Projeto DHnet
Ponto de Cultura
Podcasts
Direitos Humanos
Desejos Humanos
Educao EDH
Cibercidadania
Memria Histrica
Arte e Cultura
Central de Denncias
Banco de Dados
MNDH Brasil
ONGs Direitos Humanos
ABC Militantes DH
Rede Mercosul
Rede Brasil DH
Redes Estaduais
Rede Estadual RN
Mundo Comisses
Brasil Nunca Mais
Brasil Comisses
Estados Comisses
Comits Verdade BR
Comit Verdade RN
Rede Lusfona
Rede Cabo Verde
Rede Guin-Bissau
Rede Moambique
Espanhol
Italiano
Ingls

Tecido Social Correio Eletrnico da Rede Estadual de Direitos Humanos - RN N. 005 – 31/10/03 61664e

"Que a caneta seja tambm uma espada"

Subcomandante Marcos (traduo de Antonino Condorelli)

Bom dia, boa tarde, boa noite. Meu nome Marcos, subcomandante insurgente Marcos. Fui convidado ao Frum em defesa da humanidade para dizer umas palavras. Agradeo o convite, mas preciso avisar-lhes que sou um soldado, um soldado do Ejrcito Zapatista de Liberacin Nacional. Aviso isso porque, segundo o que me disseram, compartilharei minha palavra com intelectuais e lderes polticos e sociais. Por isso talvez minha voz soe discordante e fora do lugar. Ou no, talvez haja, no que vou dizer, pontes e coincidncias. s vezes acontece que a caneta e a espada coincidem.

Talvez coincidamos na inquietao por um debate necessrio e uma troca de idias que ajudem a esclarecer um pouco este confuso e desordenado horizonte que alguns chamam de histria contempornea e que, s vezes, faz do trivial e grotesco assunto de interesse e escndalo mundial; e outras vezes faz do terrvel e aberrante algo que, por tanto se repetir, torna-se um som montono e desapercebido.

Mencionarei algumas anotaes apressadas sobre a globalizao e o neoliberalismo, ou melhor, sobre o que ns alcanamos a perceber (e sofrer) deles, e sobre as resistncias em geral e nossa resistncia particular.

Como para se esperar, em estas anotaes reinam o esquematismo e a reduo, mas acredito que tm condio de desenhar uma ou muitas linhas de discusso, dilogo e reflexo. Ou, melhor ainda, de memria e vergonha.

(...)

PRIMEIRO. Se na poltica antiga (ou seja, desde a Atenas grega at as repblicas modernas) o Estado era a "me" do individuo e o seio no qual se gerava, crescia e se reproduzia a sociedade, no mundo globalizado o Estado j no pode cumprir esta funo. O individuo j no tem porque se referir a uma ptria, uma cultura, uma raa ou uma lngua. O ventre materno agora esta megaesfera que alguns ainda chamam de "planeta terra". O "cidado" j no o membro da polis, mas o navegante da megapolis, portanto necessita de "outros" conhecimentos e habilidades que o Estado nacional no pode lhe oferecer.

SEGUNDO. Da mesma maneira, os "homens de Estado", estes super-homens autores de citaes clssicas, guerras, imprios, leis e represses, j no existem como tais. Aquele velho "treinamento" interno que existia nas classes polticas para preparar os seus membros para substituir-se uns aos outros obsoleto, as habilidades da poltica clssica (oratria, liderana, sensibilidade, temperana, conhecimentos histricos, filosofia, jurisprudncia, relacionamento adequado) parecem agora mais prprias das saudades circenses. O protocolo do poder, esta complexa mistura de sinais e atitudes, j no se aprende nem se exerce no Estado.

TERCEIRO. O Estado nacional tende a no ser mais o encarregado da reproduo dos homens (entendendo "reproduo" em seu sentido mais amplo, ou seja, as condies econmicas, polticas, culturais e sociais para a sua reproduo social), mas o o que contm as desordens desta reproduo. O megapoder, esta entidade da qual se sabe to pouco, agora impe uma reproduo mais importante: a do dinheiro.

QUARTO. A luta contra a globalizao do poder (e contra seu e ideolgico: o neoliberalismo) no exclusiva de um pensamento ou uma bandeira poltica ou de um territrio geogrfico, uma questo de sobrevivncia humana. Assim como na Segunda Guerra Mundial uma multido de foras resistiu e lutou contra o fascismo, agora so muitas as foras que resistem e lutam contra o neoliberalismo.

QUINTO. Nos Estados nacionais o processo da dupla globalizao-neoliberalismo produz um fenmeno de resistncia que, de forma cada vez mais acentuada, incorpora a amplos setores da populao SEM QUE SEJA PRIMORDIAL SUA CLASSE SOCIAL OU O LUGAR QUE OCUPAM NO PROCESSO DE REPRODUO DO CAPITAL.

SEXTO. Aparecem, por exemplo, grupos desconcertantes (de fato, a teoria tinha decretado seu desaparecimento ou sua "absoro" pelos que esto encima): por um lado, indgenas que falam lnguas incompreensveis (ou seja, imprestveis para trocar mercadorias) e que desafiam com armas de pau a helicpteros, tanques, avies, metralhadoras, bombas; por outro lado, jovens desempregados (os "lumpen" que, segundo o que manda a teoria, deveriam estar engrossando as filas dos aparelhos repressivos do Estado) se mobilizando contra o governo e exigindo respeito sua maneira; ou, mais alm, homossexuais, lsbicas e transexuais pretendendo reconhecimento da sua diferena.

STIMO. Estes fenmenos de resistncia ("bolsas de resistncia" as chamamos ns para op-las s "outras" bolsas, s de valores) tendem a procurar comunicao com fenmenos semelhantes em outras partes do mundo. As superestradas da informao, concebidas para facilitar o fluxo de mercadorias e dinheiro, comeam a ver (no sem pavor) que so transitadas por velhas carretas, animais de carga e pedestres que no trocam mercadorias e capitais, mas algo muito perigoso: experincias, apoios mtuos, HISTRIAS.

Claro que estou falando do que h na mo: nossa guerra, nossas armas, nossa histria. Mas tem outros exemplos que nos falam de uma nova emergncia, de algo novo que irrompe aqui e acol e que no acabamos nem de dirigir nem de entender, em parte porque somos um fragmento destes fenmenos, em parte pelo carter precipitado dos acontecimentos, em parte porque o presente o pior lugar para se pensar o hoje, em parte porque ainda tem muitas coisas para se definir.

Mas algo comea a ficar cada vez mais claro: no verdade que ns perdemos e, sobretudo, no verdade que eles ganharam. A histria que conta, a que fazemos ns homens e mulheres, tem ainda muitas linhas a se tecer e no acaba se adivinhando sequer o desenho nem a cor deste gigantesco tapete que a humanidade haver de ter. Ns, e conosco muitos como ns, j sabemos que, em qualquer caso, a cor no o cinza que agora impem, nem o desenho somente dor e morte. H tambm muitas outras cores. E h tambm muita esperana.

No s: se o planeta tem feridas abertas e sangrentas na sua redonda geografia, nomeando-as no as sanamos, verdade, mas fazemos um gesto de humanidade que s vezes parece perdido.

(...)

Nomeemos qualquer canto do planeta e sejamos perseguidos junto com homossexuais, lsbicas e transexuais; resistamos com as mulheres ao imposto destino de decorao idiota; resistamos com os jovens mquina trituradora de inconformismos e rebeldias; resistamos com operrios e camponeses ao mecanismo sangrento que, na alquimia neoliberal, converte mortes em dlares; caminhemos ao o dos indgenas da Amrica Latina e com seus ps faamos o mundo redondo para que gire.

Nomeemos aos que no tm nome. Olhemos para os que no tm rosto.

Nomeemos e olhemos para o mundo que no existe agora, mas que comear a existir em nossas palavras e nossos olhares.

Nomeemos, pois, as dores da humanidade. No s porque so tambm nossas dores. Tambm porque, as nomeando, nos tornamos um pouco mais humanos. Porque diante destas feridas o silncio renncia, rendio, claudicao, morte.

Se h quem fez da caneta uma espada, que cintile no ar com seu brilho, que assinalando nossas feridas se enobrea, que nos nomeando nos torne partes de um quebra-cabea que amanh ser um mundo onde no faltaro memria nem vergonha.

Porque as duas, a memria e a vergonha, so o que nos fazem seres humanos.

No sejamos os alcagetes da nossa histria, da nossa conscincia, os traidores da palavra que levantamos ontem e que hoje nos convoca para ser afiada e unida na memria e na vergonha.

Valeu. Sade e que a caneta seja tambm uma espada, e que seu fio corte o muro escuro pelo qual haver de se colar o amanh.

Desde as montanhas do sudeste mexicano.

Subcomandante Insurgente Marcos

Fonte: La Jornada do 26/10/03

< Voltar

Desde 1995 dhnet-br.informativomineiro.com Copyleft - Telefones: 055 84 3211.5428 e 9977.8702 WhatsApp
Skype:direitoshumanos Email: [email protected] Facebook: DHnetDh
Busca DHnet Google
Not
Loja DHnet
DHnet 18 anos - 1995-2013
Linha do Tempo
Sistemas Internacionais de Direitos Humanos
Sistema Nacional de Direitos Humanos
Sistemas Estaduais de Direitos Humanos
Sistemas Municipais de Direitos Humanos
Hist
MNDH
Militantes Brasileiros de Direitos Humanos
Projeto Brasil Nunca Mais
Direito a Mem
Banco de Dados  Base de Dados Direitos Humanos
Tecido Cultural Ponto de Cultura Rio Grande do Norte
1935 Multim