Tecido
Social
Correio Eletrnico da Rede Estadual de Direitos Humanos
- RN
N.
006 – 02/11/03 6471u
Carta
aberta s alienadas e os alienados
Cara
alienada e caro alienado,
Antes
de mais nada, permitam-me de cham-los assim, usando a palavra
no seu sentido etimolgico de "alheio a algo". Uma
palavra apropriada sua condio cultural e social: alheio
excluso, alheio misria, alheio ao sofrimento, alheio
falta de emprego e de oportunidades, alheio explorao, alheio
s execues sumrias e torura... alheio realidade da grande
maioria dos seus compatriotas, ao dia a dia do brasileiro pobre.
Alheio,
portanto, ao que acontece ao seu redor, realidade do seu pas
e imerso no seu mundinho dourado de emprego estvel, plano de
sade, educao privada para voc e os seus filhos, irmos e
amigos, frias remuneradas, casa de praia, o livre a todos
os bens de consumo de primeira necessidade e a muitos dos suprfluos,
shopping centers, restaurantes, festas, lojas e etctera etctera.
Me deixem chamar-lhes de alienados com connotao meramente
descritiva: a de pessoas que desconhecem, que esto fora, que
so alheias... e que por estar fora, por desconhecer tendem
a julgar, classificar o mundo, definir a realidade em base aos
valores, a tica e as categorias do mundo limitado ao qual pertencem.
Voc,
minha cara alienada e meu caro alienado, daqueles que acham
que as pessoas como eu, as que defendem os direitos humanos,
so um punhado de vagabundos, de desocupados que se dedicam
a proteger "bandidos".
daqueles que quando assistem na tv a um homicdio perpetrado
por algum destes "bandidos" - ou "marginais",
como vocs gostam de cham-los - procedente sempre, sistematicamente,
da periferia (mas isso no importa, pois a mdia no o diz)
contra algum dos bairros residenciais, os bairros ricos, os
seus bairros (isso o que realmente importa, tambm porque
so os nicos crimes de que a mdia fala) arremetem com o peito
carregado de indignao contra a ausncia de algum defensor
dos direitos humanos no velrio da vtima declarando (como se
fosse preciso, como se no fosse evidente a qualquer pessoa
minimamente consciente) que uma violao inissvel dos
direitos humanos, e com a mesma raiva arremetem quando sai na
mdia (por algum milagre) uma denncia de tortura perpetrada
por algum policial em alguma delegacia contra algum "marginal"
(para continuar a usar a terminologia de vocs) gritando que
ns, os defensores dos direitos humanos, s nos ocupamos da
defesa de "bandidos".
Voc
pertence a esta categoria de pessoas e com certeza est esperando
de mim, defensor dos direitos humanos, em uma carta que voc
est achando de auto-defesa ou justificativa (como se precisasse
me justificar perante algum pelo que fao e pelas coisas em
que acredito), que diga que no, que no verdade que s defendo
"bandidos", que tambm me dedico a denunciar violaes
cometidas contra outros sujeitos sociais, os que voc chama
de "pessoas de bem" ou "inocentes".
Com
certeza voc est esperando, por exemplo, que como membro do
Centro de Direitos Humanos
e Memria Popular de Natal (Rio Grande do Norte) lhe mostre
que no gerencio s o servio SOS
Tortura para que as vtimas desta prtica (que so sempre
"marginais") tenham o Justia, mas que dou
tambm cursos de Agentes da Cidadania
para capacitar lideranas comunitrias sobre os intrumentos
de defesa dos direitos humanos, que dou aulas de Educao
para a Cidadania nos colgios pblicos da minha cidade para
ensinar s jovens geraes o respeto ao outro, a tolerncia
e como exercer plenamente a prpria cidadania, que gerencio
o maior Banco
de Dados sobre Violncia Criminalizada do pas onde so
registrados com atualizao diria todos os crimes de homicdio
cometidos no Rio Grande do Norte desde 1992 at hoje, com informaes
completas sobre a vtima, o acusado e o crime e que este banco
de dados no s serve para fornecer estatsticas sobre a natureza
a as caractersticas do crime no Estado mas tambm a desmotrao
concreta que a violncia criminosa condenada e considerada
violao dos direitos humanos.
Com
certeza, voc est esperando de mim que diga que verdade que
o "bandido" quando comete um crime o primeiro violador
e que, de fato, ns condenamos todo tipo de crime cometido por
qualquer pessoa mesmo se a mdia no o diz e que s no estamos
nos velrios de qualquer vtima de violncia porque o papel
dos movimentos de defesa dos direitos humanos monitorar o
comportamento das organizaes (pblicas e privadas) e impossvel
se ocupar de cada violao de individuos isolados contra outros
individuos isolados.
Com
certeza, meu caro alienado e minha cara alienada, vocs esto
esperando de mim tudo isso... mas, sabem como ?, do que vocs
esperam de mim no me importa absolutamente nada. E sabem porque?
Porque vocs esto esperando que eu olhe o mundo com os seus
valores, que adote nos meus juzos as suas categorias, que "me
defenda" na frente do tribunal da sua tica hipcrita apelando
s suas leis e (pre)conceitos. Vocs querem que eu fale a sua
mesma linguagem (afinal, o que o "pensamento nico"
seno a uniformao global das linguagens, posto que so elas
que veiculam e contruem as vises do mundo?), e a diferena
entre eu e vocs est justamente ai.
No me interessa nem quero falar a sua lngua, o que quero
analiz-la. Vocs dizem que eu defendo "bandidos",
uma palavra que no Brasil tem um poder quase mgico e carregada
de uma irreversibilidade implacvel: uma vez identificada com
este rtulo, uma pessoa vira escria de maneira permanente,
no ter nunca mais salvao.
Basta
dizer " bandido" e qualquer coisa que lhe acontea
perde automaticamente a gravidade e importncia, pois atinge
ao lixo, merda da sociedade. No importam as causas que levaram
quela pessoa a cometer, em um determinado momento da sua vida,
algum tipo de crime, no importa de onde ela vem, onde nasceu
e viveu a sua vida toda, no importa sequer que uma pessoa:
uma vez que classificada de "bandido", vira podre
contra o qual tudo permitido, nada inissvel, a vida
dela vale menos do que a de um cachorro de uma madame qualquer
de um bairro residencial qualquer.
Imaginemos
qualquer cara que nasceu em qualquer barraco de madeira sem
gua nem servios elementares margem de qualquer esgoto a
ceu aberto de qualquer periferia do Brasil, oitavo, nono, dcimo,
etc. filho de uma famlia miservel que no pde alimentar ele
direto durante a sua infncia e que por isso cresceu com doenas
permanentes, que ou a infncia brincando semi-nu entre ratos,
escorpies, aranhas caranguejeiras e cobras, que no terminou
o primeiro grau porque teve que ir trabalhar com 10 anos para
ganhar menos de um salrio mnimo, a quem nunca deram a oportunidade
de trabalhar em algo que no fosse sem carteira assinada, sem
direitos e por um salrio mnimo que no permite ter plano de
sade (portanto, deixa voc morrer na fila por uma U.T.I. se
algum dia precisar, porque no Brasil a sade no um direito
universal mas uma mercadoria que se compra e se vende, vel
s a quem tem condies socio-econmicas para adquir-la), no
permite ter uma moradia digna deste nome, fazer estudar os prprios
filhos e s vezes nem sequer comer algo todo dia, a quem nunca
ofereceram outra sada sordidez da sua existncia alm do
crack (na pior das hipteses) ou a cachaa (na melhor) e que
um dia, bbado, chega em "casa" (se que se pode
chamar assim um barraco sem nada) e - no tendo nunca conhecido
outra cultura alm da machista e violenta do mundo em que nasceu,
tendo ado a vida inteira fodido e sem educao - estupra
esposa dele porque esta se recusa a transar.
Sem
sombra de dvida, este cara comete um crime, um dos mais graves:
o de estupro. Sem sombra de dvida, uma grave violao dos
direitos humanos contra uma vtima inocente (vtimas duas vezes:
por ser pobre e por ser mulher). Agora, para vocs, caras alienadas
e caros alienados, esta pessoa automaticamente assume o rtulo
de "estuprador", que remete ao mais geral de "bandido".
Bem,
meus queridos, com certeza estaro achando que agora vou dizer
que mesmo sendo bandido este cara tem direitos e no devem ser
violados. Esto errados. Sabem porque? Porque este cara, este
cara que um dia estuprou a sua mulher, no um bandido: esta
cara uma vtima.
Sim,
alienadas e alienados, esta escria, esta bosta repudiante de
cujo destino vocs se lixam (como se lixaram a vida toda do
tipo de existncia que a sociedade que vocs construiram o obrigou
a viver) e que para vocs pode ser torturado, espancado, humilhado
ou at mesmo assassinado sem que isto signifique nada (de repente
at uma alvio, um "bandido" a menos), este ser
uma vtima... porque, desde o dia em que nasceu at o momento
em que comete seu crime e tambm depois, at a sua morte, seus
direitos mais elementares, sua dignidade de ser humano so sistematicamente,
brutalmente, criminosamente violados, pisados, ultrajados.
"Bandidos"
so as instituies financeiras internacionais que cobram juros
criminosos impedindo ao Governo usar seus recursos para combater
a fome e a excluso social, so as multinacionais que exploram
nossa mo de obra levando seus lucros s Bolsas de valores ao
invs que s favelas, expoliam nossas florestas e roubam a sua
biodiversidade que patrimnio da humanidade...
...
"bandidos" so as elites urbanas e rurais brasileiras
que concetram a riqueza e a propriedade da terra exclundo milhes
de pessoas para pod-las explorar...
..."bandidos"
so a classe mdia que paga salrios mnimos s empregadas e
s faxineiras, as universidades que excluem os pobres atravs
dos vestibulares, as foras de segurana que torturam e assassinam
a quem no tem nenhum poder econmico, poltico e social...
..."bandidos"
so aqueles que aceitam como normal que a sade e a educao
sejam uma mercadoria, um privilgio de quem tem condies para
compr-las e no fazem nada para mudar esta situao, so aqueles
que ficam na frente da televiso arremetendo contra quem defende
os direitos humanos, contra os Sem Terra e todos os movimentos
sociais e que com seus comportamentos, idias e atitudes contribuem
todo dia a reproduzir as injustias sociais existentes...
..."bandidos"
so aqueles que afirmam que quem trabalha duro (que importa
em que condies?) pode emergir socialmente, que tem negros
e pobres que conseguiram ar s universidades e que por
isso s questo de deixar pra l o comodismo, que os pobres
so tais por sua prpria responsabilidade (que pas o Brasil:
mais de 50 milhes de vadios!) e desta maneira justificam sua
indiferena, seu racismo, sua ignorncia e sua responsabilidade
na desigualdade social...
..."bandidos"
so aqueles que afirmam que afinal de contas os que sofrem tortura
policial cometeram com suas vtimas as mesmas atrocidades demostrando,
alm de uma mentalidade intrinsecamente fascista, uma enorme
burrice j que a gradissssima maioria dos torturados nas delegacias,
nas cadeias, nas favelas e em outros mbitos so autores ou
suspeitos de pequenos crimes (bater carteiras, assaltos de rua,
etc.) infinitamente inferiores, quanto gravidade, tortura,
sem contar que esta ltima praticada de maneira generalizada
para extorquir confisses foradas a pessoas que nunca cometeram
delito nenhum e so presas s por ser negros, meninos de rua
ou pobres em geral...
Pois
, meus caros alienados e minhas caras alienadas, vocs so
responsveis diretos ou no mnimo cmplices das gravssimas
violaes dos direitos mais elementares da pessoa humana que
acontecem todo dia no Brasil, desde as maiores (a excluso,
a misria, a desigualdade) s suas conseqncias (a violncia,
a tortura, os matadores, os grupos de extermnio, etc.).
Portanto,
senhores alienados e senhoras alienadas, se eu defendesse bandidos
estaria defendendo VOCS, no as suas vtimas!
Atenciosamente,
Antonino Condorelli - Diretor de Tecido
Social
Veja
tambm:
- Tribunal Internacional condena os crimes do latifndio
no Par
- DENNCIA.
Juiz protege policiais militares autores de tortura contra um
menor em Tocantins
<
Voltar
|