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Presente, ado e futuro em cena com Lady Tempestade e Macacos

Marcos Antnio Alexandre, Faculdade de Letras – UFMG/CNPq


Aradim me surpreendeu com a seguinte afirmativa: “Mame, o pior bicho o bicho homem”. Imaginei o porqu da afirmativa: “Porque como os outros bichos, ataca e mata”. Ponderei que os outros animais tambm atacam os homens, ao que retrucou. “, mas s quando o homem vai na casa deles. Ento eles se defendem; eu no gosto de ser homem. Refleti sobre o dilogo de uma criana de sete anos que j se apercebe da ferocidade da pessoa humana. (Mrcia Albuquerque, 2023. p. 24)


Ns no podemos ser todos iguais perante o futuro quando ns percebemos que no sabemos de nossa histria. Ns no podemos ser todos iguais perante o futuro quando estamos ainda pedindo por segurana pblica. […] Ns no podemos ser todos iguais perante o futuro quando a educao surge no pas excluindo parte da populao. […] Ns no podemos ser todos iguais perante o futuro quanto no teatro, que tem cerca de 7 mil anos, ainda assusta quando negro encontra sua expresso na arte. (Clayton Nascimento, 2022, p. 54)

No ltimo final de semana de janeiro, fui ao Rio de Janeiro para assistir a duas peas que convocaram meus interesses de uma forma avassaladora devido aos temas que so discutidos por meio delas e que me tocam profundamente. A primeira, Lady Tempestade, envolve-me por causa das reflexes que so suscitadas em relao s agruras vivenciadas por milhares de sujeitos que sofreram o jugo da ditatura brasileira e isso me levou a retomar minha pesquisa de doutorado defendida em 2004 e que versava sobre o teatro de Plnio Marcos e Juan Radrign[1]. Por outro lado, tambm sou enredado por esse trabalho pela questo afetiva, por se tratar de uma pea dirigida pela querida Yara de Novaes, a quem tanto iro e de quem sou f, e tambm por contar com dramaturgia da talentosa Silvia Gomez. A outra pea, Macacos, aciona meus interesses no que concerne s poticas pretas, tema que impulsiona minhas pesquisas, e, principalmente, por se tratar de uma proposta que ansiei tanto assisti-la desde o momento em que tive conhecimento de sua existncia, de forma tardia, em 2021; quando tive notcias das apresentaes do solo de Clayton Nascimento, trabalho que j vinha sendo apresentado desde 2015-2016 e cujo texto tem sido atualizado ano aps ano.


Assistir a Lady Tempestade com Andrea Beltro uma experincia intensa e inesquecvel. Em cena, a atriz divide o palco com seu filho Chico BF e juntos dividem com o pblico a histria de Mrcia Albuquerque Ferreira (1934-2003), advogada nascida em Jaboato dos Guararapes, Pernambuco, e reconhecida nacionalmente como a “maior defensora de presos polticos do Nordeste”. A pea nos apresenta Mrcia como mulher forte, aguerrida e que dedicou grande parte de sua vida militncia poltica, lutando em prol de salvar vidas e defender pessoas que foram detidas arbitrariamente por prises injustias cometidas pelas mos da ditadura brasileira.


O espetculo Lady Tempestade pode ser lido como uma ao performativa extremamente bem lograda, cujos resultados extrapolam o palco fazendo que a pea cumpra com a funo de no permitir que a memria caia no esquecimento. Recordando o fato consolidado de que a opo do Brasil tem sido, atravs dos tempos, pelo apagamento das memrias relacionadas aos perodos de exceo pelos quais o pas ou e cujas aes vis e insanas foram responsveis pela vitimizao de milhares de pessoas, com sua pea, Andrea Beltro diz um potente NO ao silenciamento que tende ser imposto s pessoas que desafiam os sistemas polticos nefastos. H que se destacar o fato de que os verdadeiros nmeros de mortos e desaparecidos nunca foram devidamente esclarecidos pelas Comisses da Verdade e o assunto “ditadura” ainda pouco discutido com profundidade, principalmente, entre os jovens e nas instituies de ensino.
O xito da montagem consolidado a partir do encontro e do envolvimento das trs mulheres responsveis pela criao do espetculo: Andrea Beltro, Slvia Gomez e Yara de Novaes. Ainda que a interpretao de Beltro se sobressaia no palco, no h como ar desapercebidas as presenas de Silvinha e Yara. Chama-me ateno, a sensibilidade de Silvia Gomez na (re)construo dramatrgica da pea. Como espectador inquieto e interessado em ler e fazer fluir as peas para alm da dramaturgia e das cenas, eu me fiz alguns autoquestionamentos: como “transformar” as memrias de Mrcia Albuquerque em cenas performativas? Que momentos da vida da autora foram eleitos para serem includos na dramaturgia? Quais limiares da vida e da arte, da personagem e das artistas so envolvidos e mesclados no processo espetacular? Como friccionar histria e memria com o contemporneo que nos habita?. Nas palavras da dramaturga, “[e]sta uma pea sobre ela, mas no se trata de sua biografia ou da reproduo literal de sua vida, e sim de uma inveno, uma fico tendo como material principal o dilogo livre com os dirios produzidos por ela sobretudo nos anos de 1973 e 1974…” (Programa, 2024). A perspiccia do olhar dramatrgico de Silvia Gomez estabelece uma comunho precisa com a mirada esttica de Yara e Beltro. Coube a Silvinha, encontrar as “melhores” palavras do dirio de Mrcia Albuquerque para serem vertidas em aes e momentos dramticos a fim de serem incorporados ao corpo, voz e sensibilidade afetiva e intuitiva de Andrea Beltro. O que visto no palco do teatro Poeira so palavras que tomam forma, potncia e sentido e so convertidas em cena; so palavras, inclusive as rasuradas e riscadas do dirio, que, como a memria que tambm se constitui de forma rasurada e fragmentada, so compartilhadas com o pblico, evocando emoes distintas, destacando os momentos de embates, frustraes, dvidas, ou melhor, os fluxos das sensaes vivenciadas no cotidiano da advogada/personagem; so palavras que se convertem em pulses polticas acima de tudo.


A direo de Yara impecvel e de uma sutileza sui generis. Como uma encenadora devidamente antenada a seu tempo, Yara retoma o conhecimento que possui sobre Mrcia Albuquerque, aproveitando-se de outras experincias que ela vivenciou como atriz de quando integrou o elenco do filme Z, de Rafael Conde[2], e, tambm, de pesquisas realizadas que a levaram ao conhecimento dos dirios da advogada, que se convertem no processo de experimentao espetacular e dramatrgica que levado para as cenas, dando um vis histrico e sociopoltico para a pea, mas sem deixar de explorar as nuances afetivas e crticas que eram peculiares cidad, Mrcia Albuquerque Ferreira.

Andra Beltro est plena em cena. Com uma interpretao envolvente e sensvel, a atriz conduz o espectador para ir tomando cincia dos fatos que integraram a vida e o dirio de Mrcia Albuquerque. O texto, na voz e na partitura fsica da atriz, ganha nuances que afetam o espectador em vrios lugares, proporcionando uma incurso no tempo e espao, ando as memrias da advogada, seus feitos, mas tambm suas angstias, momentos de revolta, tudo isso mediado por um veio crtico e uma ironia perspicaz que d, inclusive, alguns momentos de humor e leveza montagem, quando, por exemplo, a atriz dirige nomes no convencionais aos seus opositores – gafanhotos, ignorantes, sujos –, com o propsito de “insultar” aqueles contra os quais lutava cotidianamente. interessante observar a cumplicidade da atriz com o seu filho Chico durante a apresentao. A troca que acontece no palco maior que uma simples estratgia de direo que priorizou esteticamente por realizar a execuo e operao da trilha sonora diante da presena do pblico. H uma relao de sintonia entre a atriz e ator – Beltro/Chico, me/filho, Mrcia/Aradin –, muito rica de ser presenciada, criando uma linha muito tnue em que as palavras, aes e partituras fsicas dizem para alm do palco.


No dirio de Mrcia Albuquerque Ferreira, numa ocorrncia do dia 31 de dezembro de 1973, ela descreve:
O ano terminou, o tempo ou, e eu, como Carolina de Chico Buarque, no vi o tempo ar. Eu no vi o tempo ar, empenhada na luta pela liberdade, pela paz dos que me confiaram uma tarefa. Muita coisa deixou de ser feita, ou melhor, muitos objetivos no foram alcanados, mas continuarei tentando em 1974. (Ferreira, 2023, p. 69-70)


singular pensar em como memrias emergem do tempo e, por sua vez, em como o tempo aflora outras e novas memrias. As palavras de Mrcia denotam o seu af no ato contnuo de mudana e ensejo de dar continuidade misso de dar prosseguimento defesa de pessoas que necessitavam de seus quefazeres jurdicos. Por outro lado, em suas consideraes sobre a pea e sua construo espetacular, Yara comenta que “No foi premeditado, mas simblico como este espetculo encontrou seu tempo para estrear neste ano, 2024, marca de 60 anos do golpe de 1964.” (Programa, 2024). Nada na montagem, sob a batuta de Yara, aleatrio. O dirio de Mrcia Albuquerque trazido para as cenas do espetculo de forma concreta e, ao mesmo tempo, extremamente simblica levando a plateia a seguir cada ao que performatizada por Andrea Beltro, ora se envolvendo com as cenas, ora se distanciando das mesmas a partir do que elas provocam em cada pessoa presente.


A cena final surpreende. A atriz, num ato de rompante, comea a levantar os tapetes que cobrem o palco (o cho da casa, do apartamento): uma aluso abertura do dirio de Mrcia Albuquerque? Das memrias da advogada? Do cho, vo surgindo dezenas de folhas – pginas do dirio, fragmentos de textos, imagens de pessoas, rostos de pessoas desaparecidas – que vo sendo lanadas ao vento, como se as palavras/pensamentos/aes de Mrcia Albuquerque tivessem que, ou melhor, exigissem, sair daquele espao para ganhar outros espaos. Assim como o livro que lido e pode ser reado para outros leitores, aquelas folhas no podem findar ali, no palco do Teatro Poeira; elas, como a histria de Mrcia Albuquerque Ferreira urgem extrapolar a cena.


Lady Tempestade, de fato, provoca uma tormenta de emoes no espectador e foi essa sensao que pude vivenciar no dia 26 de fevereiro ao assistir apresentao que, ao final, contou com a presena de filhos e netos de pessoas desaparecidas pelo sistema ditatorial brasileiro. Eu, assim como todos os presentes, acredito, nos sentimos completamente arrebatados por termos tido a possibilidade de presenciar esse momento histrico na trajetria da encenao, que espero que tenha uma larga e intensa estrada a ser percorrida e que, principalmente, possa continuar tocando milhares de espectadores, levando a histria de vida de Mrcia Albuquerque Ferreira para inmeros espaos.


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