Tecido
Social
Correio Eletrnico da Rede Estadual de Direitos Humanos
- RN
N.
005 – 31/10/03 61664e
"Que a caneta seja tambm uma espada"
Subcomandante
Marcos (traduo de Antonino
Condorelli)
Bom
dia, boa tarde, boa
noite. Meu nome Marcos, subcomandante insurgente Marcos.
Fui convidado ao Frum em defesa da humanidade para dizer umas
palavras. Agradeo o convite, mas preciso avisar-lhes que sou
um soldado, um soldado do Ejrcito Zapatista de Liberacin
Nacional. Aviso isso porque, segundo o que me disseram,
compartilharei minha palavra com intelectuais e lderes polticos
e sociais. Por isso talvez minha voz soe discordante e fora
do lugar. Ou no, talvez haja, no que vou dizer, pontes e coincidncias.
s vezes acontece que a caneta e a espada coincidem.
Talvez
coincidamos na inquietao por um debate necessrio e uma troca
de idias que ajudem a esclarecer um pouco este confuso e desordenado
horizonte que alguns chamam de histria contempornea e que,
s vezes, faz do trivial e grotesco assunto de interesse e escndalo
mundial; e outras vezes faz do terrvel e aberrante algo que, por tanto se repetir, torna-se
um som montono e desapercebido.
Mencionarei
algumas anotaes apressadas sobre a globalizao e o neoliberalismo,
ou melhor, sobre o que ns alcanamos a perceber (e sofrer)
deles, e sobre as resistncias em geral e nossa resistncia
particular.
Como
para se esperar, em estas anotaes reinam o esquematismo
e a reduo, mas acredito que tm condio de desenhar uma ou
muitas linhas de discusso, dilogo e reflexo. Ou, melhor ainda,
de memria e vergonha.
(...)
PRIMEIRO.
Se na poltica antiga (ou seja, desde a Atenas grega at as
repblicas modernas) o Estado era a "me" do individuo
e o seio no qual se gerava, crescia e se reproduzia a sociedade,
no mundo globalizado o Estado j no pode cumprir esta funo.
O individuo j no tem porque se referir a uma ptria, uma cultura,
uma raa ou uma lngua. O ventre materno agora esta megaesfera
que alguns ainda chamam de "planeta terra". O "cidado"
j no o membro da polis, mas o navegante da megapolis, portanto
necessita de "outros" conhecimentos e habilidades
que o Estado nacional no pode lhe oferecer.
SEGUNDO.
Da mesma maneira, os "homens de Estado", estes super-homens
autores de citaes clssicas, guerras, imprios, leis e represses,
j no existem como tais. Aquele velho "treinamento"
interno que existia nas classes polticas para preparar os seus
membros para substituir-se uns aos
outros obsoleto, as habilidades da poltica clssica (oratria,
liderana, sensibilidade, temperana, conhecimentos histricos,
filosofia, jurisprudncia, relacionamento adequado) parecem
agora mais prprias das saudades circenses. O protocolo do poder,
esta complexa mistura de sinais e atitudes, j no se aprende
nem se exerce no Estado.
TERCEIRO.
O Estado nacional tende a no ser mais o encarregado da reproduo
dos homens (entendendo "reproduo" em seu sentido
mais amplo, ou seja, as condies econmicas, polticas, culturais
e sociais para a sua reproduo social), mas o
o que contm as desordens desta reproduo. O megapoder, esta
entidade da qual se sabe to pouco, agora impe uma reproduo
mais importante: a do dinheiro.
QUARTO.
A luta contra a globalizao do poder (e contra seu e
ideolgico: o neoliberalismo) no exclusiva de um pensamento
ou uma bandeira poltica ou de um territrio geogrfico, uma
questo de sobrevivncia humana. Assim como na Segunda Guerra
Mundial uma multido de foras resistiu e lutou contra o fascismo,
agora so muitas as foras que resistem e lutam contra o neoliberalismo.
QUINTO.
Nos Estados nacionais o processo da dupla globalizao-neoliberalismo
produz um fenmeno de resistncia que, de forma cada vez mais
acentuada, incorpora a amplos setores da populao SEM QUE SEJA
PRIMORDIAL SUA CLASSE SOCIAL OU O LUGAR QUE OCUPAM NO PROCESSO
DE REPRODUO DO CAPITAL.
SEXTO.
Aparecem, por exemplo, grupos desconcertantes (de fato, a teoria
tinha decretado seu desaparecimento ou sua "absoro"
pelos que esto encima): por um lado, indgenas que falam lnguas
incompreensveis (ou seja, imprestveis para trocar mercadorias)
e que desafiam com armas de pau a helicpteros, tanques, avies,
metralhadoras, bombas; por outro lado, jovens desempregados
(os "lumpen" que, segundo o que manda a teoria, deveriam
estar engrossando as filas dos aparelhos repressivos do Estado)
se mobilizando contra o governo e exigindo respeito sua maneira;
ou, mais alm, homossexuais, lsbicas e transexuais pretendendo
reconhecimento da sua diferena.
STIMO.
Estes fenmenos de resistncia ("bolsas de resistncia"
as chamamos ns para op-las s "outras" bolsas, s
de valores) tendem a procurar comunicao com fenmenos semelhantes
em outras partes do mundo. As superestradas da informao, concebidas
para facilitar o fluxo de mercadorias e dinheiro, comeam a
ver (no sem pavor) que so transitadas por velhas carretas,
animais de carga e pedestres que no trocam mercadorias e capitais,
mas algo muito perigoso: experincias, apoios mtuos, HISTRIAS.
Claro
que estou falando do que h na mo: nossa guerra, nossas armas,
nossa histria. Mas tem outros exemplos que nos falam de uma
nova emergncia, de algo novo que irrompe aqui e acol e que
no acabamos nem de dirigir nem de entender, em parte porque
somos um fragmento destes fenmenos, em parte pelo carter precipitado
dos acontecimentos, em parte porque o presente o pior lugar
para se pensar o hoje, em parte porque ainda tem muitas coisas
para se definir.
Mas
algo comea a ficar cada vez mais claro: no verdade que ns
perdemos e, sobretudo, no verdade que eles ganharam. A histria
que conta, a que fazemos ns homens e mulheres, tem ainda muitas
linhas a se tecer e no acaba se adivinhando sequer o desenho
nem a cor deste gigantesco tapete que a humanidade haver de
ter. Ns, e conosco muitos como ns, j sabemos que, em qualquer
caso, a cor no o cinza que agora impem, nem o desenho
somente dor e morte. H tambm muitas outras cores. E h tambm
muita esperana.
No
s: se o planeta tem feridas abertas e sangrentas na sua redonda
geografia, nomeando-as no as sanamos, verdade, mas fazemos
um gesto de humanidade que s vezes parece perdido.
(...)
Nomeemos
qualquer canto do planeta e sejamos perseguidos junto com homossexuais,
lsbicas e transexuais; resistamos com as mulheres ao imposto
destino de decorao idiota; resistamos com os jovens mquina
trituradora de inconformismos e rebeldias; resistamos com operrios
e camponeses ao mecanismo sangrento que, na alquimia neoliberal,
converte mortes em dlares; caminhemos ao o dos indgenas
da Amrica Latina e com seus ps faamos o mundo redondo para
que gire.
Nomeemos
aos que no tm nome. Olhemos para os que no tm rosto.
Nomeemos
e olhemos para o mundo que no existe agora, mas que comear
a existir em nossas palavras e nossos olhares.
Nomeemos,
pois, as dores da humanidade. No s porque so tambm nossas
dores. Tambm porque, as nomeando, nos tornamos um pouco mais
humanos. Porque diante destas feridas o silncio renncia,
rendio, claudicao, morte.
Se
h quem fez da caneta uma espada, que cintile no ar com seu
brilho, que assinalando nossas feridas se enobrea, que nos
nomeando nos torne partes de um quebra-cabea que amanh ser
um mundo onde no faltaro memria nem vergonha.
Porque
as duas, a memria e a vergonha, so
o que nos fazem seres humanos.
No
sejamos os alcagetes da nossa histria, da nossa conscincia,
os traidores da palavra que levantamos ontem e que hoje nos
convoca para ser afiada e unida na memria e na vergonha.
Valeu.
Sade e que a caneta seja tambm uma espada, e que seu fio corte
o muro escuro pelo qual haver de se colar o amanh.
Desde
as montanhas do sudeste mexicano.
Subcomandante
Insurgente Marcos
Fonte:
La Jornada do 26/10/03
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