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Repressores
RN
Militantes Reprimidos no Rio Grande do Norte
Mailde Pinto Ferreira Galvo
Livros
e Publicaes
1964.
Aconteceu em Abril
Mailde Pinto Galvo
Edies Clima
1994
Depoimento
com o Capito Lacerda
O
fim de julho chegou sem novidades at
uma manh em que fui avisada pelo
oficial de dia que me levariam, s
9 horas, para depor, na comisso
presidida pelo capito Lacerda. Pela
quinta vez eu iria responder a um interrogatrio
sobre os mesmos assuntos. Torturavam-nos
demais com tantas inquisies.
Do capito nio Lacerda, conhecamos
a fama de torturador, violento, e de quem
dependia a sorte de todos os presos polticos
disposio dos militares.
Presidindo a Comisso Geral de Investigaes,
designado pelo alto comando do Exrcito,
exercia um poder diablico e impiedoso.
Naquele momento, no lembro se senti
medo ou cansao. Lembro, porm,
que s 9 horas encontrava-me na sala
do interrogatrio que era bem diferente
da sala onde depus com o delegado Veras.
Sentado
por trs de uma mesa, auxiliado por
um tenente e um sargento, o capito
indicou-me uma cadeira. No me olhava
e folheava papis. Assim, deu incio
s perguntas sobre as minhas supostas
atividades comunistas, sobre o prefeito
e sua equipe. Atemorizada com imprevisibilidade
do capito, respondia com cautela,
escolhendo palavras e controlando as emoes.
amos toda a manh falando sobre
as atividades culturais da Diretoria de
Documentao de Cultura. Quando
o capito se referia ao prefeito,
enfurecia-se e mal controlava os gestos.
s 12 horas, suspendeu o interrogatrio,
autorizou-me a voltar para o almoo,
recomeando s 14 horas. O
capito, ento apresentou-me
diversos poemas que haviam apreendido na
minha mesa de trabalho. Os poemas compunham
o repertrio de um grupo jogral da
DDC e haviam sido apresentados, no incio
do ano, encerrando um seminrio de
cultura. Entre eles encontravam-se "Morte
e Vida Severina", de Joo Cabral
de Melo Neto, "Ptria Minha"
e "O Operrio em Construo",
de Vincius de Moraes. O capito
irritou-se por se usar aqueles poemas como
cultura para o povo, "Ptria
Minha", ento, chocava-o enormemente;
considerava-o ofensivo ao seu sentido particular
de ptria. Apesar da impossibilidade
de entendimento, manteve o interrogatrio
com respeito e sem agressividade.
Quando percebi que estava encerrando, perguntei,
com muito cuidado, qual era a dificuldade
que os militares sentiam para compreender
o nosso trabalho na Prefeitura. Respondeu,
irritado, que eram os civis os denunciantes
da subverso e do comunismo na Prefeitura,
que aos militares cabia a defesa da ptria
e que ele iria at o fim na apurao
dos fatos e na punio dos
culpados. No pude falar mais nada.
Um soldado entrou com um recado de algum
reprter do "Dirio de
Natal", atravs do telefone,
pedindo informaes sobre
o inqurito e perguntando se haveriam
novas prises. O capito irritou-se
e criticou rudemente a interferncia
da imprensa; no foi atender ao telefone
nem deu explicaes.
s 18 horas, encerrou o interrogatrio
e, sem me olhar, informou que, a partir
daquele momento, poderia aguardar o resultado
do processo em liberdade. Embora no
acreditasse completamente nas ameaas
do delegado Veras de me mandar para Recife,
no esperava sair da priso
naquela noite. A liberdade era concedida
para responder a um processo que correria
na Justia Militar, sob a vigncia
de leis de exceo, impostas
pelos prprios militares. Aquela
liberdade significava, no momento, apenas
o sair da priso. As ameaas
continuavam; bastava lembrar a expresso
contorcida do general Muricy pela televiso
para sofrer arrepios pela minha liberdade.
Despejando dio contra os supostos
subversivos, o general transferia para eles
a revolta pelo episdio do acerto
de contas do ento deputado federal
Leonel Brizola que, num inflamado e inconsequente
discurso no Frum de Debates “Djalma
Maranho”, em Natal, chama-o
de “gorila”. Mas, afinal, voltava
para a minha filha, minha famlia,
meus amigos e para meu quarto. Era quase
banal lembrar o meu quarto de dormir, mas,
naquele momento, ele fazia parte da minha
privacidade.
O estado emocional e luta para ser forte
na priso j me cansavam enormemente.
O sofrimento de prisioneira, acrescido do
sofrimento pela famlia e pelos companheiros,
j me esgotava e fragilizava. Estvamos,
todos os perseguidos, unidos pelo mesmo
drama: na dor de meus pais estava a dor
de todas as outras famlias.
Diante de uma liberdade condicionada ao
resultado de um processo, senti-me comprometida
a comunicar ao capito Lacerda que
gostaria de voltar ao quartel para visitar
o meu cunhado Moacyr de Ges, que
fora transferido do quartel da Polcia
Militar para as celas do 16 R1. Comuniquei,
ainda, que no dia da libertao
de Diva, teria que receb-la em minha
residncia, pois a dela no
mais existia; a me continuava hospitalizada
e ela sem emprego, demitida que fora pelo
governador e prefeito dos cargos de professora
do Atheneu e do Ginsio Municipal,
tendo a casa onde morava devolvida ao proprietrio
por falta de pagamento do aluguel. O capito
respondeu que Diva sairia no dia seguinte.
Ficou claro que as nossas prises
Diva, Margarida e eu (Laly havia sido presa
pelo Exrcito) – haviam sido
decididas unicamente pelo delegado Veras,
presidente da Comisso Estadual e
de sua inteira responsabilidade. Os depoimentos
que decidiam nosso destino eram prestados
quele delegado. O capito
Lacerda nos interrogava para cumprir um
ritual da Comisso Geral do Investigaes
mas no decidia sobre a nossa libertao.
Falou da liberdade de Diva antes mesmo de
ouvi-la e de ter elementos para julga-la;
sua liberdade fora decidida, ento,
pelo delegado Veras, a quem Diva prestara
depoimento anteriormente. O capito,
com aquela informao, confirmou
minhas suspeitas sobre a responsabilidade
de minha priso e esclareceu algumas
dvidas de ordem poltica
local. O capito encerrou a conversa
autorizando visitar Moacyr e receber Diva.
Pedi-lhe, ento, que mandasse vir
um txi para voltar a casa. O ento
sargento Elmar Guerreiro, datilgrafo
da comisso, ofereceu carona no seu
automvel. Voltei priso,
pela ltima vez, para as despedidas
e apanhar meus objetos pessoais. Abracei
demoradamarte as companheiras e, por recomendao
do capito, nada comentei sobre a
sada de Diva. Retirei-me sem pressa
daquele quarto de priso, onde a
minha vida assumiu dimenses quase
infinitas. Cristo e eu sabemos quanta dor
e quanto apelo nos nossos dilogos.
J era noite quando deixei o quartel
em companhia do sargento Elmar Guerreiro.
Sai para a liberdade, mas a liberdade na
ditadura era apenas um sonho e um desejo.
Nossa realidade era a vida um sobressalto
e nos movamos em crculos
muito estreitos.
A vida da cidade aos poucos me era devolvida,
com ruas escuras e eu querendo claridade.
Desejava sentir a alegria de estar livre,
mas estava cheia de sombras. Em casa ningum
me esperava. As lembranas do reencontro
com a famlia so vagas distantes.
Lembro os amigos chegando com flores e emoo.
Quase imediatamente apresentaram-se
porta da casa um reprter e um fotgrafo
da “Tribuna do Norte”. procurando
entrevistar-me. O mesmo jornal do dia 20
de junho havia publicado a minha priso
com a seguinte notcia:
“TRS AUXILIARES
DE DJALMA MARANHO DETIDAS NO 16
RI.
Por determinao dos senhores
Jos Domingos e Carlos Veras, que
presidem o chamado inqurito da
subverso, foram detidas, na manh
de ontem, as senhoritas Mailde Pinto,
Maria Diva e Margarida Corts, responsveis
pelos setores de “educao
e conscientizao”
da Campanha de P no Cho
Tambm se Aprende a Ler.”
No domingo, 21, a mesma "Tribuna do
Norte" publicou:
“MULHERES.
Ainda repercute a priso efetuada
sexta-feira ltima das trs
professoras da Campanha de P no
Cho Tambm se Aprende a
Ler, a senhora Mailde Pinto e senhoritas
Margarida Corts e Maria Diva, e
interrogaes quanto aos
papis que elas tinham na trama
subversiva abortada a 31 de maro.
Fala-se em mtodo de politizao
com base na linha Havana-Pequim."
Os meios de comunicao cumpriam
o seu papel na divulgao
dos fatos e no se davam conta do
quanto expunham as nossas dores e o quanto
violavam a nossa intimidade. Unidos no processo
de massificao popular e
no anticomunismo indiscriminado, usavam
os perseguidos com sensacionalismo para
aumentarem suas vendas. Recusei-me a conceder
entrevista e prestar qualquer informao,
mas, no dia seguinte, l estava eu
sendo notcia no jornal “A
Tribuna do Norte”:
“MAILDE E DIVA FORAM
LIBERTADAS.
A ex-diretora da DDC; senhorita Mailde
Pinto e a coordenadora da Campanha de
P no Cho Tambm
se Aprende a Ler, que se encontravam detidas
no Quartel do 16 RI h mais
de um ms, foram liberadas pelos
homens do chamado inqurito da
subverso na noite de segunda-feira.
Procurada pela reportagem em sua residncia,
a professora Mailde Pinto, aparentemente
calma, negou-se a prestar qualquer declarao.”
No foi possvel defender
a minha privacidade e, naquela noite, toda
a minha sensibilidade estava exposta. Tive,
tambm, a surpresa de ver chegarem
porta de minha casa dois oficiais
que, quando nas funes de
oficiais de dia, haviam sido meus carcereiros.
Recebi-os na calada, sem entender
o que buscavam. Bastante encabulados e em
trajes civis, queriam cumprimentar-me pela
liberdade. Confessaram que haviam conseguido
ouvir a gravao de meu depoimento
com o capito Lacerda, torcendo por
mim a cada pergunta e resposta. Agradeci,
surpresa e emocionada, queles homens
a quem temamos tantas vezes, que
tinham as chaves de nossa priso
e que, agora, demonstravam esconder uma
solidariedade que s podiam confessar
fora do quartel. Entreguei-lhes uma rosa
das que havia recebido e pedi-lhes que a
entregassem s companheiras. Despediram-
se e voltaram s suas obrigaes
de carcereiros. Dias depois, indo ao quartel
visitar Moacyr, emocionei-me ao ver a rosa,
j murcha, dentro de um copo, por
trs das grades.
Diva chegou no dia seguinte, como estava
previsto; abatida e triste, sem lar, sem
emprego e sem referencial de vida. Laly
e Margarida s foram libertadas dez
dias depois, aps a revogao
da priso preventiva de Laly, que
fora decretada pela Auditoria Militar de
Recife. Diva levou ainda alguns meses para
conseguir condies de deixar
Natal e partir para o Rio de Janeiro.
No consegui das companheiras de
priso os depoimentos sobre as suas
experincias; razes pessoais
impediram-nas de voltar s lembranas
daqueles dias. Diva falou apenas do espanto
de ver serem queimados os livros das bibliotecas
que existiam nos Acampamentos Escolares
e as Cartilhas de Alfabetizao
de Adultos da Campanha "De P
no Cho Tambm se Aprende
a Ler". Militares do Exrcito
fizeram uma fogueira com os livros em frente
ao ento Centro de Formao
de Professores, no Baldo, onde funcionava
o Ginsio Municipal de Escola de
Comrcio do Municpio. Ela
confessa que chorou.
Laly, que reside em Paris, de agem por
Natal leu este relato e apenas comentou
detalhes sobre o que j estava escrito.
De Margarida ouvi apenas um desabafo: “Foi
tudo muito dolorido, muita destruio
na minha vida, tudo muito difcil,
no quero falar mais.”
Dias depois de minha libertao,
recebi de Djalma Maranho um recado
pedindo para ir v-lo no quartel da
Polcia Militar. Relutei bastante
em atender, mas acabei cedendo; havia tanta
insegurana em todos ns e
Djalma era to odiado que temi pela
minha liberdade. Ele recebeu a mim e Dora
Furtado com o mesmo sorriso, tentando demonstrar
otimismo e crendo, ainda, numa esperada
volta do pas normalidade.
No sei se por desinformao
dos reais acontecimentos polticos
ou porque desejava tanto a liberdade, ele
acreditava, para breve, a volta da democracia
ao pas. Era difcil encarar
a realidade de ver Djalma naquela priso,
politicamente destrudo. tentando
sustentar uma esperana, enquanto
l fora os militares endureciam cada
vez mais o regime. Dora Furtado e eu quase
no falamos. Ele queria detalhes
da minha priso e das outras companheiras;
preocupava-se pela nossa segurana
e, principalmente, pelas consequncias
que ainda poderiam vir, em decorrncia
dos depoimentos. Queria saber, tambm,
se guardvamos dele alguma mgoa
pois considerava-se o responsvel
pelo nosso envolvimento. Sentia-se causador
do sofrimento da equipe que fora massacrada,
como consequncia da perseguio
poltica para destruio
de sua liderana. Preso e impotente,
Djalma comportando-se como um pai que no
pde proteger os filhos. Despedimo-nos
com tristeza e irando a resistncia
daquele homem que lutava sempre e no
se sentia vencido.
Em nenhum instante daquele encontro comentou
o sofrimento da priso nem as violncias
fsicas a que foi submetido e reveladas,
apenas, sua esposa Dilma Ferreira
Siqueira, que acompanhou Dria, na
ocasio de uma visita.
Naquela tarde, uma das primeiras aps
o golpe, elas foram ao quartel visita-lo.
Levadas pelo tenente Calado a uma cela onde
Djalma se encontrava, sozinho, to
logo entraram receberam dele o apelo de
que procurassem o coronel Mendona
Lima para denunciar que havia recebido pancadas
na cabea. Estava nervoso e abatido.
O tenente Calado, que era conhecido pela
crueldade para com os presos, ficou muito
zangado, desmentiu a afirmao
e encerrou a visita.
Drio e Dilma dirigiram-se
residncia do coronel Mendona
Lima, fizeram o relato e o apelo. O coronel
demonstrou espanto e despediu-as, deixando
a impresso de que tomaria providncias
e seguiria, naquele instante, para o quartel
do 16 RI.
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