Comit
Estadual pela Verdade, Memria e
Justia RN - Rio Grande do Norte
Centro
de Direitos Humanos e Memria Popular
CDHMP
Rua Vigrio Bartolomeu, 635 Salas
606 e 607 Centro
CEP 59.025-904 Natal RN
84 3211.5428
[email protected] 3c561k
Comisses
da Verdade Brasil
| Comisses
da Verdade Mundo
Comit
de Verdade Estados | Comit
da Verdade RN
Reprimidos
Ditadura Militar no RN | Repressores
Ditadura Militar no RN
Ditadura
Militar de 1964 no Rio Grande do Norte
Glnio
Fernandes de S
Represso no RN
Textos
Glnio
S: De um especial brasileiro s
novas geraes
Luiz
Carlos Antero*
Numa
poca em que a poltica sofre
profundamente a ao das prticas
culturais de uma das elites mais atrasadas
do planeta, o resgate da memria
de Glnio Fernandes de S enobrece
o esprito e remete ao exemplar orgulho
revolucionrio de uma gerao
de lutadores. Daquela safra de jovens que
viveu intensamente a opo
de transformar um mundo caduco e enfermo.
Este legado s novas geraes
que adveio do auge de uma era de transformaes
e nos conduzia, de modo inexorvel,
a acreditar sob todos os riscos num generoso
sentimento de solidariedade capaz de realizar
os sonhos de uma nova sociedade.
Foi nessas circunstncias que conhecemos,
na Fortaleza de final dos anos 1960 e incio
dos ’70, o altivo e sobranceiro Glnio,
um bravo potiguar de rosto proeminente,
fala comedida, olhar sereno e determinado,
um desarvorado rebento nascido no municpio
de Carabas, no Rio Grande do Norte,
em abril 1950, distando somente alguns dias
ou meses de idade em relao
ao prprio nascimento de cada um
de ns, ento estudantes secundaristas.
Era o caula de sete irmos
do casal Raimunda Fernandes de S
e Epitcio Martins de S,
entre os quais Gil Fernandes de S,
que tambm adotara o Cear
como espao adotivo de sua trajetria
de vida e luta.
Mais amadurecido, Glnio j
percorrera o caminho da resistncia
desde os 16 anos: seu ingresso na luta democrtica
ocorrerra dois anos aps o golpe
militar de 1964, ainda no Colgio
Estadual de Mossor (RGN), integrando-se
a partir de 1968, em Fortaleza, s
fileiras do Partido Comunista do Brasil
(PCdoB), quando desenvolvia uma forte atuao
no Centro de Estudantes Secundrios
do Cear (CESC) e no movimento estudantil
cearense.
No crepsculo dos anos ‘60,
Glnio j despontara como uma
das principais lideranas do movimento
secundarista em Fortaleza, tornando-se um
destacado e querido dirigente da resistncia
ditadura militar com uma clara
compreenso da importncia
da restaurao das liberdades
democrticas no Brasil.
Com uma viso ampla da vida, compreendia
tambm as circunstncias da
bipolaridade que dividia o mundo entre Estados
Unidos e Unio Sovitica,
numa intensa e marcante luta de classes
no plano internacional com reflexos em nosso
pas, onde o regime de exceo
se instalara para conter os avanos
sociais sob o declarado temor da opo
comunista e de uma mudana de lado
na posio brasileira.
Naquele momento, as liberdades polticas
foram gradualmente cerceadas, tornando as
atividades da resistncia mais arriscadas.
A propagao do pensamento
libertrio, antes (do Ato Institucional
n 5, o AI-5, em 1968) possvel
nos espaos pblicos, inclusive
no interior das instituies
de ensino, ou a depender de aes
que deviam contar sempre com um planejamento
que envolvia a questo da segurana
em comcios relmpagos nos
colgios e universidades, panfletagens
na madrugada em cada casa, pichamentos nos
muros mais visveis, etc.
Em sntese, o contedo das
falas e panfletos conclamava os estudantes
e o povo brasileiro obra da resistncia
ao arbtrio, defesa das
liberdades democrticas e da nossa
soberania, necessidade de uma vida
melhor para a classe operria e os
trabalhadores em geral, de um regime de
justia social capaz de valoriz-los
e promov-los posio
de protagonistas das transformaes.
Um contedo que se estendia
rejeio da presena
do intervencionismo imperialista em nosso
pas, em particular dos Estados Unidos.
Na atuao da Unio
da Juventude Patritica (UJP), inspirao
do PCdoB, uma das suas consignas consistia
na defesa da extenso de 200 milhas
para o nosso mar territorial em contraponto
pretenso imperial de limit-lo
s 12 milhas. Eram comuns os comcios-relmpago
nos restaurantes universitrios e
em outros lugares, culminando com a queima
da bandeira dos EUA.
Nossa atuao encontrava em
Glnio e na sua presena invariavelmente
firme e combativa frente do CESC,
na organizao e liderana
das manifestaes estudantis,
no obstante os perigos e atribulaes
ocasionados pela represso policial.
Nessas circunstncias, compareceu
ao Congresso da Unio Brasileira
dos Estudantes Secundaristas (UBES), realizado
em 1968, em Salvador, numa delegao
de quatro eleitos – que, na agem
por Aracaju, soube da notcia do
AI-5, decretado pelos generais.
Diante da privao das liberdades
em todo o pas, a luta se radicalizava
pelo prprio agravamento das operaes
militares repressivas, restringindo cada
vez mais as possibilidades de atuao
estudantil, criminalizadas pela ditadura.
Em 1969, Glnio foi preso duas vezes;
logo na primeira priso, na cidade
do Crato (CE), permaneceu detido trs
meses, indiciado num Inqurito identificado
pelo nmero 18/69, instaurado pela
Superintendncia Regional do Departamento
de Polcia Federal do Cear
e remetido Auditoria da 10
Circunscrio Judiciria
Militar, depois arquivado por solicitao
da Procuradoria Militar, que o extinguiu
pela pattica inexistncia
de crime a punir.
Na segunda priso, tambm
ocorrida no Crato, quando convocava os estudantes
para integrar o CESC, o jornalista Paulo
Verlaine, companheiro de lutas de Glnio
e tambm membro do Comit Secundarista
do PCdoB, fora preso numa ao
de pichamentos contra a presena
no Brasil de Nelson Rockfeller, destacado
membro de uma poderosa famlia dos
EUA e agente dos interesses imperiais enviado,
frente de uma Misso, pelo
ento presidente Richard Nixon.
Ao chegar no ento Quartel General
da PM, na Praa Jos Bonifcio,
em Fortaleza, Verlaine j encontrou
Glnio, que foi liberado cerca de
20 dias depois: “J nos conhecamos
muito bem e foi muito bom t-lo encontrado
ali, apesar de se tratar de uma priso
(...) A imagem que guardo de Glnio
a de um jovem aguerrido, solidrio
e preocupado com os destinos do Pas.
Um estudante que dedicava toda a sua vida
luta contra a ditadura militar
e se preocupava com o sofrimento do povo.
Um grande brasileiro”.
E foi essa a lembrana que permaneceu
em seus mais prximos contemporneos.
Jos Auri Pinheiro, tambm
membro da direo do CS do
PCdoB, hoje professor universitrio
aposentado, fixou em sua memria
“uma pessoa afvel, gentil,
solidria, ousada, de uma coragem
invejvel, uma pessoa muito inteligente,
de discurso fluente, habilidoso ao lidar
com as demais correntes polticas
(a exemplo da AP, dos trotskistas ou reformistas).
Nos embates polticos das reunies
ou congressos do CESC, ns sempre
contvamos com sua firmeza ideolgica
no arremate final, convencencendo aqueles
indecisos, sem partido, na conquista para
as posies do PC do B. Apesar
da firmeza poltica, ideolgica,
no discurso e na prtica, mesmo tratando
de temas ridos fazia com humor,
com graa. No era aquele
cara chato, era irado por todos. Era
comunista 24 horas por dia, sempre maquinando
situaes para colocar em
cheque a ditadura num momento em que as
pequenas aes se revestiam
de grande importncia, naqueles momentos
difceis em que era preciso ser ousado,
corajoso. E nisto o Glnio era mestre.
Foi com estas ideias, aes,
atos cumulativos, que chegamos ao fim da
ditadura”.
Seu irmo Gil at hoje considera
muito dificil falar do mano Glnio
sem o peso da saudade e emoo:
“Ele se tornou cedo o espelho do combatente
determinado sem perder nunca a leveza e
amabilidade na relao com
todos que o cercavam. Morreu lutando pelos
ideais que o seguiram por toda a sua existncia
contra a injustia social e pela
igualdade de oportunidades para todos. Sua
vida foi sempre alimentada por sonhos libertrios”.
E foi pela convico de todas
essas razes entremeadas que a direita
militar submissa ao Imprio nunca
o perdoou, perseguindo todos os seus os
at extermin-lo fisicamente.
A militncia no movimento estudantil
de Glnio foi interrompida no incio
de 1970, com a desarticulao
e a proscrio das entidades
mais atuantes, a exemplo do Diretrio
Central dos Estudantes (DCE) da Universidade
Federal do Cear (UFC), diretrios
acadmicos e do prprio CESC,
declarados ilegais. Dispostos a prosseguir
na resistncia, inmeros estudantes
ingressaram na clandestinidade ainda que
os riscos se tornassem maiores, pois a ditadura
ava a list-los para execuo
fsica, no caso do confronto direto,
ou para a tortura e o assassinato nas masmorras
do regime.
Logo Glnio optou pelo deslocamento
rumo ao sul do Par, onde aqueles
cidados marcados para morrer adotaram
uma nova qualidade de resistncia,
na organizao e conscientizao
dos camponeses da regio na luta
contra grileiros e latifundirios.
Foi o movimento que permaneceu conhecido
como Guerrilha do Araguaia e que guarda
mistrios at hoje ocultos
nos arquivos das foras armadas sobre
seus acontecimentos. At abril de
1972, quando a represso militar
localizou e atacou os que se refugiaram
na regio, homens e mulheres de todas
as idades, Glnio participou da preparao
de uma resistncia sem data marcada
e que poderia ser de mdio ou longo
prazo.
Aps o ataque dos militares, entretanto,
internou-se na selva. Em seguida a um perodo
de combates, contraiu malria e,
gravemente enfermo e febril, foi detido,
barbaramente torturado e transferido sucessivamente,
at que, localizado por sua famlia,
foi libertado em 1975 numa dramtica
situao que envolveu gestes
e presses de diversas instncias
sociais. Do mesmo modo que os demais sobreviventes,
num total que no chegaria a uma
dezena (de um contingente de 69 que migraram
para a regio do Araguaia em busca
de uma nova perspectiva de vida e de luta),
acerscidos dos camponeses que aderiram
resistncia, Glnio tambm
jamais foi acusado ou processado por sua
participao na Guerrilha.
E, para ele, a luta no terminaria
com a sada do crcere, que
significava somente mais uma etapa do processo
versejado pelo amor maior da libertao.
Muito magro e debilitado pelos maus tratos
sofridos no perodo em que esteve
nas masmorras da ditadura, aps a
priso no Araguaia, Glnio
recebeu um dia a visita de um amigo do seu
irmo Gil, na humilde residncia
em que vivia com sua familia. O visitante,
Pedro Carlos lvares, muito emocionado
com aquele contato, cumpria uma agenda de
trabalho em Natal, egresso de Fortaleza,
onde organizaria a equipe de expanso
de uma empresa cearense do ramo da informtica.
Surpreso, o abatido mas sempre altivo Glnio
soube que teria um emprego, na verdade um
desafio para um revolucionrio que
vivera por longo tempo distante das novidades
do mundo tecnolgico, num tipo de
revoluo muito diferente
de tudo que vivenciara nos anos de chumbo
da ditadura. Apresentou-se na empresa no
dia seguinte trajando roupas muito simples,
recebeu as primeiras instrues
sobre o trabalho, que consistia em liderar
sua equipe de vendas, e integrou-se, determinado,
s novas funes.
Dias depois, lvares viajou para
Fortaleza numa emergncia familiar.
No retorno a Natal, encontrou um dos scios
da firma, um civil potiguar entusiasta da
represso aos comunistas, indignado.
Glnio, numa reunio com dezenas
de funcionrios, havia relatado sua
saga na guerrilha do Araguaia, contextualizando
a luta de resistncia. lvares
foi convocado para uma reunio em
Fortaleza, e, com muita convico
e habilidade, convenceu a diretoria da irrelevncia
do fato; disse que o mais importante estava
na realizao das metas de
expanso comercial, apostou na capacidade
de liderana de Glnio e em
seu desempenho. E no deu outra:
a equipe comandada por ele se tornou rapidamente
campe de vendas no Nordeste.
Mas
o xito no o afastou da poltica.
Pelo contrrio: sua atividade persistiu
com a mesma determinao.
E, quando a fatalidade o alcanou,
em 1990, estava em pleno curso. Na verdade,
a crnica de uma morte anunciada,
pois a comunidade repressiva persistiu em
atividade aps o anncio formal
do fim da ditadura, cinco anos antes, em
1985. A mesma macabra agenda que determinou
o extermnio de todos os combatentes
no perodo da terceira campanha de
cerco e aniquilamento da Guerrilha do Araguaia,
e que tornara a Chacina da Lapa, em 1976,
sua derradeira e simblica batalha,
vitimaria quem ousasse permanecer no prumo
libertrio. Buscava-se desse modo
completar o inglrio desgnio
de destruio de um pensamento
nacional, consequente e libertrio.
Alguns contemporneos das lutas secundaristas
voltamos a abra-lo nos anos
‘80, em Natal ou em Fortaleza, quando
reassumira seu lugar na crista das lutas
e na direo do PCdoB, tornando-se
candidato ao Senado pelo Rio Grande do Norte.
Paulo Verlaine, que o reencontrou, juntamente
com outros militantes, numa visita a Fortaleza,
guardou a impresso de “um
Glnio mais sofrido devido s
torturas e outros sofrimentos enfrentados
durante a priso”. Mas a sua
preservada firmeza nas convices
e no jeito humano e comunista de ser, temperados
pelo afeto irresstivel ao povo brasileiro
— e ao nosso milagre territorial hoje
cada vez mais potencializado — so
reveladores de sua contribuio
ao Brasil de liberdades democrticas
e dos avanos pelos quais pugnamos
hoje.
No houve, portanto, nada de acidental
no estranho acidente automobilstico
que ceifou sua vida. Pois Glnio,
executado, est ao lado de Mauricio
Grabois e de tantos outros, como um especial
brasileiro no panteo de mrtires
e heris, entre os melhores filhos
do nosso povo, exemplo de integridade e
de luta para as atuais e futuras geraes.
Abatido em pleno vo da liberdade
como na Cano do Novo Mundo,
onde “em menos de um segundo um simples
canalha mata um rei”. Mas com uma
memria to viva “que
nem a fora bruta pode apagar”.
*Luiz Carlos Antero Mestre em Sociologia,
Jornalista, Escritor e Assessor Parlamentar
no Senado Federal.
^
Subir
<
Voltar
|