Uma advogada nos pores da tortura
Por Helena Arago
Dirios de defensora de presos polticos durante a ditadura so publicados em livro e inspiram monlogo com Andrea Beltro
Roberto Monte (Org.)
Dirios 1973-1974 escritos por Mrcia Albuquerque Ferreira
Editora Potiguariana • 182 pp • R$ 50
Em 1965, recebi um telefonema avisando-me que havia uma ordem de priso contra mim. Quando desliguei bateram na porta, era a polcia. Abri e disse: vou me trocar. Sentaram-se na sala. No quarto fiz um bilhete para Dona Pepe, me de Ivo Valena, coloquei-o numa garrafa, e desci pela varanda recomendando meu filho recm-nascido. Tirei os lenis do bero, para evitar que meu beb sufocasse. Fui mais uma vez conduzida para a Secretaria de Segurana Pblica.
Assim, Mrcia Albuquerque narra a quarta de suas doze prises. Elas esto listadas no final do livro Dirios 1973-74 escritos por Mrcia Albuquerque Ferreira. Nascida em Pernambuco em 1934, ela era recm-formada em direito, em 1964, quando viu uma cena que mudou sua vida: o lder comunista Gregrio Bezerra estava sendo torturado no meio da rua, no Recife. Horrorizada, ela chegou em casa e anunciou para o marido, Octvio, que se dedicaria defesa de presos polticos. Assim foi feito, e fragmentos expressivos dessa experincia foram registrados numa escrita ntima repleta de revolta, angstia, mas tambm de ternura e at, eventualmente, de humor.
|
 |
As pginas de Mrcia intercalam descries sobre o estado deprimente dos presos depois de sesses de torturas, conversas duras com militares e policiais e, sobretudo, momentos de ateno e carinho com mes desesperadas que batiam sua porta, quase todos os dias, em busca dos filhos desaparecidos. Depois de confiar, num momento de aflio, seu recm-nascido a uma vizinha, ela tentou cuidar dos filhos de outras famlias como se fossem seus.
Preocupaes
De modo geral, Mrcia escrevia pouco sobre si mesma. Deixou um poema aqui e ali, ou momentos de preocupao com o marido, o filho nico ou com a sade. Em 25 de novembro de 1974, relatou uma visita ao mdico: “Deixou claro que s poderei engravidar se deixar de advogar. Meu estado emocional perturba o metabolismo. por demais cmico, luto pelos filhos dos outros, entram em minha vida, amarguram-me a existncia e ainda me privam de ter filhos”.
Os dirios foram publicados em livro pela editora Potiguariana em 2023, e pouco antes da publicao chegaram s mos da atriz Andrea Beltro e da diretora Yara de Novaes. Impactadas com o contedo, elas convidaram a dramaturga Silvia Gomez para criar um monlogo a partir dos relatos de Mrcia.
O resultado foi a pea Lady Tempestade, que ficou em cartaz entre janeiro e fevereiro deste ano no Rio de Janeiro, em temporada concorridssima. O ttulo vem de uma frase em que Mrcia se compara me — “mulher terna e acomodada, totalmente diferente de mim. Enquanto sou tempestade, ela bonana”.
Paralelos
A sada de Silvia Gomez para transformar os relatos em dramaturgia foi fazer uma espcie de dirio dentro do dirio: uma mulher chamada A. recebe as pginas pelo correio, de um certo R. No programa do espetculo, Beltro analisa: “Contar e recontar uma histria, muitas e muitas vezes, uma maneira de impedir que o horror acontea de novo. O silncio s interessa aos que deveriam ter sido julgados, mas no foram. O silncio o parceiro do medo. Um dirio guarda vrios segredos e um deles o desejo secreto de ser encontrado”.
Na pea, uma frase recorrente: “Essas coisas acontecem, aconteceram, acontecero”. Os paralelos com o presente e o futuro so feitos o tempo todo, inclusive com a insero de um udio verdico de uma me que teve o filho assassinado pela polcia em 2022, na Bahia. O motivo para uma atuao to consistente como a de Mrcia no ter ganhado notoriedade claro para a dramaturga: “Tantos homens so reverenciados com nome e sobrenome por seus feitos heroicos… O sistema trabalha muito bem para certos nomes serem apagados”.
O remetente do dirio, na vida real, foi Roberto Monte, economista e diretor do Centro de Direitos Humanos e Memria Popular, no Rio Grande do Norte, a quem foi confiado todo o acervo de Mrcia por seu vivo Octvio, depois que ela morreu, em 2003.
Foi s em 2023 que Monte conseguiu verba para publicar os dirios em livro — pela editora Potiguariana, criada tambm por ele, e que conta com outras obras sobre a atuao do regime militar no Nordeste em seu catlogo. Demorou, mas, na opinio dele, tudo aconteceu na hora certa. A visibilidade indita no momento em que so lembrados os sessenta anos do golpe militar.
Os relatos tm muitas crticas aos militares, mas tambm sobra para o partido, o PCB
Parte do acervo, que alm do dirio tem cartas e documentos jurdicos, est vel no site dhnet-br.informativomineiro.com. A esse conjunto se somou, recentemente, um material novo, com informaes sobre pessoas defendidas por Mrcia, numa espcie de memorial.
Enquanto na pea os militares so citados de modo genrico como “gafanhotos”, alcunha que de fato ela usava vez ou outra no dirio, no livro eles aparecem com nome e sobrenome, e h no final uma lista de torturados e de torturadores. Sobre estes ltimos, Monte observa: “Em geral, tudo nome de rua, de avenida”.
A plateia do espetculo se tornou, por vezes, ponto de encontro de ex-presos polticos, ou de familiares dos que morreram. No fim de janeiro, um grupo de parentes estendeu uma faixa na plateia cobrando do governo a reinstalao da comisso de mortos e desaparecidos. Dora Santa Cruz foi alm: levou uma foto do seu irmo Fernando Santa Cruz, desaparecido poltico desde 1974. Convidada a ir ao centro do palco por Beltro ao fim do monlogo, ela contou a histria dele, e citou outras vtimas dos militares, com a plateia gritando “presente!” a cada nome. Foi como um ritual.
Cortes e vazios
Os relatos de Mrcia tm muitas crticas aos militares (h diversas pginas rasuradas ou at cortadas), mas tambm sobra para o PCB (Partido Comunista Brasileiro). “Estou preocupada com a me de Maria de Messias, sozinha com um filho excepcional, num quitinete ando muita privao, e nenhum comunista vai l levar ajuda. Como os homens so iguais”, desabafa em 18 de junho de 1974.
Havia, para ela, uma classe ainda mais abandonada: os camponeses. o caso do relato de 15 de setembro de 73: “Um pobre campons, preso h dez anos, vtima da esquerda e da direita. Dei ateno a ele mais de uma hora, afinal algum precisa ouvi-lo; deixei-o despejar toda a amargura que o machuca h muito tempo”.
Tambm h elogios a algumas figuras pblicas, como Dom Hlder (“fiquei comovida com a ternura com que fala dos problemas do povo”) e Sobral Pinto (“Li uma carta corajosa feita pelo pai das liberdades, Sobral Pinto, ao Ministro da Justia, que poder trazer consequncias ao velho jurista”). Mas sua ateno primordial a mes e pais annimos, de Pernambuco e de outros estados nordestinos.
Mrcia se arriscou ao denunciar ms condies nas prises e at partir para o embate direto
Dizia que jamais mentia a uma me, preferia at ficar em silncio. Mesmo em momentos difceis, como o relatado em 10 de maio de 1973: “Nem bem o dia amanheceu, Dona Roslia chorando me perguntava pelo filho. J no me animei e falei-lhe dos meus temores. (…) Ento a velhinha me deu uma lio: ‘Doutora, a senhora precisa se controlar para ajudar a ns’. Fez-me prometer que acharia o filho, vivo ou morto, o que cumpri”.
Em 29 de novembro daquele ano, descreveu poeticamente outro dilogo, repleto de vazios:
Recebi o pai de Ramires, aflito com a notcia da morte do filho. (…) O velho me falou: ‘Sinto como se o mundo casse; estou partido, mas se ele voltasse a viver, e quisesse trilhar o mesmo caminho, no o impediria’. O Sr. Francisco estava plido, eu comovida; era a dor muda, sem blasfmias nem lgrimas, era a amargura que tira a doura da vida e a tranquilidade dos lares. Apertei-lhe a mo e chorei; senti que o silncio era mais prudente. Abri a porta, e o velho mergulhou na noite.
Se o silncio era o recurso possvel na conversa com parentes em desalento, Mrcia se arriscou muitas vezes ao denunciar ms condies em prises e at ao partir para o embate direto: “O Dr. Ednaldo disse-me que mais lhe di a morte de um cavalo do que a de um preso poltico. Ao que repliquei: ‘Faz muito bem em defender a sua espcie, eu defendo a minha, os homens’”.
E defendeu at o fim. No posfcio, Maria do Amparo Arajo, fundadora do grupo Tortura Nunca Mais de Pernambuco, conta que, dcadas depois, Mrcia se tornou ouvidora na Secretaria de Justia de Pernambuco e foi encarregada de ouvir depoimentos de testemunhas na comisso criada para indenizar sobreviventes. Mais uma vez, ajudou a manter viva a memria dessa pgina infeliz da nossa histria.
|