Andrea Beltro vive advogada de presos polticos na ditadura no monlogo “Lady Tempestade”
Montagem que estreia no Rio com direo de Yara de Novaes e texto de Silvia Gomez tira do obscurantismo a advogada pernambucana Mrcia Albuquerque
Uma cena violenta mudou radicalmente a trajetria da advogada pernambucanaMrcia Albuquerque: era 1964 e o regime militar recm imposto decretou a priso do militanteGregrio Bezerra. Em ato de barbrie extrema, ele foi arrastado pelas ruas do Recife por soldados que incitavam a populao a linch-lo.
Chocada com o que viu, Mrcia, recm-formada em Direito, chegou em casa e comunicou ao marido que iria defender aquele homem e quem mais precisasse.
“Essa mulher tomou uma atitude corajosa em um momento em que poucos se arriscavam”, comenta a atrizAndrea Beltro, que vive Mrcia no palco no monlogoLady Tempestade, que estreia no dia 4 de janeiro noTeatro Poeira, no Rio, espao criado e mantido por Andrea e sua amigaMarieta Severo. “Uma mulher, aparentemente comum, que salvou a vida de muita gente, e, mesmo com uma trajetria impressionante, sofreu forte apagamento.”
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Dar visibilidade a aes importantes demulheres que se apagam com o tempovem direcionando Andrea, que esteve frente de outro monlogo,Antgona, de Sfocles, em que a protagonista enfrenta a ordem do rei Creonte para deixar seu irmo, que lutou na guerra, insepulto – a pea at inspirou um livro,Antgona, Ela Est Entre Ns(Paz & Terra), sobre os bastidores da bem sucedida montagem dirigida porAmir Haddad.
A atriz Andrea Beltro em cena do monlogo Lady Tempestade. Foto Felipe Ovelha
A histria de Mrcia (1934-2003) chegou aYara de Novaes, diretora do monlogo, quando estava no Recife rodandoZ,filme de Rafael Conde sobre o militante mineiroJos Carlos Novais da Mata Machado, assassinado no DOI-CODI da capital pernambucana em 1973. Ali, soube da existncia de Mrcia, porque foi a advogada que conseguiu localizar o corpo da vtima, promover a exumao e a transferncia para Belo Horizonte.
Interessada na fascinante histria daquela mulher, Yara iniciou pesquisas e chegou aRoberto Monte, que dirige o Centro de Direitos Humanos e Memria Popular, no Rio Grande do Norte. Foi a ele que Octvio, marido da advogada, confiou os arquivos aps a morte dela, em 2003. Alm dos dirios, h cartas e processos no acervo.
Empolgada com a corajosa trajetria deMrcia– ela defendeu centenas de presos/as polticos/as do Nordeste entre 1973 e 74, um dos perodos mais pesados da ditadura brasileira -,Yaracomeou a organizar a montagem e logo contou com o apoio de Andrea. Para escrever o texto, a diretora confiou em uma dramaturga que se firma cada vez mais no teatro brasileiro,Silvia Gomez.
A grande sacada da pea no se concentrar naquele pesado perodo da ditadura militar, cujo golpe completa 60 anos em 2024. Assim, Andrea vive A., mulher que recebe um telefonema em uma noite. Do outro lado da linha, R., um homem desconhecido, avisa que ela receber pelo correio osmanuscritos do diriode Mrcia Albuquerque.
Andrea Beltro e o filho Chico BF em cena da pea Lady Tempestade. Foto Felipe Ovelha
Na verdade, R. inspirado emRoberto Monteque de fato mandou os escritos da pernambucana para Yara e Andrea antes mesmo de public-los, em meados de 2023, no livroDirios de Mrcia Albuquerque: 1973-1974(editora Potiguariana). A pea, portanto, traz um dirio dentro de outro dirio.
“Essa ponte entre ado e presente foi um arco que se instalou em nosso sentimento no processo de criao. Algum do presente, como ns, recebe uma convocao do ado. De repente, na escrita, o tempo verbal ficoudesobediente: s vezes no ado, s vezes no presente, s vezes no futuro. Como se a forma pedida pela obra nos lembrasse queo Brasil reincidente no esquecimento de sua histria, como se a voz de Mrcia chegasse para nos encontrar a todos. Uma voz fantasma no corpo de uma barqueira que nos leva a atravessar a bruma do ado”, comenta Silvia Gomez.
Com isso, a dramaturgia explora o espao de inveno entre o documento e a fico e a coliso entre o ado e o presente para pensar o futuro. Alternando os papeis de A. e Mrcia,Andrearevela aos poucos fatos relevantes que foram esquecidos. Mrcia chegou a se fantasiar de enfermeira para visitar presos internados, e ela mesma foi presa 12 vezes — em uma delas, estava sozinha em casa com seu beb, e mandou uma mensagem em uma garrafa, presa numa cordinha, para a vizinha de baixo, pedindo para ela cuidar da criana enquanto ela no fosse liberada pelos“gafanhotos”(a alcunha que usava para chamar os militares).
A encenao deYarareproduz o clima de tenso e medo que reinava no Brasil nos 1970, quando um simples telefonema podia alterar radicalmente a trajetria de algum. “Acho interessante porque a Silvia captou e levou para a dramaturgia os bastidores de nossa conversa, de nossa aflio. De incio, eu tive dvidas se queria encarar aquela histria to pesada”, explicaAndrea. “Pensava em desistir, mas a falava: no, estou sendo muito covarde.”
A atriz Andrea Beltro, que protagoniza Lady Tempestade. Foto Nana Moraes
Embora seja um monlogo, a atriz divide a cena com o filhoChico BF, responsvel pela criao e operao de trilha sonora, que provoca tenso na plateia com mnimos detalhes, como o abrir de uma porta ou o cantar de pssaros. No ensaio exclusivo para oCanal MF, foi possvel notar a empatia criada entre me e filho: Andrea lanava um olhar discreto para Chico logo aps uma cena mais tensa e recebia em troca uma discreta aprovao com a cabea.
“Ela foda, consegue transmitir inmeras reaes desde um mnimo gesto at um grito aterrorizante”, elogiaChico. “O ttulo da pea nasceu da prpria leitura do dirio de Mrcia”, contaSilvia.“No dia 27 de outubro de 1974, ela faz uma anotao na qual se compara me, que chama de ‘bonana’, em oposio a si mesma, dizendo assim: ‘enquanto sou tempestade’.”
Leia a ntegra da entrevista comSilvia Gomez:
Como surgiu o ttulo da pea?
O ttulo nasceu da prpria leitura do dirio de Mrcia. No dia 27 de outubro de 1974, ela faz uma anotao na qual se compara me, que chama de “bonana”, em oposio a si mesma, dizendo assim: “enquanto sou tempestade”. Tambm, algumas pessoas que entrevistamos disseram que Mrcia tinha um olhar muito forte, brilhante. ei a imaginar uma mulher com olhar de relmpago, buscando teatralidade nessa imagem que ento contaminou a dramaturgia at chegar a nossa Lady Tempestade, figura de uma atuao heroica, mas de um outro tipo de herosmo, o das “pessoas ocupadas com uma tarefa desumanamente humana”, como escreveuSvetlana Aleksivitchno livroA Guerra No Tem Rosto de Mulher. No processo, nos inspiramos tambm em artistas comoLinn da QuebradaeBeyonc, que mastigam o ado e cantam o futuro em suas lnguas. Usar o nome Lady Tempestade foi uma maneira de trazer Mrcia para o presente pois aqui que ela nos confronta com o futuro.
“Relembrar tambm um modo de agir”
A pea, de uma certa forma, inicia a temporada de trabalhos sobre a ditadura militar justamente no ano em que se completaro 60 anos do golpe. Isso refora a importncia do monlogo, no?
No foi premeditado, mas simblico como o espetculo encontrou seu tempo para estrear neste ano, 2024. Yara conheceu a histria de Mrcia mais a fundo em 2021, quando participou como atriz no filmeZ, de Rafael Conde, sobre Jos Carlos da Mata Machado. Por meio de Roberto Monte, do Centro de Direitos Humanos e Memria Popular, no Rio Grande do Norte, soube dos dirios em vias de publicao. Quando ela me convidou, em dezembro de 2022, comeamos com Andra a pesquisa que d agora na cena. Essa noo de tempo permeou a escrita. Muitas vezes, estava lendo uma data do dirio, algo ado em 1973, e pensava: estou aqui, meio sculo depois, sendo alcanada pela voz de Mrcia, que, mais do que nos tocar, nos indaga no presente. Como se perguntasse: como esto as coisas a, no futuro? Lidar com a memria uma questo em nosso pas, repetidor de violncias e injustias. Relembrar tambm um modo de agir, romper com o pacto de esquecimento. E o dirio de Mrcia nos ensinou: foi uma mulher que, acima de tudo, agia.
“Assim como em todas as reas, o sistema trabalha bem para apagar algumas vozes”
So poucas as mulheres que lutaram contra o regime militar e que ganham o devido destaque, o que reafirma o trabalho da Mrcia, no?
Mesmo tendo defendido mais de 500 pessoas e ser considerada a maior advogada nordestina de presos polticos durante a ditadura militar, Mrcia ainda pouco lembrada. Isso chama a ateno pois, de modo geral, tantos homens so reverenciados com nome e sobrenome por seus feitos. Assim como em todas as reas, o sistema trabalha bem para apagar algumas vozes. Por isso narrar, levar cena, registrar como quem faz um dirio – ou um dirio do dirio de Mrcia, uma mulher no idealizada, mas lutando por justia em um pas violento em um tempo a no se esquecer. A dramaturgia seguiu assim, entre o documento e a fico, dialogando com aquele registro ao mesmo tempo ntimo e coletivo.
Com a personagem A., voc criou uma ponte entre ado e presente a fim de mostrar que aquele momento ainda no terminou?
Essa ponte entre ado e presente que voc menciona foi um arco que se instalou em nosso sentimento no processo de criao. Algum do presente, como ns, recebe uma convocao do ado. De repente, na escrita, o tempo verbal ficou desobediente: s vezes no ado, s vezes no presente, s vezes no futuro. Como se a forma pedida pela obra nos lembrasse que o Brasil reincidente no esquecimento de sua histria, como se a voz de Mrcia chegasse para nos encontrar a todos. Uma voz fantasma no corpo de uma barqueira que nos leva a atravessar a bruma do ado, ofcio maravilhoso de uma atriz genial como Andra Beltro. A barqueira-Andra nos conduz com a coragem de enfrentar este ado que ainda nos assombra justamente por no termos acertado as contas com ele. O teatro gentil com os fantasmas, como lembra o livroPalco Assombrado, do terico Marvin Carlson, outra fonte de pesquisa no processo. “O paradoxo que ao convocar os fantasmas do ado, – sejam eles fatos ou fbulas, pessoas ou personagens, aes ou agendas… – o palco transforma tudo em presente fantasmal.”
“Mrcia nos lembra que a ditadura tambm torturou mes, pais, irmos, filhos, filhas”
Qual (ou quais) a histria mais incrvel que voc descobriu sobre a Mrcia?
O fato de ela ter conseguido exumar o corpo de Jos Carlos Novaes da Mata Machado e devolv-lo famlia, em Belo Horizonte, muito importante para a histria desse perodo, assim como o encontro com Gregrio Bezerra. Mas me impressionaram tambm as histrias que parecem pequenas, mas so imensas, como oacolhimento oferecido s mes que a procuravam, suplicantes pelo paradeiro de filhas e filhos. So muitas! Com esses relatos, Mrcia nos lembra que a ditadura tambm torturou mes, pais, irmos, filhos, filhas.
E como trabalhar com Andrea Beltro e Yara de Novaes?
Posso tentar dar um exemplo para responder a essa pergunta: em um dos ensaios, me peguei agradecendo por ter sido convocada para este trabalho. Pela nossa histria coletiva, por Mrcia, claro. Mas tambm por poder verYara de NovaeseAndra Beltroem ao. Elas so muito poderosas, plenas de seu ofcio, barqueiras do sentimento que pode ocupar um palco. Borbulhantes e fortes, tempestades de talento ouvindo essa outra mulher forte que as convocou. Ladies tempestade!
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