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Comit Estadual pela Verdade, Memria e Justia RN Centro de Direitos Humanos e Memria Popular CDHMP Rua Vigrio Bartolomeu, 635 Salas 606 e 607 Centro CEP 59.025-904 Natal RN 84 3211.5428 [email protected] 1p1d4a

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Militantes Reprimidos no Rio Grande do Norte
Mailde Pinto Ferreira Galvo
Livros e Publicaes

1964. Aconteceu em Abril
Mailde Pinto Galvo
Edies Clima 1994

ltimas prises

MARIA LALY CARNEIRO (MEIGNANT)
(Mdica do Hospital Saint-Anne em Paris, Chefe do Servio de Anestesia e Reanimao do mesmo Hospital, Membro da Academia Mundial de Sade, Comendadora da Cruz de Malta por trabalhos cientficos)

MARGARIDA DE JESUS CORTS
(Mestre em Pedagogia, Professora da UFRN, ex-Diretora do Centro de Formao de Professores da Campanha "De P no Cho Tambm se Aprende a Ler")

MARIA DIVA DA SALETE LUCENA
(Licenciada em Histria. ex-Professora do Atheneu e do Ginsio Municipal de Natal, Consultora de Empresas, Escritora)

MAILDE FERREIRA PINTO (GALVO)
(Ex-Diretora da Diretoria de Documentao e Cultura da Prefeitura Municipal de Natal, ex-Funcionria do Departamento de Correios e Telgrafos, ex-Chefe de Gabinete da Secretaria Estadual de Sade, Chefe de Gabinete da Secretaria de Trabalho e Ao Social)

Em um dia de junho, um recado do jornalista Leonardo Bezerra, que acabava de ser libertado da priso do quartel da Militar, acometido que fora por uma grave crise de diabetes. O recado dizia que precisava encontrar-me com urgncia, em lugar discreto e seguro para os dois. Meu irmo Brgido, responsvel pelo contato, levou-me, noite, ao encontro que aconteceu dentro de um automvel.

Leonardo chegou ao local determinado trazido por um mdico, seu amigo. Para diminuir a seriedade do encontro comeou dizendo que eu estava tima e era uma das figuras mais queridas pelos "homens dos interrogatrios...” No entendi, de incio, a insinuao ou no quis entender que o comentrio disfarava um aviso. Aos poucos, foi revelando que alguns dos presos haviam informado que, nos interrogatrios feitos pela comisso do delegado Veras, indagavam insistentemente sobre as minhas atividades como Diretora de Cultura e e que, seguramente, estavam me vigiando.

Fcil era concluir que se fechava o cerco em tomo de mim e que era iminente a minha priso. impossvel explicar o que senti. Apesar da delicadeza com que Leonardo me preparava para o momento da priso eu me sentia flutuar entre o medo e o espanto, como nos pesadelos. Lembro que a noite era de inverno, estava fria e mida; acho que tremi. Sentia muito medo; medo do desconhecido, da priso militar, medo de perder a liberdade, da noite, medo de perder a mim mesma. Leonardo continuava explicando sobre os cuidados que deveria tomar quando me levassem para os interrogatrios. Teria que manter a calma. Cada palavra ou cada gesto poderiam me livrar ou condenar. Sugeriu cuidado especial com o delegado Veras, um policial treinado pelo FBI, famoso pela tortura psicolgica que costumava usar nos interrogatrios. Apenas Leonardo falava.

Naquele momento tudo o que eu queria era poder fugir daquela noite e sumir na escurido. Ali no carro eu ainda me pertencia mas no podia saber por quanto tempo. Desejei o anonimato, que no me odiassem, no me procurassem, no me perseguissem. Era o desejo infantil da minha fragilidade.

Despedi-me de Leonardo com emoo e tristeza. Ele saiu em outro carro e nunca pude lhe dizer o quanto as suas recomendaes foram importantes nos meus dias de prisioneira.

Nada comentei com a famlia sobre o ocorrido, nem mesmo com a minha filha. No tive coragem de antecipar-lhes o sofrimento. Tomei algumas providncias domsticas, coloquei na bolsa alguns pertences, comprimidos de tranqilizantes e aguardei.

No foi preciso aguardar muito. Poucos dias depois, 19 de junho, mais ou menos s 12 horas, a kombi do delegado Veras subiu a calada da nossa casa, parando junto porta principal. Dela desceu o motorista e funcionrio do Estado, agente do Departamento de Ordem Pblica e Social, Sr. Pedro Vilela Cid. Entrou sem licena. informando que fora me apanhar para depor com o delegado Veras porta sem olhar para as pessoas que se encontravam na sala.

Sem despedida e sem palavras dirigi-me kombi e samos. Eu tinha conscincia de que a despedida ou o toque de um abrao me enfraqueceria. Lembro que na sala deixei os meus pais e uma irm. Ainda ouvi o meu pai indagando para onde me levaram mas o motorista no se dignou sequer a olhar.

Ao meio-dia, ando pelas ruas da cidade quase deserta, eu me indagava quando voltaria a caminhar livremente por elas. O carro rodava sem pressa e nenhum pensamento especial me chegava, nenhuma lembrana. De repente, o vazio mental. Depois, a minha filha doendo em mim.

Chegamos residncia de Maria Diva da Salete Lucena que foi, igualmente, convocada para prestar depoimento e recolhida da mesma forma. Diva no percebeu logo que estava prisioneira. Avisei- lhe que aquela convocao significava a nossa priso; ficou muito plida e no respondeu. O motorista, no entanto, insistia que no estava nos prendendo: estava nos levando para prestar depoimento.

Conduzindo Diva que se refazia do choque, amos pela avenida Alexandrino de Alencar onde, em rua paralela, residia Leonardo Bezerra. Pedi ao motorista que entrasse naquela rua e ele, inexplicavelmente, atendeu. ando em frente casa de Leonardo pedi ao motorista que parasse e ele, mais inexplicavelmente ainda, atendeu. Gritei pelo nome de Leonardo e avisei que estava sendo levada para a priso. Com a surpresa, o motorista reagiu, irritado e saiu, em alta velocidade, para a residncia da professora Margarida de Jesus Cortez.

O Sr. Pedro Vilela representou a mesma farsa e Margarida entrou no carro, novamente convencida de que iria apenas depor. Tentei oonscientiz-la da nossa priso mas no aceitou; no conseguia entender que houvesse dvidas sobre a honestidade e integridade de seus atos como profissional e como cidad. Guardou muito silncio e muito espanto. Com os cabelos enrolados e cobertos por um leno, preparava-se para mais uma tarde comum na sua vida de professora.

O motorista recusava-se a informar para onde seguamos at que nos encontramos na avenida Hermes da Fonseca, perto do quartel do 16 RI, onde j se encontrava aprisionada a universitria Maria Laly Carneiro.

Do porto do quartel saa, no exato momento de nossa chegada, o ento recruta Haroldo Pacheco. Ao reconhec-lo gritei o seu nome, pedindo que avisasse ao meu irmo Leon para onde estavam nos levando. O motorista ficou, novamente, muito irritado e nervoso. Finalmente, estacionou junto ao Corpo da Guarda. Descemos da kombi bem ao lado das janelas das prises. Sem nenhum comentrio, aguardamos. Sabiamos que muitos companheiros, entre eles Djalma Maranho, Carlos Lima, Aldo Tinoco, Ubirajara Macedo e outros encontravam-se ali, atrs daquelas grades, mas nenhum rosto apareceu.

O oficial de dia veio nos receber, com a indiferena de quem cumpria uma rotina. Levou nos atravs de uma porta de ao que me pareceu enorme. Por ela entramos num quarto todo fechado onde, h oito dias, encontrava-se Laly. Ela fora presa pelo Exrcito em face de denncias sobre atividades estudantis. Retirada de uma sala de aula da Faculdade de Medicina e levada num jipe por militares fortemente armados para o Quartel do 16 RI foi, imediatamente, submetida a um longo interrogatrio que durou at a noite, quando a colocaram na cela onde estivera, incomunicvel, o Prefeito Djalma Maranho. Pela madrugada, vieram busc-la e a levaram at os fundos do quartel onde a rodearam em silncio e assim permaneceram por um tempo que lhe pareceu infinito, em plena escurido.

Rodeada pelos militares, Laly viveu os momentos mais dramticos de sua experincia de prisioneira poltica. Saciados em seu sadismo. conduziram-na, depois, para a cela onde se encontrava quando chegamos.

Laly nos recebeu com um sorriso triste, abraou-nos fortemente e muito trmula. Procurava acolher quem no queria ser acolhida; eu queria sumir e no existir. Fiquei algum tempo de p, no meio do quarto, atenta ao barulho dos carros que chegavam ao quartel. Desejava que meu irmo Leon chegasse, a qualquer momento. Uma chegada intil, pois nada poderia fazer.

Tenho na memria que a tarde escureceu muito de repente.

Dispnhamos de um pequeno quarto com camas, um banheiro e uma pequena agem para a porta de metal, onde receberamos, depois, as visitas. Acomodamo-nos nas camas. Ansiosa por notcias, Laly fazia perguntas e informava sobre a rotina da priso. Eu permanecia em silncio, resistindo quele mundo militar at ento completamente desconhecido. O silncio era cortado por alguns tiros ao longe. Sentia-me meio idiota, sentada na cama, mente esvaziada, ouvindo Laly falando baixo, com medo de microfones que imaginava instalados escondidos, como nos filmes de guerra.

No sei por quanto tempo me perdi mas lembro a imensido da dor quando a imagem de minha filha se imps. Ento, chorei. Laly tentava confortar-me, surpresa com a minha aparente fraqueza. J escurecendo, por uma janela vizinha porta de metal, o jantar foi entregue, sem palavras. No consegui comer mas no esqueci a brancura do arroz que acompanhava o bife.

Margarida despertou de seu espanto e desabafou a revolta. Sentia-se violentada mas no chorava, explodia de sofrimento e raiva. Arredia polcia entender a sua condio de prisioneira, o que se chocava profundamente com a sua vida religiosa de protestante convicta. Eu, porm, continuava chorando, tomei um tranqilizante que levava na bolsa e chorei at adormecer.

Acordei assustada pelo toque de corneta e me propus a dominar o sofrimento e as lgrimas; desde ento e at hoje ficou difcil chorar. Paralisada na cama, procurei assumir a realidade de minha nova condio e fiquei ouvindo aqueles sons que aram a fazer parte dos sons de minha vida.

Levantvamos cedo, revezvamo-nos no banheiro, cuidvamos da imagem, tomvamos caf e ficvamos prontas para o dia. s sete horas ouvamos a msica dos dobrados tocados para o ritual de hasteamento da bandeira nacional. Assim os militares cumpriam o ardor de seu patriotismo. Marchas, exerccios fisicos, treinamento de tiro com fuzis e metralhadoras completavam a disciplina rgida do quartel. Ouvamos todos os dias, no mesmo horrio, o t-t t daqueles tiros ressoando nas dunas. Era montono e deprimente. O quarto da priso permaneceu, alguns dias, com as janelas fechadas at que Laly ou a sentir dores do cabea e solicitou ao sentinela a presena do oficial de dia, a quem apelou para que pemitissem abrir a janela para a renovao do ar. Fomos, assim, autorizadas a abrir uma janela, o que nos permitia ver o ptio que se estendia at a avenida Hermes da Fonseca. Comeamos, ento, a receber ar puro e ganhamos um pouco de cu, algumas rvores e a viso do porto da sada. De repente, ficou muito importante aquela paisagem restrita a um pouco de azul, de verde e de um porto distante.

Analisando a nossa situao de presas polticas, combinamos que, em qualquer circunstncia, teramos que permanecer fortes e demonstrar segurana. A tudo deveriamos tentar enfrentar com naturalidade. Adquirimos a conscincia de que todos os gestos e palavras eram importantes no julgamento que aqueles homens fariam, vivendo, como estavam, certamente pela primeira vez, uma experincia com prisioneiras do sexo feminino. Os militares nos olhavam discretamente e sabe-se l que concluses tiravam sobre as nossas vidas e os crimes que nos levaram at a priso.

Certa noite, j estvamos recolhidas e a luz apagada quando ouvimos uma voz, bem junto janela, dizer: "Eu quero a loura!" Laly usava cabelos louros. Continuamos em silncio mas muito preocupadas. No dia seguinte, evitamos comentar o assunto.

Outra noite, despertamos pelos gritos de algum que estava sendo espancado, bem perto da janela interna de nossa priso. O torturador que batia exigia do preso a confirmao de que Laly e eu nos encontrvamos em determinada reunio. Aos gritos, indagava: "Laly estava l ?" - "Mailde estava l?" O preso s gemia. As lembranas desse episdio foram avivadas por Laly. Na minha memria elas chegam pesadas e escuras. possvel que tenhamos sido vtimas de uma farsa para aterrorizar. Se foi, conseguiram. At hoje no consigo pensar no episdio sem me perturbar.

Sentamos necessidade de alguma distrao alm da leitura de uns poucos livros que nos permitiram receber. Contvamos histrias das nossas lembranas, recordvamos filmes, episdios vividos e fatos pitorescos, mas as horas avam lentas. noite, Margarida, que era protestante, lia a Bblia para ns; meditvamos e alivivamos a tenso.

Nas tardes de sbado, quando o quartel no se achava de prontido, recebamos visitas da famlia e amigos. No sei definir o efeito emocional das visitas. A espera era alegre mas assistamos humilhao das nossas pessoas queridas serem pressionadas pelos militares que, no momento dos encontros, metiam-se entre todos, impedindo a espontaneidade dos gestos e das conversas. Olhvamo-nos com aflio e ternura sem, no entanto, conseguir nos tranquilizar. Nunca procurei saber daquelas pessoas que sentimento levavam quando nos deixavam no quartel, j anoitecendo. Envergonhava-me daquilo. Respeito e pudor impediram-me de falar-lhes sobre aquele sofrimento que ns causvamos. Quando as visitas saam tentvamos prolongar as lembranas, recompor os dilogos mas as imagens que guardvamos eram de pessoas impotentes e derrotadas diante daqueles homens armados, estranhos ao nosso mundo.

A nossa pobre vingana era nos divertir, observando os desfiles que os militares faziam, em frente janela da priso, e a tentativa para exibirem elegncia e boa postura. Conseguamos rir, algumas vezes, de alguns dos componentes daquelas marchas dirias, em que se despendia tanto tempo, sem o menor sentido para ns.

Nas noites de insnia - e eram muitas - procurava escapar da tristeza refugiando-me em outras lembranas. Buscava as manhs de inverno de minha infncia e o verde que cercava. O aude da fazenda, cheiro de terra molhada pela chuva e as brincadeiras com minhas irms. Impossvel ar a priso sem voltar s raizes e fantasia, nelas buscava alguma beleza e defendia a minha ternura. Assim, protegia-me e recompunha a minha histria.

Numa manh de domingo, levaram-nos para tomar banho sol no ptio do quartel. Caminhamos um pouco e fomos recolhidas, sem explicaes. Em outro domingo fomos levadas para a varanda do magnum dos oficiais, tambm para tomar sol, de onde podamos ver as dunas. Por trs das dunas estava o mar. Desejei ardentemmte aquele mar. Ficamos um pouco. Voltei priso com a paisagem das dunas e o desejo do mar.

Certo dia a nossa rotina foi alterada por uma agradvel surpresa: aconteceu a visita do padre Francisco de Assis Pereira. Entrou no quarto com o oficial de dia e convidou-nos confisso para receber a comunho. Laly e eu aceitamos imediatamente. Margarida, como protestante, no aceitou. Diva estava arredia com a religio. Padre Assis estava tenso com a presena ostensiva do militar no recinto, mas conseguiu confortar-nos. Esperamos, nas semanas seguintes, o retorno do padre, que nunca mais voltou. Assim, perdemos um apoio que nos poderia deixar mais tranqilas.

A noite de So Joo foi festejada pelos militares com fogos, bebidas e muita alegria. Por trs das grades vimos militares humanizados, com mulheres e crianas divertindo-se, no ptio do quartel, bem em frente s nossas prises.

Em uma manh de julho, logo cedo, o oficial de dia nos avisou, discretamente, que viriam revistar o quarto e nossos pertences, o que de fato fizeram. Naquele dia o quartel entrou em regime de prontido, o que acontecia sempre que a cpula do poder endurecia o regime. A revista no nos parecia ter sentido, pois todos os objetos, roupas e livros j haviam sido vistoriados na entrada do quartel.

Laly aniversariou na priso; comemoramos com abraos e beijos, sem maior tristeza mas sem alegria. tarde, atravs das grades, Laly reconheceu sua famlia chegando. Trouxeram presentes e bolos. O oficial no permitiu que se aproximassem; deixaram os pacotes e voltaram, sem nenhuma palavra com a aniversariante.

ei o dia 7 de julho, aniversrio de minha filha, na expectativa que pudesse diminuir a nossa distncia. tarde, observei pela janela que ela estava chegando. Trazia uma procurao para ser assinada por mim como um pretexto para provocar um encontro naquele dia. Falou com o oficial de dia, que no permitiu entregar-me pessoalmente o documento. Por trs das grades observei a sua volta solitria. A minha tristeza no tinha limites.

Certa noite estavmos nos recolhendo quando ouvimos o som do motor do carro do capito Lacerda, j identificado por ns. Ficamos na expectativa de outros sons, pois nunca o vamos chegar noite e sabamos que torturava fisicamente os presos polticos. Assustamo-nos quando ele apareceu na janela, pronunciou o nome de Diva e retirou-se em seguida Permanecemos em silncio; minha lembrana a dos olhares aflitos e amedrontados. ados alguns minutos, comearam a bater na porta de metal, parecendo uma tentativa de a arrombarem. Eram pancadas fortes e devem ter assustado, tambm, os demais presos do mesmo bloco. Nossa aflio era enorme e s aumentava; a porta de metal era a nossa nica via de o para fora da priso. No conseguindo abrir a porta com pancadas, o capito ordenou que entrssemos no banheiro. Dispararam tiros, possivelmente na fechadura ou em um cadeado e, afinal, a porta abriu. O capito Lacerda chamou Diva pelo nome completo e a levou. Quase imediatamente ouvimos os seus gritos e choro convulso; gritava desesperadamente pela me e por Deus, com quem dizia estar rompida. O seu choro foi aos pouco sumindo com o barulho do motor do carro do capito. Permanecemos de p, em silncio, a porta arrombada e soldados armados com fuzis, montando guarda. Tudo muito solene e assustador.

No sei quanto tempo ou at que o oficial de dia, que levara a chave da porta, voltasse do seu eio noturno, fora do quartel. Com a sua chegada fomos informadas que a me de Diva fora hospitalizada, em estado do coma, acometida de um derrame cerebral e encontrava-se na UTI do Hospital das Clnicas.

O estado de sade da me de Diva era grave, mas como temamos coisas terrveis naquela noite, esperamos a sua volta com menos preocupao. O oficial de dia e alguns soldados consertaram a porta e, logo depois, Diva retornou, chorando. O capito Lacerda retirou-se e o tenente sentiu-se mais vontade para confortar Diva e comprometeu-se em trazer, diariamente, notcias de Dona Teca. Diva ou a viver, ento, mais deprimida e silenciosa. O tenente cumpriu o prometido; todas as noites, conseguia uma forma de se aproximar da janela e, discretamente, inform-la do estado de sade de sua me.

Algumas vezes vimos ar os presos com problemas de sade; eram levados para o ambulatrio mdico algemados e escoltados por soldados armados com fuzis e baionetas. Certa vez, Geniberto Campos, ento noivo de Laly e preso no alojamento vizinho, conseguiu mandar avisar-lhe que aria, para o dentista, em frente janela interna de nossa cela. Outras vezes vi ar Carlos Lima e Josem Azevedo, tambm algemados e escoltados.

Nos dias de visita aos presos, podamos observar, atravs da janela interna de nossa priso, a chegada das famlias ao ptio do quartel, os abraos tmidos e emocionados nos maridos, filhos e noivos. Entre eles ficavam os oficiais e soldados armados e atentos. No h como esquecer as expresses aflitas, dignas e altivas daquelas mulheres.

L fora, elas lutavam incansavelmente pela nossa liberdade mas chegavam aos quartis de mos vazias e poucas esperanas. Dria Maranho, Odete Roseli Maranho, Conceio Ges, Marta Tinoco, Anita Pereira de Paula, Geni Brando, Juraci de Vasconcelos, Albaniza Pimenta, Conceio e Salete Carneiro, Salete Lima, Joana d'Arc Cabral, ngela e Snia Cavalcanti, Doralice Macedo, Iraci Oliveira, Sotera Fialho, Marli Moura, Eunice Machado e tantas outras que viveram com dignidade e coragem os acontecimentos de 1964 em Natal.

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