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Formas de acreditar na vida
A dramaturga Silvia Gomez leva para o palco, a partir dos dirios da advogada pernambucana Mrcia Albuquerque, o monlogo 'Lady Tempestade', com Andrea Beltro


“Toda noite, encontro com o meu fracasso”,diz Mrcia Albuquerque em certo momento deLady Tempestade, dramaturgia de Silvia Gomez criada a partir dos dirios da advogada pernambucana. No monlogo em cartaz at 4 de fevereiro no Teatro Poeira, no Rio de Janeiro, Andrea Beltro A., que recebe nos dias de hoje os dirios escritos em 1973 e 1974. E tambm Mrcia, que, mesmo presa 12 vezes, continuou defendendo centenas de presos polticos durante a ditadura civil-militar brasileira, abrandando suas penas, procurando seus corpos, acolhendo suas mes, pais e filhos e lhes dando colo, leite e usque enquanto no se sabia de seus paradeiros. Em cena, no mesmo sof em que ela declara o permanente encontro com fracasso, h tambm uma frase escrita a caneta: “H mil formas de acreditar na vida”.

Dirigida por Yara de Novaes,Lady Tempestade uma ode vida frente ao fracasso de tanta morte, a insistncia num propsito desde que Mrcia viu o lder comunista Gregrio Bezerra ser arrastado seminu por um carro do Exrcito nas ruas de Casa Forte, em Recife, e decidiu ajud-lo. Era 2 de abril de 1964, dois dias depois do golpe militar.

Desde ento, a advogada defendeu mais de 500 casos, um acmulo espelhado nas histrias narradas pela dramaturgia e encarnado no corpo de Andrea Beltro.

Em cena, A. vai sentindo a angstia tomando o peito “como uma falsia”, at que a prpria Mrcia se misture a ela. “Sempre tive na cabea uma se transformando na outra, mas isso ganhou fora a partir da cena. Foi essencial v-la se desenrolar no corpo da Andrea”, conta Silvia, que trabalhou na primeira verso do texto a partir da sala de ensaio.

“Minha filha, voc t ouvindo? Voc t lendo o dirio?”, pergunta Mrcia a A., que de fato resiste a continuar a leitura, porque, afinal, “esquecer muito bom”. S que, depois de comear, ela no consegue se esquecer do que leu. Foi assim tambm com a prpria Andrea, que resistiu a fazer um novo monlogo sobre justia aps sete anos interpretando Antgona, a figura da mitologia grega que luta para defender o direito de enterrar o irmo. Yara conheceu a histria de Mrcia ao atuar emZ(2023), filme Rafael Conde sobre o militante mineiro Jos Carlos Novaes da Mata Machado, assassinado no Destacamento de Operaes de Informaes do Centro de Operaes de Defesa Interna (DOI-Codi) do Recife, em 1973, e enterrado como indigente. Mrcia conseguiu localizar o corpo do lder estudantil, exum-lo e transferir seus restos para Belo Horizonte.

“Minha primeira reao ao ler o dirio foi: ‘No sei se quero falar sobre isso’”, conta Andrea, que, no fim de 2023, publicou o livroAntgona: Ela est entre ns(Cobog), incluindo o processo da obra, criada a partir do texto clssico de Sfocles. “ei anos mergulhada num poo fundo, irmos que se matam, sangue, Estado... Talvez tudo que eu quisesse fosse um mai com paets, um penacho, teatro de revista. Mas tambm tive uma sensao que est na pea: ‘Agora que li, como vou dizer no para isso?’ No ia mais dormir em paz.” Essa angstia ao ler o dirio, compartilhada pela diretora e pela dramaturga, foi incorporada ao texto, escrito por Silvia a pedido de Yara. “A personagem A., mas voc, nos coloca uma questo coletiva. A pergunta para o pblico: ‘E agora, o que voc vai fazer com isso que recebeu?’”, diz Silvia.

EmLady Tempestade, A. recebe os dirios pelo correio de R., uma referncia a Roberto Monte, que coordena o Centro de Direitos Humanos e Memria Popular, em Natal, para onde o marido de Mrcia doou o acervo da mulher aps sua morte, em 2003. A advogada acumulou cartas, processos jurdicos e dirios escritos em folhas soltas, publicados pela editora Potiguariana em 2023 comoDirios1973-1974escritos porMrcia AlbuquerqueFerreira. Com o material nas mos, Yara, Silvia e Andrea pensaram juntas em como tratar da violncia sem simplesmente reproduzir o horror, em como trazer vida diante do fracasso, porm sem menosprezar o tamanho do abismo. “Sabamos que precisvamos contar casos, porque no tem como falar disso s pelas beiradas. Mas decidimos no ter o nome dos torturadores, porque no gostaramos que eles habitassem a nossa cena. preciso que se d nome para que essas pessoas possam ser penalizadas, mas quisemos nomear aqueles que lutaram, as mes que procuraram a Mrcia. Nossos mortos esto ali para serem honrados, ser fora para a gente, coragem”, explica Yara, que j vinha refletindo sobre a representao da violncia, no caso o estupro, ao dirigir em 2023 a peaTeoria King Kong, adaptao de Mrcia Bechara para o livro de Virginie Despentes.

Como dizia Mrcia, os torturadores so os “gafanhotos”, “canalhas”, “necrfilos”, “sdicos”. EmLady Tempestade, no se ouve o nome de Mdici ou Geisel, os militares no poder em 1973 e 1974. Ouvimos, sobretudo, os nomes de mes como Dona Roslia, que procura Mrcia de forma recorrente para tentar encontrar o filho desaparecido. Entre um ou outro pai, so as mes que povoam a casa da advogada, so as mes que chegam no meio da noite e so acolhidas por ela – que sofre por muitas vezes ter dado menos ateno a seu nico filho do que aos de outras mulheres. “s vezes vinham trs, quatro mes, a Mrcia as punha para dormir... Isso era muito forte por si s”, afirma Silvia. “Pensando em dar ao dirio uma dimenso narrativa, usei a histria da Dona Roslia ao longo da dramaturgia, para criar uma linha de tenso. Ela representa todas as outras mes.”

O filho de A. tambm est em cena. Vivido pelo prprio filho de Andrea Beltro, Chico B., ele faz as intervenes sonoras da montagem e vez ou outra pontua preocupao com a me, que vai se afetando pela leitura dos dirios. Foi mais uma ideia da diretora a que Andrea resistiu, para depois abraar. “Um dia, a Yara, como quem no quer nada, perguntou sobre meus filhos. Falei do Chico, que faz msica. Ela disse que queria cham-lo para a pea. No sabia que seria monlogo, achava que viriam mais umas duas pessoas. Mas ficou s ele”, conta Andrea. “S fui me dar conta depois de como fazia sentido a histria ser contada por uma me e um filho.”

Mrcia nasceu em Jaboato dos Guararapes, na regio metropolitana do Recife, em 1934, em dia de tiroteio numa estao ferroviria, como se anunciasse o que estava por vir. Sua me era “uma mulher terna e acomodada, totalmente diferente de mim. Enquanto sou tempestade, ela bonana”, escreveu a advogada num dia de 1974. Da vem a alcunha Lady Tempestade, nome inventado pelo teatro, que s existe na dramaturgia. Um teatro “generoso com os fantasmas”, diz a Mrcia-personagem, que, ao olhar para o que fizeram dela no presente, fica feliz com o nome que recebeu. O que fizeram dela foi, de fato, uma mulher-tempestade, cabelos rebeldes, bolsa e batom vermelhos em contraste com a roupa formal de advogada. Uma mulher que gosta de escrever poemas e ouvir a Nona Sinfonia de Beethoven. Andrea exalta:

“A Mrcia era muito invocada, barra pesada, chamava os militares de gafanhoto, ia para o (bloco de carnaval) Galo da Madrugada. Uma mulher muito agarrada vida, solar. Para descer l embaixo, tem que ter uma grande paixo pela vida, se no ela desce e fica l. A Mrcia amava viver, ela diz isso. Que mulher interessante, to escondida, apagada. Fomos movidas pela paixo por ela, e no por qualquer efemride de 60 anos do golpe”.

Viver em estado de tempestade durante a ditadura foi deixando o corpo de Mrcia frgil, como mostram os relatos dos dirios em 1974, ano em que a cano de dor de cotoveloFeelingsestava em primeiro lugar das msicas mais tocadas no Brasil e a represso e atingira o pice no pas. Quando a msica de Morris Albert toca emLady Tempestade, por trs ouvem-se sons de tiros e gritos. “ como se a gente dissesse: ‘Abaixa oFeelingsum pouco para voc ver. Tem cachorro latindo, criana chorando’”, diz Yara, que tambm atriz e protagonizaMalu, filme de Pedro Freire que acabou de estrear noFestival de Sundance.

Em 1974, os dirios de Mrcia tm muitas rasuras, pginas inteiras riscadas. A dramaturgia manteve a proposta do livroDirios, que aponta os trechos ilegveis ou ausentes, anunciando, por exemplo, quando uma pgina fora cortada com tesoura. EmLady Tempestade, houve algumas tentativas de encenar o no dito, por exemplo, como se A./Mrcia estivesse muda. At que se decidiu relatar cada data de 1974 em que algo foi riscado dos dirios. A estratgia refora o efeito de acmulo, de repetio, a mesma que faz Mrcia declarar seu encontro dirio com o fracasso. “A gente chegou concluso de que se aquilo foi rasurado por ela ou por outra pessoa no importa. Tem um limite de onde a gente avana. Mas a presena dessas rasuras essencial”, diz Silvia.

As rasuras tambm acabaram por confrontar a dramaturga com o lado absurdo e incomunicvel da realidade, que marca de sua dramaturgia autoral. Quando recebeu o convite de Yara, Silvia pensou no ser a mais adequada, justamente por seus textos privilegiarem ononsense. Mas encontrou ali algo de delrio. “Ao mesmo tempo em que os dirios so um documento, eles so o real no que ele tem mais incomunicvel, abjeto. Ento houve uma imposio desse real como algo absurdo”, sustenta a dramaturga. “Tento olhar para o real e encontrar sua face delirante. desse real que eu parto. Ele uma medusa, paralisa. O trauma paralisa. O delrio talvez seja um artificio de olhar para o real sem ficar paralisado por ele”.
Apesar de mais fincada nos fatos,Lady Tempestadetraz uma semelhana com outras dramaturgias de Silvia ao tratar do encontro perturbador entre duas mulheres, A. e Mrcia. EmMantenha fora do alcance do beb, que venceu o prmio da Associao Paulista de Crticos de Arte (APCA) e foi indicada ao Prmio Shell em 2015, Silvia retrata a tenso entre uma funcionria pblica e uma mulher candidata adoo de um beb, enquanto uma superpopulao de lobos invade as ruas da cidade. EmNeste mundo louco, nesta noite brilhante, tambm indicada ao Shell em 2019, uma vigia de uma estrada erma busca salvar uma mulher que foi estuprada e delira. As obras foram recm-publicadas em livro pela Javali, em edio bilngue (portugus/espanhol).

Ambos os textos partem do absurdo da existncia e buscam fazer algo dele com jogos de linguagem e o corpo das personagens. Na dramaturgia de 2015, a mulher que quer um beb a qualquer custo se alterna entre a performance social para conseguir o que deseja e improprios que nunca seriam ditos numa entrevista de adoo. Ela confronta a entrevistadora, que se sente simultaneamente atrada e repelida por sua estranheza. Em meio aos dilogos repletos de ironia, em que adotar um beb s vezes se parece a fazer compras de supermercado, Silvia reflete, como ela mesma diz, sobre “como o consumo contamina as coisas mais preciosas para a gente”.Mantenha fora do alcance do bebest sendo transformada em filme em mais uma parceria de mulheres, com roteiro de Silvia, Vana Medeiros, Erika Ferreira e Debora Falabella, que tambm ser a diretora.

Neste mundo louco, nesta noite brilhantesurgiu a partir de casos de violncia contra as mulheres, sobretudo do estupro de quatro adolescentes no Piau, violentadas, amarradas e atiradas de um penhasco em 2015. Mas os fatos so s um estopim, transfigurados pela dramaturga de forma inventiva, em dilogos por vezes surreais. O encontro da vigia de estrada e de L ocorre no km 23 de um lugar sem nome como as personagens, enquanto um rdio se conecta ao trfego areo de decolagens e aterrissagens em vrias partes do mundo. A vigia, mesmo habituada ao que acontece “todos os dias no km 23”, age para tentar tirar a mulher dali. Resta alguma esperana diante do apocalipse, como escreve no posfcio do livro Yara de Novaes, tia de Silvia que a ps em contato com o teatro desde pequena, em Minas Gerais.

“Como olhar para o horror? Como no se deixar paralisar por ele e no cair no melodrama, como usar a ironia para falar da violncia?”, questiona Silvia. “O texto tem um riso nervoso, se no voc no consegue ar por aquilo.”

Depois deNeste mundo louco, nesta noite brilhante, lida e encenada em cidades do Mxico e montada na Argentina, Silvia foi aos poucos tomando contato com uma produo teatral latino-americana que no chega ao Brasil, e que tem forte influncia do ativismo feminista. A edio bilngue de seus textos pela Javali partiu, segundo ela, de um desejo de ponte com essa dramaturgia. “Publicar muito importante porque, alm do registro, voc estimula a formao”, afirma a dramaturga, cujas obras, alm do espanhol, j foram traduzidas para alemo, francs, ingls, italiano, mandarim e sueco.

Desde o ano ado, Silvia d aulas no laboratrio do Instituto Brasileiro de Teatro, em So Paulo, onde quer estimular a experimentao, porque “demora muito pra gente confiar na prpria voz”. Ela se inspira em sua prpria formao no Centro de Pesquisa Teatral (T), em So Paulo, onde tambm j deu aulas. No T ela pde testar dramaturgias com um registro desviante de sua graduao em jornalismo. “Quando li o (Samuel) Beckett, pensei: Mas pode escrever assim?”, ela ri. Hoje Silvia continua o aprendizado como mestranda na Escola de Comunicao e Artes da Universidade de So Paulo, onde pesquisa sobre a ideia de delrio na dramaturgia.
Silvia ressalta o apreo que tem pela informao objetiva, que sempre aproveitada em suas obras, seja em dados do controle de trfego areo, na composio qumica da molcula de naftalina ou nas espcies botnicas. EmA rvore, publicada pela Cobog em 2021, uma mulher, A., se transforma em vegetal dentro de seu apartamento, a partir do contato com umaMimosa pudica, planta que se fecha ao toque. Ela faz um dirio dessa transformao, que comea na pele e rompe sua separao com o mundo, fundindo-se a ele pelas razes que se expandem dentro da terra. Escrito durante a pandemia, o texto foi encenado em vdeo por Alessandra Negrini, com direo de Ester Laccava e Joo Wainer, alm de apresentado noFestivalMujeres en Escena por la Paz, em Bogot, na Colmbia.

EmA rvore, o encontro com a natureza uma viagem para dentro de si, mote que se repete emPartida de vlei sombra do vulco, pea-filme tambm criada em tempos pandmicos para o Grupo Galpo, com direo Clarissa Campolina e Fernanda Vianna. A dramaturgia partiu de uma cena real de pessoas jogando vlei a poucos metros de um vulco ativo na Islndia. Mais uma vez, o absurdo estava na prpria realidade. Mais uma vez, Silvia buscou na inveno da linguagem outra forma de acreditar na vida. E, mais uma vez, fez isso por meio de uma mulher “em estado de desobedincia”, como diz o texto.

“A dramaturgia a proposio pblica de discusso de um ime coletivo, algo que se coloca e a gente discute junto”, afirma Silvia. “Sempre penso: Voc est escrevendo isso porque um desabafo ou por que de interesse comum? A nossa dor tambm sintoma do nosso tempo, mas como saltar do pessoal do coletivo? Esse desafio tem que estar sempre no meu horizonte.”

SUZANA VELASCO, jornalista, escritora e doutora em Relaes Internacionais, autora da dramaturgiaPra onde quer que v ser exlio(Cobog, 2021).


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