Nos 60 anos do golpe militar, anotaes de advogada viram livro e inspiram monlogo de Andrea Beltro
Nos 60 anos do golpe militar, anotaes de advogada viram livro e inspiram monlogo de Andrea Beltro.
Em 2 de abril de 1964, militares amarraram Gregrio Bezerra traseira de um jipe e o arrastaram seminu pelas ruas do Recife. Preso nas primeiras horas do golpe, o ex-deputado foi espancado e exibido como um trofu do novo regime. A brutalidade chocou a jovem advogada Mrcia Albuquerque, que presenciou a covardia contra o velho comunista.
“Gregrio, apenas com um calo preto e uma corda de trs pontas amarrada no pescoo, era arrastado por soldados, seguidos de perto por um carro de combate, com ps que haviam sido banhados em soda custica, sangrando”, registrou Mrcia. Naquele dia, ela tomou uma deciso: abandonaria o emprego para defender presos polticos.
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A advogada virou referncia para vtimas do arbtrio em todo o Nordeste. Denunciou torturas, peitou coronis, ajudou a localizar desaparecidos vivos e mortos. Para aguentar o tranco, despejou suas angstias e num dirio secreto, recm-publicado pela Editora Potiguariana. O livro inspira “Lady Tempestade”, monlogo de Andrea Beltro que tem lotado todas as sesses no Teatro Poeira.
“As prises continuam indiscriminadamente, revestidas de imensa violncia”, escreve Mrcia, em outubro de 1973. “O pnico domina o Recife, um terror envolve as universidades. As famlias intranquilas, sem segurana”, prossegue, dias depois. “No sei at quando vai durar essa chacina”, desespera-se, no ms seguinte.
O leitor acompanha a advogada em peregrinao por cadeias, hospitais e necrotrios. Testemunha sua revolta com os maus-tratos aos presos, que recebiam comida podre e tinham pertences roubados pelos carcereiros. “O DOI um lugar horrvel”, anota. “Os percevejos infestam as celas, o mau cheiro terrvel, restos de fezes, sangue, vmitos dentro da cela”.
Mrcia narra o calvrio de “homens transformados em bagaos” em ambientes que compara a campos de concentrao. “Presos submetidos a tortura medieval, cortes provocados com tesoura e ponta de faca, queimaduras com cigarros, pau de arara, cadeira do drago”, enumera.
Ela descreve os torturadores como seres necrfilos, que “vibram com a morte” e “explicam os atos anormais como amor ptria”. Num momento de alvio cmico, reproduz dilogo com o diretor da cadeia de Itamarac. “Dr. Ednaldo me disse que mais lhe di a morte de um cavalo do que a de um preso poltico. Ao que repliquei: ‘Faz muito bem em defender sua espcie. Eu defendo a minha, os homens’”.
A altivez lhe traria problemas com a represso. Mesmo sem se envolver com a poltica, ela foi presa 12 vezes. Numa, foi ameaada com revlver na cabea. Em outra, arremessada para fora de uma viatura. “No me arrependo de nada”, escreve a advogada, que morreria em 2003.
Entre testemunhos de coragem, o dirio tambm revela agens de fraqueza e desespero. “Desejo ficar s para chorar, sinto uma tristeza imensa e me perco no escuro da minha amargura, da minha descrena em tudo”, anota. Com a sade fragilizada, ela ouve do mdico que s conseguir engravidar se parar de trabalhar. “Luto pelos filhos dos outros, entram em minha vida, amarguram-me a existncia e ainda me privam de ter filhos”, ironiza.
s vsperas dos 60 anos do golpe, o resgate de Mrcia joga nova luz sobre a atuao de advogados que resistiram ditadura. “Nunca deixei de ajudar quem me procura”, orgulha-se a pernambucana, em novembro de 1973. “Levei a paz, devolvi filhos a pais, dei a alegria antes do Natal a cinco lares”, festeja, ao registrar a libertao de cinco clientes no ms seguinte.
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