diante de mim Ney Leandro de Castro.
O poeta Ney, o romancista Neil de Castro,
potiguar, como eu. E solidrio.
Fugindo
ao cerco at o encontro com Djalma
Maranho
Parte 2 - Memrias do Exlio,
por Rubens Lemos
Ney
Leandro de Castro diante de mim: E contei
tudo: da minha situao clandestina,
da minha fome e dos meus sonhos. O poeta
no vacilou. Mesmo sabendo dos riscos
que corria, me prestou toda a solidariedade
que lhe era possvel.
Os
dias correndo e as notcias chegando,
nada esperanosas. Eu, agulha no
palheiro da cidade grande, rumo incerto,
“olhando de lado” e sabendo:
voltar agora, no seria jamais “uma
forma de renascer”. Lembrando Gide:
“Ensinem-me os caminhos de ir”.
Amigos presos, amigos mortos – nos
enfrentamentos de rua ou das masmorras da
Ditadura. Cartazes em toda parte: “Procura-se”.
Muitos rostos conhecidos e eu me sentindo
um deles.
O Rio de Janeiro fervilhava de tenses:
os revolucionrios, a quem a Ditadura
chamava de terroristas, haviam seqestrado
o embaixador suo. Pediam
em troca setenta presos polticos.
O regime militar no cedia. Angstia
por toda parte e, principalmente, dentro
do meu peito. Eu andava sobre o “fio
da navalha”, mas determinado: “No
me entrego vivo. Melhor morrer matando do
que como boi indo pro matadouro”.
Era noite no Largo do Machado. De repente,
porta do Cine Paissandu, pronto
para ver um filme de Bergman e prolongar
um pouco mais a agonia, escuto um grito
inconfundvel:
-
Rubens Lemos!
Virei-me
e dei de cara com Olinto Galvo.
No temi e no tremi. Depois
de um abrao escandaloso, fomos para
um bar. A cerveja que h tempo se
afastara de mim, pois dinheiro no
tinha, apareceu franca e amiga. Como o amigo
Olinto Galvo, companheiro firme
de todas as horas em Natal. Mas eu precisava
dar notcias a duas pessoas, as nicas
que sabiam onde eu me encontrava. Tudo,
porm, era muito perigoso. Com o
seqestro do embaixador, que j
rolava h quase vinte dias, os olhos
da represso estavam em toda parte.
O cerco apertava. Dias antes, andando pela
rua Mxico, via estampada na primeira
pgina do Jornal do Brasil, a fotografia
de G, ex-lder estudantil natalense
e transformado em guerrilheiro.G,para minha
surpresa, aparecia risonho, tomando cafezinho
ao lado de alguns policiais.Dele, o jornal
publicava, tambm uma terrvel
carta: G, (cuja covardia no lhe
honra a meno do verdadeiro
nome), pedia perdo ao ditador de
planto e se declarava pateticamente
arrependido.Simultaneamente, novas prises
ocorriam em Natal. O torniquete apertava
ainda mais. Entendi que era hora de sair
do pas.
Coloquei a questo para Olinto e
pedi que comunicasse isso somente a duas
pessoas: Isolda e Roberto Furtado. Apesar
dos perigos, Olinto cumpriu literalmente
a misso.
Erivan me d o alerta: perigo!
Os planos estavam traados para deixar
o Rio, mas faltava dinheiro. Erivan Frana,
mais uma vez no faltou. Marcamos
encontro na rua das Marrecas,onde Aluzio
Alves, cassado, sobrevivia com uma editora.As
duras penas,Erivan me informava:”
Sua situao no
boa. Seu nome est includo
entre os perigosos”.
E me arranjou dinheiro, que no era
muito, mas era o que podia dar.
Cheguei, finalmente, a So Paulo.
Da rodoviria fui direto
Estao da Luz e tomei um
trem para Mau, onde morava um primo.
A lembrana do que me fizera Tio
Chico, no Rio, me deixava inquieto. Mas
resolvi tentar. O trem vomitando de ageiros
aqui e ali. Tia Nenm, me
de Gilvan, irm de minha me
estava atrs do balco de
sua pequena quitanda na Vila Brasil. Tia
Nenm e “Seu” Joo,
o marido, haviam sido operrios de
uma grande indstria em So
Paulo. Fui chegando e fui contando tudo
de novo. A velha operria no
titubeou:
- Pode ficar o tempo que quiser.
E me fez a espantosa revelao:
Gilvan, meu primo, estava tambm
sendo procurado. Dezenove operrios
haviam sido presos. Um deles, Raimundo,
assassinado brutalmente sob torturas. Raimundo
morreu com 23 anos de idade. Era nordestino.
Fiquei na casa da minha tia o tempo suficiente
para localizar alguns companheiros jornalistas.
No poderia abusar da bela manifestao
de destemor e solidariedade proletria
de D. Nenm.
Um amigo jornalista – a quem chamarei
aqui de Fabiano -, com quem trabalhei no
“Dirio de Natal”, conseguiu
me colocar em lugar seguro: uma pequena
penso na Alameda Santos, onde fiquei
por quase duas semanas.Fabiano, ajudado
por outros, armou todo o esquema de minha
sada:destino, Uruguai. Para onde
fui fantasiado de torcedor do Palmeiras,
que decidiria a Taa Libertadores
da Amrica com Nacional de Montevidu.
Logo eu, corintiano...
E assim atravessei a fronteira. O Brasil
ficava para trs. Natal era um mundo
de saudade.
O frio cortava quando o nibus parou
em frente ao hotel. J era noite.
No meu bolso, a agem de volta que no
poderia mais usar. Nos ombros, nenhum cansao.
No peito, toda a esperana. Um copo,
dois, trs de vinho. Outro, mais outro.
E fui deitar fugitivo e bbado. Afinal
de contas, a realidade era dura. Dia seguinte,
eu tinha que deixar o hotel pra no
voltar.
Dia seguinte. Expectativa. O jornalista
potiguar precisava localizar algum.
Esse algum era Djalma Maranho
a quem eu era recomendado por ningum.
Minha nica senha era ser do Rio
Grande do Norte. Mas eu sabia onde achar
o ex-prefeito de Natal.
ME
D NOTCIAS DA REDINHA...
Era
amplo o “caf”, com mesas
na calada. Ficava numa praa
central de Montevidu. L
estava ele: Djalma Maranho, de quem
me aproximei e fui dizendo:
-
Prefeito Djalma Maranho,meu nome
Rubens Lemos, sou jornalista e
rio-grandense do norte. Sou amigo de Roberto
Furtado e estou procurando asilo. O senhor
pode me ajudar?
Djalma
Maranho foi trado pelo brilho
dos olhos. Uma centelha de alegria, um claro
de tristeza, foi o que vi. Mas ouvi daquele
homem – quem nem documentos que provassem
a minha identidade pedira -, uma pergunta
surpreendente:
-
Me d notcias da Redinha,
de Natal, de todo mundo.
Fiz
o que pude, pois eu tambm queria
notcias de Natal, de todo mundo.
A diferena que minha saudade
era mais recente. A de Djalma era como se
fora um sculo. Contei minha histria.
Logo depois, chegava Amauri Silva, ex-ministro
do Trabalho de Joo Goulart. J
nos conhecamos de Londrina, onde
ele fora vereador. O ex-deputado Neiva Moreira
tambm apareceu. E como ele outros
exilados.
Na verdade, Djalma Maranho queria
ficar a ss comigo. Era um conterrneo
que chegava, era um pedao de Natal,
um naco de carne de sol, uma mochila de
feijo verde, um litro de gua
do mar da Redinha. E disso que
Djalma precisava naquela cidade fria e cinzenta
de Montevidu. O ex-prefeito me levou
com ele at uma pequena casa de cmbio,
onde defendia alguns trocados “para
ajudar no aluguel”. Tambm
fazia distribuio de jornais,
como forma de auxiliar nas despesas. Ou
seja: eram grandes as dificuldades econmicas
por que ava o implantador do revolucionrio
mtodo “De p no cho
tambm se aprende a ler”.
Durante o almoo, a conversa foi
longa. Djalma Maranho falava e falava.
Dizia das memrias que estava escrevendo,
mas no perdia a f:
-
Eu vou voltar. No agento mais
de saudade daquele povo bom da minha cidade
e do meu estado. Um dia – e ser
– logo, essa Ditadura acaba. A
eu vou voltar, tirar o atraso... E vou voltar
poltica com toda fora
possvel. Eu sei que o povo de Natal
no esqueceu.
Falando, ouvindo,falando, eu senti que estava
diante de um ser humano corrodo
pela nostalgia. Um ser humano de estatura
moral inigualvel. Sofrido, mas valente.
Machucado, mas combatente. Triste, mas esperanoso.
Sem tosto, mas rico de solidariedade.
E foi assim que agiu comigo.
Outras conversas ocorreram e outras revelaes
foram feitas, at que Djalma Maranho
me levasse at o cais, de onde segui
para Santiago do Chile, levando comigo o
respeito por aquele homem e outras revelaes
feitas por ele. E que ainda vou contar.
Jango
me disse: “Os militares no
entregam o poder to cedo”
Parte 3 - Memrias do Exlio,
por Rubens Lemos
Antes
de subir a escada do pequeno navio que me
levaria a Buenos Aires, recebi um longo
e afetuoso abrao de Djalma Maranho.
Ex-prefeito de Natal cuidara de tudo. At
das questes de segurana,
buscando alertar-me:
-
Cuidado. Esse um navio de turistas
classe mdia baixa. Evite fotografias,
pois deve ter muito policial brasileiro
“fantasiado” de fotgrafo.
Dentro da pequena maleta de viagem, um Jornal
do Brasil.Perdido entre as pginas,
um endereo, um nome e uma apresentao
que Djalma, de prprio punho, me
fazia a um seu amigo comum, ex-deputado
federal e exilado no Chile. Nunca mais vi
Djalma Maranho, contudo guardei
todos os gestos solidrios que ele
me ofertou. Como guardei o aceno de mo
daquele homem nostlgico, mas determinado
em voltar ao seu povo, sua terra,
sua gente. E nunca mais esqueci
aquele 16 de maro de 1971.
Durante a viagem no conseguia tirar
Djalma Maranho da cabea.
O homem que me fez conhecer Joo
Goulart, o presidente deposto. Foi numa
noite muito friorenta. O local era uma espcie
de restaurante, muito mais uma churrascaria,
dirigido por exilados brasileiros: ex-deputados,
ex-senadores,ex-ministros. Uma espcie
de sociedade pouco annima, patrocinada
pelo ex- presidente, como forma de ajudar
brasileiros perseguidos pela ditadura. O
presidente Goulart me pareceu uma pessoa
simples.Nele no havia qualquer trao
de arrogncia. No vendia a
imagem de lder ou coisa do estilo.Era
o que era no momento:um exilado. Um homem
que fora deposto por um violento golpe militar.
Djalma lhe contou rapidamente a minha histria
e Joo Goulart me deu 3 mil escudos,
moeda chilena e da qual iria necessitar.
Antes de sair, Joo Belchior Marques
Goulart fez uma previso:
-
Maranho (Djalma) tem pressa em voltar,
mas eu acho que os militares no
entregam o poder to cedo. No
o que eu quero, mas o
que eu penso.
Joo
Goulart tinha razo: a ditadura durou
mais de vinte anos.Nem ele, nem Djalma Maranho
puderam ver de novo o Brasil. Os dois morreram
no exlio. Em julho de 1971, eu estava
em Santiago do Chile, quando vim a saber
da morte do ex-prefeito de Natal. Morreu
triste e estava s. Seu corpo foi
encontrado no pequeno apartamento em que
morava, pelo advogado e tambm exilado
Carlos Frederico Mars, a quem conheci
no Chile.
O
navio apitou. Estava chegando a Buenos Aires,
onde ningum me esperava, a no
a ser a incerteza e o nibus que me
poderia fazer chegar at Mendoza,
na fronteira com o Chile.
“SEU FILHO DIFICILMENTE ESCAPA”
Dia
20 de maro de 1971. Desci do trem,
trazendo no bolso a “visa de turista”,
e nos olhos a imagem grandiosa da Cordilheira
dos Andes, branca e dominadora. Santiago
acabava de receber mais um brasileiro que,
ao lado de milhares, buscava abrigo em terras
chilenas, onde as ruas eram avenidas inteiras
de liberdade. Nunca uma mera palavra escrita
a carvo como nos muros do meu pas,segundo
o poema de Thiago de Melo. Na manh
seguinte, uma manh de muito frio,
chegava ao apartamento do amigo de Djalma
Maranho. Ele morava bem pertinho
do Estdio Nacional, que, tempos
depois seria transformado me matadouro humano
por ordens do General Pinochet. Foi ali
que morreu, mos decepadas e um tiro
de misericrdia na cabea,
o jovem Victor Jara, aquele que cantava
as alegrias e as lutas do povo chileno.
Atravs do MAPU (Movimento de Accin
Popular Unitria), fui contratado
como professor (instructor) de jornalismo
da Consejeria Del Desarrollo Social, um
organismo nacional diretamente ligado ao
presidente Salvador Allende. Uma experincia
importante, atravs da qual tcnicos,
especialistas em reas bsicas
da cultura, sade e educao
populares cobriam todo o Chile,procurando
tornar realidade, sem verticalismos, a participao
popular cobriam todo o Chile, procurando,
a participao popular no
programa socialista do Governo Allende.
Um verdadeiro laboratrio experimental,
onde aprendi mais do que ensinei. A coisa,
porm, durou pouco.Presses
externas terminaram fazendo Allende capitular
, botando para fora do projeto, que se chamava
“Operao Salvamontes”,
todos os estrangeiros. E l fiquei
desempregado.
Minha mulher j estava com data marcada
(5 de setembro de 1971) para chegar a Santiago,
trazendo no colo nosso filho (Rubinho).
No dava mais tempo avisar que,alm
de exilado, eu era o mais novo desempregado
do Chile. Isolda chegou e fomos morar numa
casinha simples, numa vila distante da capital.
Ficava no Paradero 36, perto de San Bernardo.
O nome da vila: “El esfuerzo”.
E as coisas foram se complicando. Sem dinheiro,
sem trabalho e uma gravidez inesperada:
a hoje moa bonita Yasmine chegava
sem pedir licena. Grvida
de seis meses , Isolda enfrentava o exlio
com ocragem,mas dominada por uma tristeza
que saltava aos olhos. At que Rubinho
adoeceu gravemente.Postos de sade,
hospitais, nenhuma soluo.
Meu filho definhava e nem mais podia falar
seu portunhol : “Yo quiero caf
caliente quente”. Otto, mdico
pediatra, exilado tambm.,sem recursos
quaisquer, deu assistncia total.
Tarde da noite, ele me chama de lado e diz:
-
Infelizmente, companheiro, seu filho dificilmente
escapa. Ele j est em estado
de inconscincia. Mas vamos lutar
at o fim.
No
tive coragem de dizer nada a Isolda.Pude
apenas ir at o muro da pequena casa
proletria, onde me debrucei e chorei.
Chorei muito.
ALLENDE
ACREDITAVA NO “GRANDE” GENERAL
AUGUSTO PINOCHET
Allende
ganhava, de maneira expressiva, as eleies
parlamentares. A esquerda, organizada em
partidos como o Socialista(de Altamirando),
o PC, MAPU,Izquierda Criztiana e outros
que formavam a Unidad Popular, ava a
ter maioria no Congresso. A direita, representada
no poder Judicirio e nas Foras
Armadas, alm de partidos conservadores
como PN, tendo como linha auxiliar o cinismo
e o oportunismo do Partido Democrata Cristo,
de Eduardo Frey, aram a tramar, atravs
da desestabilizao do regime,o
golpe militar que eclodiria no dia 11 de
setembro de 1973. Frey era o “homem
financiado pela CIA”, liderando movimentos
de boicote econmico, de isolamento
quase total do Governo Allende. O povo:
estudantes, operrios, camponeses,
mineiros, profissionais liberais, estavam
nas ruas, combatendo duramente as vacilaes
da Unidad Popular, sob hegemonia do Partido
Comunista Chileno que fazia, s escondidas,
acordos com a DC. A direita, com seu brao
armado fantico – Ptria
y Libertad – provocava enfrentamentos
dirios que eram respondidos valentemente
pelo MIR (Movimento de Izquerda Revolucionria)
e pelos setores mais avanados do
Partido Socialista, MAPU e Izquerda Cristiana.
Uma tarde-noite,mais de 600 mil pessoas
se dirigiram ao Palcio de La Moneda
e pedira, exigiram “mano dura’
ao presidente Allende. Ele pediu calma,
pois garantia que “as Foras
Armadas” , sob comando do “grande
General”, no fugiram s
suas “tradies democrticas”.Allende
afirmava: “ Os fascistas no
aro”. Mas eles aram
e transformaram o Chile num rio de sangue.
Era um filme que eu j havia assistido
no Brasil,em 1964. A, voltei a me
lembrar de Djalma Maranho e do ex-presidente
Joo Goulart.
O golpe estava nas ruas. A minha mulher
Isolda, meu filho e a filha que ela trazia
no ventre, no poderiam mais ficar.Ajudado
por companheiros exilados, consegui o dinheiro
suficiente para a agem de volta. Eu
ficaria, pois voltar era impossvel.
Sozinho eu saberia enfrentar todos os desafios,at
o da morte. Brasileiros eram praticamente
caados pela direita no Chile. Um
deles, Milton da Silva, um jovem de 21 anos
de idade, foi assassinado friamente pelos
franco-atiradores do “Ptria
y Liberdad”: dois tiros na cabea.
Foi dura, terrvel mesmo a despedida.
Policiais brasileiros infestavam o aeroporto
de Santiago. Isolda e Rubinho subiram na
escada do avio. Longa espera e a
notcia dolorosa:minha mulher, grvida
e com um filho no colo, chegando ao Rio,
fora arrancada de dentro do avio.
Presa pelo nico crime de ser mulher
de Rubens Lemos.
Mais uma vez Erivan Frana.Cassado,injuriado,
conseguiu localizar minha mulher e meu filho.
Foram postos em liberdade, depois de muito
sacrifcio. L de longe ,
ao p da fria e gigantesca Cordilheira,
eu gritava a minha revolta. Sem nenhuma
resposta. Foi uma noite de pesado e amargo
silncio.
Trs
dias e trs noites de perigo na Cordilheira
Sem Texto
Parte 4 - Memrias do Exlio,
por Rubens Lemos
Na
Polcia Federal:ali comea
a “Operao-Terror”
Parte 5 - Memrias do Exlio,
por Rubens Lemos
Depois
de me conseguir um colcho velho
e nenhum lenol, o diretor da Colnia
Penal me garantiu que Isolda(minha mulher)estava
bem.Ela fora trancafiada numa cela, que
era tambm enfermaria. O coronel
Juvenal Andrelino, diga-se, no me
dirigiu uma palavra agressiva,no
me fez qualquer tipo de ameaa. No
silncio da noite, a realidade ia
se tornando muito clara (e dura) para mim:
aquilo tudo era o incio, apenas
o incio. O comeo de uma
longa e penosa caminhada. Em nenhum momento
acreditei naquele tratamento to
calmo que a Colnia Penal me dispensava.
Eu sabia que o pior estava a caminho. E
precisamente fazer chegar, imediatamente,
para fora dos muros, a notcia da
nossa priso. Principalmente a de
Isolda.O pensamento vagueava, pesado,tenso,
quando vi duas mos surgirem por
entre as grades da janela. Um rosto apareceu
e uma voz quase sussurrada me falou:”
Rubens Lemos, conte a gente. Aguarde que,
ainda hoje, vai aparecer algum de
confiana para levar recado
sua famlia. “ A voz era de
Rinaldo, tambm preso poltico.
No demorou muito, um soldado surgiu
na penumbra do corredor: “Gostaria
de ajudar. Conheo voc da
Rdio Poty”. Era, mais uma
vez, a solidariedade chegando. Em plena
noite, na dura solido de uma penitenciria.
E reafirmei minha confiana no ser
humano. Apesar da delao
de que fora vtima.
Mas
o sono no veio.Pensava em Isolda,
pensava em Yasmine, a filha que me fizera
atravessar a Cordilheira dos Andes para
conhec-la. Pensava no delator que
no pensou em nada disso na hora
de entregar represso dois
seres humanos, que nada de mal lhe fizeram.
Que cometeram, apenas o pecado da confiana.
O dia amanheceu, outra noite chegou, outro
dia amanheceu.Era o 7 de setembro. As tropas
desfilavam nas ruas engalanadas e as criancinhas
de minha cidade agitavam bandeirolas verde-amarelas.
Pelo rdio de uma cela prxima
ouvia emocionados e patriticos discursos,
falando de paz,amor, segurana da
famlia e, principalmente , Democracia.
Pesou no meu peito uma certa sensao
de desencanto e me lembrava da minha me
evanglica, lendo trechos bblicos
para o seu filho caula.Entre eles,um,que
fala de hipcritas e fariseus.
Numa
manh, depois de oito dias em completo
isolamento tiraram-me da cela. Fui levado
at o Corpo da Guarda. E avistei
Isolda: abatida,magra,olhos de desespero
e dor.Foi um abrao longo e um beijo
trgico. Agentes da Polcia
Federal nos esperavam com algemas.Eu s
pude dizer minha mulher: “No
perca a calma. Voc vai sair dessa”.
Pouco depois entrvamos na Nilo Peanha,
onde permanecemos toda uma manh
algemados presos uma cadeira. “
A Operao –Terror estava
comeando.
“RUBENS, PELO AMOR DE DEUS
ASSINE!”
Os
agentes se revezavam, fazendo perguntas
capciosas. Um deles,moreno, meia-idade,
alto ,magro,elegante, de nome Almeida, comandava.Fala
mansa, elegante, fez a proposta:
-
Voc assina uma declarao,
renegando tudo e tudo fica resolvido.Voc
e sua mulher saem daqui,agora mesmo, para
casa. Vo poder abraar seus
filhos.
Eu
lembro muito bem o que respondi.
-
Eu no assino nada. Os senhores j
me prenderam e a vocs que
cabe provar se sou culpado de alguma coisa.
Eles
queriam me transformar em mais um arrependido.
Em um novo G; o prottipo do dedo-duro.
Eles queriam me transformar em rebotalho.Isolda
me olhava com olhos de dor e angstia.
O comissrio Almeida insistia, voltando-se,
agora, mais para minha mulher.
-
Est vendo? A senhora est
aqui por causa dele. A senhora est
entregando prola aos porcos. Ele
quer nos obrigar ao que nos no queremos,
ou seja, trazer aqui o seu filho Bimbo (Rubinho).
A senhora quer isso?
Isolda
entrou em pnico e, num apelo, que
era muito mais que um apelo desesperado,
chorando muito, me disse quase implorando:
-
Rubens, pelo amor de Deus assine!
Foi
um momento duro. Terrvel. Eu que
amava a todos, eu que cortara os ps,
enfrentando perigos, apesar de todos os
meus medos,para chegar a ela e aos meus
filhos, surgia diante dela como um ser despido
de qualquer sentimento.Os policiais conseguiam
fazer, com perfeio, o jogo
sujo. Com o corao pesado,mas
com a certeza mais firme, virei-me para
Isolda.
-
Eles esto lhe jogando contra mim.
Eles querem me degradar,mas eu no
me degradarei. No assino nenhum
“arrependimento”. Eu quero um
dia poder continuar olhando dentro dos olhos
dos meus filhos.
Levaram
Isolda para um sala no andar superior. Fiquei
l embaixo. Sem ter o direito de
chorar. No podia, no devia,
revelar fraqueza. Isso o que eles
queriam. tarde, chegou minha vez.
Entrei numa sala, onde estavam rostos conhecidos,
uns, desconhecidos outros. O major Alcntara
comandava interrogatrio. Capito
Galvo, da DOPS, o delegado da PF,
Franklin, participavam. O major abriu uma
pasta: ali estava “minha vida”,
foi o que pensei. O interrogatrio
durou muito tempo. At cartas que
, do Chile, eu mandara para Isolda, estavam
ali, fotocopiadas. Mostraram –me uma
fotografia minha ampliada: eu, barbudo,
cabelos grandes, usando uma pesada roupa
de frio. A foto fora tirada em Santiago
, na Plaza Bequedano. No havia dvida.
A Ditadura brasileira tinha seus tentculos,
seus esbirros espalhados por toda parte.
“PREPARE-SE
PARA APANHAR MUITO”
Nessa
mesma noite, minha mulher foi posta em liberdade.
Guardado por agentes fortemente armados,
fui levado de volta para a Colnia
Penal. Os dias e as noites avam lentamente.
Nenhuma visita, notcias raras trazidas
atravs de pessoas l mesmo
do presdio. Nem ameaas havia.
Era como uma cano de Bethnia,
a sensao de “um grito
solto no ar”. At que um dia,
o sol comeando a nascer, o carcereiro
me acordou:
-
Apanhe suas coisas, voc vai embora.
Ao
atravessar a longa galeria, um velho avisou:
“Prepare-se para o pior”. Eu
sabia disso. Desde o primeiro dia. De novo,
os agentes da Polcia Federal, algemas.
Deixaram-me vrias vezes algemado,
em posio bastante incmoda.
Novamente caras conhecidas avam por
mim. Uns, faziam que no me viam.
Outros, ainda arriscavam uma tmida
saudao. E vi, ali , caras
que ningum desconfiava fossem agentes.
Que se infiltravam nos bares,nas assemblias
estudantis,nos debates culturais. At
que botaram culos de borracha. Deitaram-me
numa “Veraneio”. Antes, porm,
pude v-los. Entre eles, estava o
“Doutor Anbal”, com
seu sotaque carioca e que viria a se transformar
num dos mais frios e sdicos torturadores
dos tantos que enfrentei. O carro rodava
e rodava. Uma parada. Algum mais
era colocado no veculo. E fomos
os dois para aquilo que se chamava de “Circo
de Horrores” da Ditadura. Ao longo
do percurso, aproveitando o barulho do carro,
me identifiquei para o outro preso. Ele
tambm. Era um ex-companheiro de
rdio aqui, em Natal.E que sofreu
muito tambm.
Viajamos durante cerca de quatro horas.
O culos de borracha queimava meus
olhos. As algemas apertavam, cortando meus
pulsos. E a Veraneio parou. Fomos tirados.
Meu corpo era um dor s. Aos empurres
e pancadas fui levado para uma cela estreita
e imunda. No tinha a menor noo
de onde estava. O carcereiro, de nome (ou
codinome?) Valdeck, chegou.
-
Tire a roupa. Prepare-se para apanhar muito.
Um grito lancinante penetrou cela
dentro. Meu corpo cansado sobressaltou-se.
Os msculos ficaram tensos, retesados.
Mais gritos. Depois, puro silncio.
A, comecei a compreender o que era
o rudo do silncio. Comecei
a perceber a necessidade de estar com a
cabea no lugar, de nunca perder
a lucidez. Isto seria a minha nica
condio de resistir aos horrores
que no tardariam a chegar.
Trs homens abriram a cela. Pam-me
um capuz e amarraram meus pulsos com cordas
de nilon. E uma voz falou: “Vamos,
filho da puta, sua hora chegou!”.
Ele
vai ver que aqui no adianta ser
macho?
Parte 6 - Memrias do Exlio,
por Rubens Lemos
Fui
levado atravs do que me parecia
um longo estreito corredor. Uma porta se
abre. Empurrara-me com toda violncia
possvel. As mos atadas,
capuz sobre o rosto. Escurido total,
um breu s. A porta se fechou. E
ali fiquei. O silncio era total e,
acreditem, doa. Os minutos avam
lentos. Nada acontecia. Eu, em p.
O corao batendo forte, como
um tamborim em carnaval de fim trgico.
Descomo. Minha cabea era caleidoscpio.
Tudo e todos avam. Vi-me menino nas
ruas de Currais Novos. Avistei caras de
velhos companheiros de correrias e brincadeiras
nas ruas ensolaradas de Mossor.
At o burro "Ch Preto",
l de Pixor, aparecia calmo
e pachorrento. Nenhum rudo. Uma
vontade de gritar, um desejo naturalmente
tolo. Vejo-me, de novo, em Nova Dimenso.
O violo de Roberto Maranho,
a voz:
Esta
saudade,
to cruel que alucina(...)
Quero que voltes
como a primavera(...)
Roberto
Maranho, Magnlia, Renato,
Andra, amigos que nunca fugiram
ao difcil e grande gesto de solidariedade.
A msica me arrancava, por instantes,
do terror em que me encontrava. At
que um grito estourou na escurido:
-
Seu nome, corno!
O corao bateu mais forte.
E a resposta veio mecanicamente:
-
Rubens, Rubens Manoel Lemos
-
Est querendo brincar, subversivo
de araque! Eu quero o sue nome de guerra,
o nome da Organizao, tudo,
tudinho, entendeu?
-
No tenho nome de guerra.
Uma
pancada violenta em atingiu a cabea.
Ca. De repente , chutes. Algum
pulou sobre minha barriga. Vomitei. Pam-me
novamente em p. A voz sdica
do doutor Anbal:
-
Vamos fazer uma ligao direta
nesse sacana. A, ele vai ver que
no adianta ser macho.
Amarraram-me
a uma cadeira. Um fio foi amarrado no dedo
do p. E uma maquininha comeou
a funcionar. O choque eltrico. Era
como formigas raivosas me penetrando. Depois,
como labaredas queimando a alma. Gritei
muito. A mquina parou. Os doutores
da lei riam. Sem esperar, duas mos
explodiram contra os meus ouvidos.Um golpe
terrvel que me fez perder a noo
das coisas. Em seguida, um soco fulminante
no estmago. Desmaiei. Acordei pendurado
tal qual um porco. Os ps sustentados
em duas latas de leo, que cortavam.
As latas no avam o peso, caam,
e eu ficava apenas com a ponta dos dedos
roando o cho. Senti o cheiro
da morte. Foi toda uma noite de tortura.
Companheiro eu vou me suicidar
Nove
dias sem receber qualquer comida. Os trs
primeiros, sem tomar um copo de gua.
nica alimentao:
torturas de toda espcie. Choques,
pancadas, afogamento, roleta russa eram
a diverso dos torturadores. E eu
sem saber onde estava. O que estaria acontecendo
l fora? S uma coisa me sustentava:
eu no podia ser indigno. No
poderia revelar nomes e fatos. Era isso
o que eles queriam. aram a me chamar
de Chileno, eles os torturadores.
Trinta e trs dias depois, corpo massacrado,
jogam dentro da cela um outro preso poltico.
Carlcio, um operrio, trazia
as costas banhadas de sangue. Apanhara muito.Eu,havia
chegado de mais uma sesso de tortura.
Ele contou sua histria e ,quase
em desespero, falou:
-
Companheiro, eu vou me suicidar.
Gritos,
gemidos, choro de torturados enchiam todos
os espaos daquele Circo de Horrores.
Sem muitas foras, voz cansada, falei:
-
No faa isso. isso
o que eles querem. Ser sua derrota
e a vitria deles.
Um
relgio bateu ao longe. As badaladas
eram ntidas e pungentes. Foi Carlcio
quem me disse:
-
Voc est em Recife. Isto aqui
o DOI-CODI. Esta casa
que servia aos generais comandantes do IV
Exrcito. O relgio que voc
est ouvindo o da Faculdade
de Direito do Recife.
As
pernas doam muito. Estavam inchadas.
Trinta e trs dias sem ver a luz do
sol, sem tomar banho. As necessidades eram
feitas numa garrafa plstica partida
ao meio. O carcereiro Teles, com o seu sadismo
de sempre chegou:
-
Chileno, vamos ali. Voc, hoje, vai
conversar com uma pessoa muito importante.
a maior autoridade em subverso da
Amrica Latina.
Outra
vez o capuz, algemas e pancadas. A voz com
sotaque paulistano. O tom direto e cruel.
Eu estava diante do Delegado Fleury, que
veio de So Paulo para me interrogar.
E, antes de qualquer pergunta,me deferiu
um violento soco no estmago. Ca,
como um saco vazio.
Fleury queria saber dos exilados. Quem era
quem. Onde est Bruno Maranho?
E o Sargento Prestes? Eu sei que voc
morou na casa de Geraldo Vandr.
- Ou voc conta tudo ou no
sai vivo daqui.
A
minha resposta foi a mesma:
-
Desconheo tudo isso.
Uma
voz conhecida apareceu na escurido
do meu capuz. Era a voz do Major Alcntara
,aquele que comandava os interrogatrios
em Natal. Outra voz falou:
-
Esse imbecil t pedindo pra morrer!
VOC NO VAI MORRER
Fui tirado da cela. Diante de mim, o doutor
Fernando?, com uma bblia na mo.
Perguntou se eu acreditava em Deus. Respondi
que minha formao religiosa
era evanglica. Ele falou:
-
Ento voc compreende que a
prpria bblia justifica a
violncia. Cristo expulsou os vendilhes
do templo chibatadas. Pedro cortou
a orelha de um centurio. Voc
est aqui para purgar seus pecados.
O martrio necessrio
para resgatar e purificar almas.
Eu
arrisquei a perguntar:
-
O senhor considera, ento, a tortura
como um ato de f religiosa e crist?
O
doutor Fernando chamou o carcereiro Leite
e ordenou:
-
Leve esse canalha. Eu mesmo quero mostrar
a ele o que a bblia.
Fui
torturado por horas seguidas. E a pior tortura
ocorreu quando pam diante de mim um
velho chamado Holanda, de Recife. Ele tinha
o peito queimado por isqueiro. Um olho estava
quase fora de rbita. Como se tivesse
acontecido uma briga mortal entre dos galos.
O velho Holanda me olhou, altaneiro:
-
Irmo, eu sei que vou morrer, mas
a ele no digo nada!
Diante
dos torturadores eu disse:
-
No velho. Voc no
vai morrer. Mesmo que eles lhe matem.
Explodiu
dentro de mim uma revolta enorme e, buscando
coragem, no sei aonde, comecei a
cantar:
Angstia,
solido, um triste adeus em cada
mo, l vai meu bloco, vai
s desse jeito que ele sai(...)
Por isso, quando eu ar,
Batam palmas pra mim
Gritos e gemidos calaram. E das imundcies
das celas, uma voz tmida comeou
a cantar tambm. Outra voz de juntou.
Outras vozes se juntaram. E os torturados
fizeram um coro maravilhoso:
Merece
uma homenagem quem tem foras pra
cantar,
To grande minha dor,
Pede agem quando sai.
Por isso s, l vai meu bloco,
vai...
E
todos os prisioneiros polticos do
DOI-CODI assumiram a msica como
uma das formas de resistncia. Apesar
das ameaas do doutor Fernando, coronel
poca, cujo verdadeiro nome
Crcio Neto. Que torturava
presos, lia a bblia e, depois ia,
possivelmente, fazer amor com as mulheres.
“Minha
morte havia sido decretada, mas fui salvo
pelo gongo”
Parte 7 - Memrias do Exlio,
por Rubens Lemos (Final)
Foram
exatamente 60 dias no DOI-CODI, Recife.Quarenta
e quatro dos quais de quase ininterruptas
torturas. Dias de terror e solido.
Corpo dilacerado. Misturando medo e coragem,lgrimas
escondidas por trs do capuz. Vendo
seres humanos sofrendo iguais e piores horrores.
Assistindo o desfile diuturno de pessoas
em desespero e o orgasmo sdico de
homens que representavam “a defesa
da Lei e da Ordem”. Homens que permitiam
que seus rostos fossem vistos. Os centuries
da Ditadura.
Esses
“doutores”, sob o comando do
ento coronel Crcio Neto,
espancaram jovens e velhos, violentaram
mulheres, mataram brasileiros.Assam
ali mesmo, no DOI-CODI, na mesma casa que
antes era usada pelos generais que comandaram
o IV Exrcito, jovens como Emmanuel
Bezerra,norte-rio-grandense e ex-presidente
da casa do estudante.Emmanuel foi morto
com um tiro de misericrdia, depois
de cortado a tesoura por esses ensandecidos
guardies da “Democracia”.Mas,
poca, os jornais publicavam
de forma diferente. Diziam que Emmanuel
morrera em So Paulo, depois de resistir
e trocar tiros com as foras repressoras
do Regime Militar.
Da
mesma forma, o lder estudantil Mata
Machado,a quem vi massacrando ensanguentado
e digno.Vestindo cueca vermelha, j
quase sem poder falar, olhou para mim e
falou:
- Companheiro.Sou Mata Machado, dirigente
da AP(Ao Popular). Eles
vo me matar.Se voc puder,
avise aos outros que fiquem firmes, pois
eu no falei, no abri nada.
E MATARAM MATA MACHADO
Sessenta dias, depois trouxeram minha roupa,
as sandlias e o relgio.
Novamente o capuz e as algemas.Fui levado
ao que parecia uma garagem, pois era grande
o barulho de carros.Depois de muito tempo,
uma voz falou rpido e baixinho:
- Fique tranqilo. Voc vai ser
levado de volta para Natal.
Nunca mais ouvi aquela voz, a nica
- no meio de tanto desprezo pelo ser humano
– que me trouxe de volta um fio de
esperana, pois eu estava, tambm,
marcado para morrer. Vim saber disso tempos
depois: algum, at hoje no
identificado, fizera chegar a Roberto Furtado
um bilhete dizendo: “Seu amigo foi
salvo pelo gongo.” Na verdade, o CENIMAR
j determinara minha execuo.
E
voltei para Colnia Penal “Joo
Chaves”, onde cheguei por volta da
meia-noite.Os ps, a muito custo,
sustentavam meu corpo estropiado.
JAILSON, “O BANDIDO”,
ME SALVOU A VIDA
Para surpresa minha, quem me recebeu
porta da penitenciria foi o Tenente
Adel, aquele mesmo que conhecera, nos anos
60, como ator do Teatro de Amadores de Natal
e, depois, incorporado ao Grupo Jesiel Figueiredo.
Adel me entregou ao Corpo da Guarda, de
onde fui levado para uma cela de isolamento,
chamada ironicamente de “lua”.
Um velho e sujo colcho, um espao
estreito e um corpo quebrado.As calas
no sustentavam no corpo esqulido.
Dia seguinte a visita do mdico.
De forma profissional e correta me examinava.Era
Berilo de Castro , irmo de Ney Leandro
de Castro. O Berilo de grandes jogadas como
centro-mdio do Amrica e
do Alecrim.E sobre quem tantos comentrios
eu fizera quando nos microfones da Rdio
Poty.
Os
dias iam ando pesados. Nenhuma visita.Tudo
era proibido. At que semanas depois,fui
levado sala do diretor.
minha frente, Ivan Tavares, meu cunhado,
escolhido para comprovar que eu estava vivo.Ele
no conseguiu dizer uma palavra.
Percebi que o choro estava entalado em sua
garganta.”Tudo bem,tudo bem”
eu disse.Logo depois,apareceu Isolda, minha
mulher, num vestido amarelo bonito, como
ela prpria, ou como girassis
viosos.
Levaram-me
de volta “lua”. Visitas
s vieram a ocorrer muito depois
.E dessa “lua” vi coisas dolorosas,
senti a violncia do crcere.Presos
comuns torturados, mortes ocorriam no presdio.E,uma
noite, noite alta, acordei com uma gritaria
enorme.A porta da minha estreita cela era
aberta.no havia luz Mais ou menos
onze presos comuns, considerados de alta
periculosidade, aparentemente embriagados,
foram postos (ou espremidos) dentro da cela
Pressenti o perigo.Gritavam e brigavam.Entre
eles, estavam “Mudinho”,”Pener
o P” e “Negro Anchieta”.Algum
falou :
- Vamos logo fazer o servio nesse
baro...
Levantei e s pude dizer coisas pouco
convincentes. Mas, minha voz valeu porque
outra voz surgiu perguntando:
- Rubens Lemos quem est
falando?
A voz era de Jailson Fortunato de Lima,
que conheci criana,filho de gente
querida dos tempos de Rdio Poty.
E, das sombras da lua, Jailson disse:
- Nesse a, pessoal, ningum
vai tocar.Rubens Lemos gente de
f. Quem tocar nele, vai se entender
comigo.
O silncio foi completo.Minutos depois,
a porta da cela foi aberta e eles foram
embora. Antes, porm, Jailson Fortunato
de Lima me abraou e garantiu: “O
servio foi encomendado. Mas, daqui
pra frente durma tranqilo”.
E nunca mais esqueci aquele gesto de algum
que era considerado bandido, mas, que, na
verdade, me salvara a vida.
Outras
coisas aconteceram na priso.A priso
que conheci “Joca de Cininha”,
Edmar Nunes Leito, o “Antnio
Letreiro”, matadores profissionais,
como conheci marginais de todos os tipos.Homens
que foram transformados em feras, em animais,
por uma sociedade injusta, desumana, embora
“crist e temente a Deus”.
Fiquei
mais de seis meses em “liberdade”.
Uma liberdade que me impedia de trabalhar,
de sair de Natal, de rever os filhos de
uma anterior unio, quando ainda
tinha 19 anos. Lcia que me fez av
aos 37 anos de idade.Marcos Wilson, que
entrou num seminrio do interior
de So Paulo.Fbio Csar,
que hoje, aos 21 anos, universitrio
e lder sindical em Londrina.Esses,
os meus filhos de uma relao
fracassada e que, s muito tempo
depois, consegui resgat-los: como
filhos e como pai.
Enquanto
no saa o julgamento na Auditoria
Militar, em Recife, sofri toda a sorte de
constrangimentos em Natal.Fui levado, seguidas
vezes, s salas de interrogatrio
da Polcia Federal e do Dops. Vi
pessoas, que no imaginava, entre
os interrogadores e que, hoje, so
figuras respeitveis e notveis
no Estado. Como vim descobrir, recentemente
em Cuiab, escondido sob o nome de
um respeitabilssimo advogado,a figura
de “Cabo Henrique”, um dos mais
frios torturadores do Brasil e que pertencia
(?) aos quadros de oficiais das Foras
Armadas Brasileiras.
APESAR DAS AMEAAS
Termino esta srie de depoimentos.Que,
lgico no esto
completos,mas representam a essncia
de todo um perodo em que fui participante.
Corajoso ou no. Busco com isso deixar
o meu testemunho.Algumas omisses
de nomes e fatos foram necessrias.
Por questo de segurana(no
minha), mas de terceiros Apesar das ameaas
recebidas por telefone, prossegui. Como
quero prosseguir encarando a vida, como
encaro meus filhos. Principalmente como
encaro meu caula Camilo, que escapou
“aos perigos daquela vida”,
vida minha, de Isolda Rubinho e Yasmine.e
a Camilo, como a todos os que lutaram
(mortos ou vivos) e que continuam lutando
pela verdadeira liberdade deste pas,
que dedico esse trabalho.
* O jornalista Rubens Lemos faleceu dia
04 de junho de 1999 aos 57 anos em Natal,
vtima de hemorragia, decorrente
de uma cirrose heptica.
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