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Militantes Reprimidos no Rio Grande do Norte
Mailde Pinto Ferreira Galvo
Livros e Publicaes

1964. Aconteceu em Abril
Mailde Pinto Galvo
Edies Clima 1994

Apresentao

O livro de Mailde um grito abafado de quase trinta anos. um grito cheio de sentidos, pedaos do sofrimento de uma mulher cujo tema principal a continuidade ou, se quiserem, o recomeo. Conduz-nos a um tempo de sofrimento, mas, tambm, de muita alegria, visto que foi o tempo da possibilidade de concretizar um sonho, o tempo de nossa juventude. A ditadura amadureceu a maioria, como se diz, o carbureto.

Num certo sentido, livrou-nos da transio via mediocridade que a “mesmice” pode acarretar. Carregamos dentro de ns um sentimento de vitria, no de derrota. A morte esteve presente, verdade. Levou amigos belssimos que poderiam estar conosco. Tudo bem. Mas a morte, em certas condies, no significa o fim. Esto conosco, e mais, esto em todas as aes e lutas da sociedade brasileira em defesa do homem. Na prxis poltica, na cultura, portanto, em todas as manifestaes sociais.

No se sabe por onde andam os outros. Aqueles que se colocavam s paredes, com medo do contgio da subverso, que fizeram as exposies do material apreendido nas escolas, nas bibliotecas pblicas e particulares, nos sindicatos. Convivem com o lodo.

Mailde, nascida no Serto do Nordeste brasileiro, regio semi-rida, onde os meninos tm toda a liberdade do mundo e as meninas esto sempre acompanhadas, nasceu do lado de c da vida. Podia ter filha de um morador, mas era filha do dono da terra. Ali, a infncia muito dolorosa. As histrias de assombrao so as cantigas de ninar. O lado gostoso so os banhos de aude, onde as meninas nuas sentem no corpo o sol e gua. Perdeu muito cedo este prazer, pois ao ser internada no Colgio das freiras, o banho de chuveiro era vestida.

O caminho das mulheres ao espao pblico quase sempre acompanhado de sofrimento, discriminao e violncia. Sair do espao privado, do seio da famlia protetora, ocupar uma funo no Estado em expanso, desempenhando “funo de homem”, pode torn-las o alvo dos vigias permanentes da moralidade social. Mais ostensiva pode tornar-se a vigilncia se esta mulher no carrega ao seu lado a sombra do marido protetor. Qualquer atitude no entendida, que possa pr em risco a salvao das aparncias ou criar um novo modelo de comportamento, assusta homens e mulheres – por motivos diferentes, claro.

O casamento, assumido muitas vezes na adolescncia, significava uma condenao “ad aeternun”. No importavam as diferenas, o desamor, o desespero que estas situaes acarretavam. O “carit” tambm podia significar uma dependncia afetiva e emocional dos parentes, quando no uma dependncia econmica. A separao do casal, portanto, expressava geralmente o abandono da mulher, deixada na casa do pai.

Aos 19 anos estava Mailde de “volta” casa do pai, com uma filha de dois anos. As tentativas de retorno aos estudos, interrompidos pelo casamento aos quinze anos, foram inteis. As escolas temiam o ingresso de uma jovem mulher descasada. Em casa ouvia rdio (todos os noticirios da Rdio Nacional) e voltou-se para os livros. Por uma feliz coincidncia, o primo e amigo de seu pai, professor Antnio Pinto de Medeiros, escritor e poeta, colocou em suas mos uma biblioteca de clssicos, responsvel por uma formao humanstica que nenhuma escola da cidade poderia dar.

Perdeu-se no caminho sem volta da inquietao intelectual; solido de mulher somou-se a solido do intelectual.

Aquela famlia do serto, parte de uma paisagem dura e apaixonante, onde os homens e mulheres carregam nos olhos secos a imagem de cacimbas esgotadas que se confunde com cips e juremas retorcidas, aprendeu a engolir e depois e respeitar e defender aquela mudana em seus hbitos. No se comentavam as mudanas. Economizavam-se as palavras. No se pode ignorar que a dureza do solo transmitiu-se ao comportamento dos homens. H muito sentimento mas poucas palavras. Por isso as palavras so to valiosas. Acreditam que sua fora est em no deixar comover. Um toque fsico ou de uma palavra pode ser fatal. Qualquer descuido pode provocar uma tempestade de sensvel ternura. Se isto ocorre esto perdidos. Essa a luta maior, o grande inimigo. Neste sentido, a vigilncia tem que ser em todos os momentos. H sempre uma possibilidade de se escapar pelo riso, claro, a grande arma para fugir das situaes limites.

A presena de Mailde foi sentada por duas geraes de intelectuais. A sua prpria, de Newton Navarro, Leonardo Bezerra, Joo Ururay, Moacyr de Ges, Zila Mamede, Geraldo Carvalho, Cla Bezerra, Nsia Bezerra, Myriam Coeli, Augusto Severo Neto, Marcelo Fernandes, Dorian Gray, Eudes Moura e posteriormente a de Sanderson Negreiros, Lus Carlos Guimares, Afonso Laurentino Ramos, Nei Leandro de Castro, Moacyr Cirne, Paulo de Tarso, Iaponi Arajo, Tom Filgueira, Leopoldo Nelson, Dailor Varela, Lcia Beltro.

No incio da dcada de sessenta, a maioria desses nomes estava no noticirio cultural e poltico da cidade, Mailde j estava disposio da Prefeitura Municipal de Natal, frente da Diretoria de Documentao e Cultura, da Secretaria de Educao, Cultura e Sade.

O Rio Grande do Norte tem uma histria bela e rica em singularidades. Foi nele o primeiro voto feminino, onde pela primeira vez uma mulher exerceu um cargo executivo frente de uma Prefeitura, a criao de uma escola para a formao de donas de casa (Escola Domstica de Natal), a criao da primeira escola de aviao civil, a primeira tentativa de um governo socialista. Por outro lado, a presena dos soldados norte-americanos na segunda guerra mundial em Natal, certamente alterou os hbitos da pequena cidade, embora aparentemente tudo parecesse no lugar.

As unidades de ensino universitrio, Faculdade de Direito, de Filosofia, de Medicina, de Odontologia e outras possibilidades a concentrao na cidade de moas e rapazes que comeavam a descobrir os problemas sociais do Brasil. Hlio Vasconcelos, Geniberto Campos, Josem Azevedo, Danilo Bessa, Maria Laly Carneiro, Diva da Salete Lucena, Jos Arruda, Francisco Ginani, Gileno Guanabara, Edsio Pereira, Lenidas Ferreira, Joo Faustino, Marcos Guerra, Nei Leandro de Castro, Berenice Freitas, Tereza Braga, Juliano Siqueira viviam com intensidade esse momento poltico. Alguns articulavam-se ao Partido Comunista Brasileiro, que tinha como seu principal formulador poltico o professor Luiz Igncio Maranho Filho. Outros, recm-sados da Juventude Universitria Catlica, assumem a luta pelo socialismo e fundam a Ao Popular. Neste contexto, a equipe da Prefeitura com o primeiro prefeito eleito de Natal - composta por profissionais que estavam ingressando na vida pblica – Ticiano Duarte, Roberto Furtado, Moacyr de Ges, Luiz Gonzaga dos Santos, Omar Pimenta, Carlos Lima, Celso da Silveira, Francisco das Chagas Oliveira, incorporava uma mulher, Mailde. Essa equipe, sob a liderana de Djalma Maranho, articulada ao movimento social urbano nacional, abre para esses jovens inmeras possibilidades de atuao.

O conceito de cultura, nos trabalhos de Moacyr de Ges, Paulo Freire, Paulo Rosas, Germano Coelho, Norma Coelho, Josina Godi, amplia-se e incorpora novos significados. Toda ao humana um ato cultural, portanto, a ao poltica tambm um ato cultural.

O homem de qualquer classe social detm um saber. Pode no ser um saber sistematizado, erudito, mas um saber adquirido no seu cotidiano de trabalho, ficando em sua pele curtida. O saber popular. A cultura popular. H uma sede de conhecimento, uma necessidade de troca de saberes.

A leitura no se limita aos textos de Marx e Lenin, a poesia vem junto. Vincius de Moraes, Joo Cabral de Melo Neto, Pablo Neruda, Drummond, Ceclia Meireles, Ledo Ivo.

Esto todos embriagados de generosidade, de disponibilidade. Cristos e comunistas, comunistas e cristos. E os independentes, no organizados em partidos polticos. Ocupam os acampamentos da campanha “De P no Cho Tambm se Aprende a Ler”, ocupam as “Praa de Cultura”, o “Teatro do Povo”, ocupam as bibliotecas da DDC, arrastam-se para as escolas e praas, levam para os palanques da Prefeitura os grupos das danas folclricas que existem na periferia da cidade, ocupam os sindicatos, onde discutem os problemas referentes s reformas necessrias extino da misria, e s reformas que possam democratizar a sociedade brasileira. Discutir com um campons a reforma agrria mas tambm ouvir dele a sua opinio sobre a participao dos estudantes nos Conselhos Universitrios.

Descobriram todos a importncia do uso da palavra, grvida de significaes. s vezes os remanescentes de “35”, como Djalma, assustavam-se com tanto atrevimento e com tantas certezas. quela altura a ao daqueles jovens era carregada de paixo. Mas que no se pense que era um piquenique. Que no se pense que no se conheciam os riscos que poderiam correr por defenderem “a terra para quem nela trabalha”. S que no acreditavam nas transformaes tambm pela via pacfica, pela educao, pela prtica da liberdade.

Houve uma grande participao de mulheres na atuao poltica, criando os comits nacionalistas. Nenen Pacheco assumia a liderana. Havia em torno do trabalho poltico-cultural da Prefeitura algumas mulheres que contribuam, mesmo que discretamente. Entre estas, a mulher do vice-prefeito, Lourdinha dos Santos, Iara Pimentel. Jacira Furtado, Dora Furtado, Dria Maranho e Nalda Medeiros. O cotidiano da cidade mudou. A vida daquelas pessoas estava diferente. Assumiram uma nova dimenso. Os fins de semana no se esgotavam na sesso das 18 horas do cine Rio Grande e na leitura dos jornais do Rio. Os momentos de melancolia, da sensao de perda real ou imaginria de alguma coisa desejada, sumiam. J no sobrava tempo no final de cada dia.

Ah, Cuba parecia to perto!

De repente, setores das foras armadas saem em defesa das elites empresariais e da propriedade privada. Um Golpe de Estado contra as reformas, contra as mudanas.

As prises se sucederam. As comisses de inqurito multiplicam-se: no Estado, no Municpio, na Universidade, nas Reparties Federais. H muita perplexidade, muito medo. Mas h muita dignidade no sofrimento.

A boalidade dos interrogatrios provoca uma sensao de espanto. Percebe-se e a histria j provou, que esses policiais torturadores so os guardies de todos os sistemas, mas no so chamados a sentar mesa, ficam em baixo da mesa, recebem as sobras como os ces e os porcos. So os Carlos Veras, os Domingos e os capites Lacerda.

Pela primeira vez em Natal, uma priso militar assiste entrada de mulheres. Por coincidncia nenhuma tem a proteo de marido. So acusadas de pr em risco a segurana da Famlia e da Propriedade Privada, como bem diz a nota oficial do Exrcito. Mudaram a fisionomia da cidade e acrescentaram um bel captulo histria da cidade do Natal e da luta das mulheres em defesa de direitos iguais.

A velhinha de Ponta Negra, que vinha vender goma toda semana, estava sempre a repetir com nostalgia: “os tempos so outros, as constelaes esto mudadas. Pernambuco no mais aquele”. Ningum perguntava o porqu daquele lamento. Hoje eu compreendo.

E Cuba?

Ah, Cuba parece muito distante!

Rio, 31 de maro de 1993

Maria Conceio Pinto de Ges

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