Lady Tempestade: monlogo com Andra Beltro, dirigido por Yara de Novaes, mergulha no dirio de Mrcia Albuquerque, que se dedicou a defender presos polticos na ditadura.
Espetculo que estreia em 4/1 no Teatro Poeira parte das histrias da advogada pernambucana para refletir sobre violncias e injustias no presente e no futuro
ado, presente e futuro se embaralham em “Lady Tempestade”, espetculo cuja dramaturgia parte dos dirios da advogada pernambucana Mrcia Albuquerque (1934-2003), sobre sua atuao em defesa de centenas de presos/as polticos/as do Nordeste, principalmente entre 1973 e 74, um dos perodos mais pesados da ditadura brasileira
.Na trama escrita por Silvia Gomez e dirigida por Yara de Novaes, Andra Beltro interpreta A., mulher que recebe os dirios de Mrcia e fica impactada com o testemunho pela busca de justia — ou, ao menos, o paradeiro de desaparecidos, a partir das splicas de mes desesperadas — e com a narrativa repleta de violncia e coragem. |
 |
Numa espcie de "dirio dentro do dirio", A. encara o dilema de se envolver com aquela histria, mas acaba mergulhando nela. Aos poucos, vai revelando uma personagem feminina importante, que comea a ser reconhecida a partir da publicao de suas memrias em livro, em 2023.
“Mrcia dizia que era uma contadora de histrias de pessoas que reconstruram a liberdade. Eu sou uma contadora de histrias. Eu acredito que contar histrias uma maneira amorosa de pensarmos juntos no nosso ado, nosso presente e nosso futuro. Contar histrias amorosamente, para nunca esquecer. Para tentarmos responder s perguntas que nos fazemos aqui e agora”, explica Andra.
A opo de levar essa histria aos palcos veio, por coincidncia, aps seu monlogo “Antgona”, montagem sobre o clssico de Sfocles em que a protagonista enfrenta a ordem do rei Creonte para deixar seu irmo, que lutou na guerra, insepulto. Andra levou o prmio APCA de melhor atriz pela pea, que se desdobrou tambm em livro e no filme “Antgona 442 a.C”. Agora, retoma o tema da luta por justia, e pelo sepultamento digno de entes queridos, em “Lady Tempestade”.
Ao fazer paralelos com o tempo presente — com direito a um desabafo verdico, em udio, de uma me que teve o filho assassinado pela polcia em 2022 —, A. envolve a plateia numa questo angustiante, mas provocadora: se no d para "desver", o que podemos fazer com isso?
Com a dvida se transformando em parte do enredo, foi natural para Silvia Gomez adotar uma ideia dada por Yara: narrar a histria como se fosse o dirio de A. lendo o dirio de Mrcia. "A personagem da Andrea diz: queria fingir que no tinha recebido aquilo, mas no era mais possvel. Eram coisas semi-desaparecidas e no so mais. Ento, para que futuro vamos aps ouvir as palavras de Mrcia?", indaga a autora.
No toa, uma frase repetida algumas vezes no texto, aps a leitura de trechos dramticos do dirio de Mrcia: "Essas coisas acontecem, aconteceram, acontecero". Silvia desenvolve: "Algum do presente, como ns, recebe uma convocao do ado. De repente, na escrita, o tempo verbal tornou-se arisco: s vezes no ado, s vezes no presente, s vezes no futuro. Como se a forma pedida pela obra nos lembrasse que o Brasil reincidente no esquecimento de sua histria, tantas vezes parecida com uma cena em looping de terror".
60 anos do golpe civil-militar
Yara e Andra buscavam um texto para trabalharem juntas, sem tema pr-definido. A diretora de "Lady Tempestade" tinha participado como atriz, h pouco tempo, do elenco de "Z", filme de Rafael Conde sobre o militante mineiro Jos Carlos Novaes da Mata Machado, assassinado no DOI-CODI do Recife em 1973. Ali, soube da existncia de Mrcia, porque foi a advogada que conseguiu localizar o corpo da vtima, promover a exumao e a transferncia para Belo Horizonte.
Ao pesquisar sobre a histria de Mrcia, Yara chegou a Roberto Monte, que dirige o Centro de Direitos Humanos e Memria Popular, no Rio Grande do Norte. Foi a ele que Octvio, marido da advogada, confiou os arquivos aps a morte dela, em 2003. Alm dos dirios, h cartas e processos no acervo. Citado na pea como R., a pessoa que envia a encomenda para A., na vida real Monte de fato mandou os escritos da pernambucana para Yara e Andra antes mesmo de public-los, em meados de 2023, no livro "Dirios de Mrcia Albuquerque: 1973-1974" (editora Potiguariana).
"Foi um susto", conta Yara, ao lembrar da reao ao receber e ler o dirio. Em seguida, elas tiveram o tambm a uma entrevista em udio de Mrcia para Samarone Lima, autor da reportagem biogrfica "Z: Jos Carlos Novaes da Mata Machado", que inspirou o filme de Rafael Conde.
Dirio e entrevista alimentam a narrativa que ganha o palco do Teatro Poeira no ano em que o golpe civil-militar completa seis dcadas. No faltam histrias impressionantes. Mrcia foi presa 12 vezes — em uma delas, estava sozinha em casa com seu beb, e mandou uma mensagem em uma garrafa, presa numa cordinha, para a vizinha de baixo, pedindo para ela cuidar da criana enquanto ela no fosse liberada pelos "gafanhotos" (uma das alcunhas que usava para chamar os militares).
A "virada da herona" acontece, nas palavras de Silvia Gomez, quando Mrcia v o militante Gregrio Bezerra ser torturado no meio da rua, em 1964. Recm-formada em Direito, ela chegou em casa e comunicou ao marido que iria defender aquele homem e quem mais precisasse.
Mesmo tendo defendido mais de 500 pessoas e ser considerada a maior advogada nordestina de presos polticos durante a ditadura militar, Mrcia ainda pouco lembrada. “Isso chama a ateno pois, de modo geral, tantos homens so reverenciados com nome e sobrenome por seus feitos heroicos”, observa Silvia. “O sistema trabalha muito bem para certos nomes serem apagados.”
A partir dessa ideia de uma atuao heroica, a seu modo, e de uma frase de Mrcia em que ela se compara me — "minha me bonana, eu no, sou tempestade" —, surgiu o apelido que deu nome ao espetculo. "As pessoas que entrevistamos disseram que ela tinha um olhar muito forte, olhar de relmpago", conta Silvia, que escreveu o texto tambm inspirada por conversas com mulheres como a jornalista e prima de Mrcia, Eliane Aquino, a juza Andra Pach e a escritora e ensasta Helena Vieira e por canes de artistas como Ceumar, Linn da Quebrada, Beyonc, Kae Tempest. “Usar o nome Lady Tempestade foi uma maneira de trazer Mrcia para o presente pois aqui que ela nos confronta com o futuro."
Andra Beltro atriz e produtora. Sua carreira profissional comeou nos anos 1980, em produes de teatro, cinema e TV. Aps participaes pontuais em novelas, sua primeira personagem fixa neste tipo de produo foi em 'Corpo a corpo', em 1984, e no ano seguinte ganhou popularidade vivendo a Zelda, da srie "Armao ilimitada". Fez ainda as novelas "Rainha da sucata" (1990), "Mulheres de areia" (1993), "A viagem" (1994), entre outras. Por 7 anos participou da srie 'A Grande Famlia' e por 4 protagonizou 'Tapas & Beijos' ao lado de Fernanda Torres. Participou de diversas produes no cinema, como o longa "Bete Balano", de 1984. Mais recentemente viveu Hebe Camargo no filme 'Hebe: A Estrela do Brasil' (2019). Ao lado de Marieta Severo, scia do Teatro Poeira, no Rio de Janeiro, onde encenou, recentemente, as peas "Antgona" e "O espectador". Em 2024, estar no elenco de "No rancho fundo", novela das 18h da TV Globo.
Yara de Novaes atriz, diretora e professora de teatro. Recebeu vrios prmios por suas atuaes e direes, entre eles, APCA, Prmio Shell, Questo de Crtica, APTR, Aplauso Brasil e Fundacen. Em 2005, formou o grupo 3 de Teatro com Dbora Falabella e Gabriel Paiva. Dirigiu diversos espetculos, como "Tio Vania", de Anton Tchcov (com o Grupo Galpo); "Caminho para Meca", de Athol Fugard (com Cleyde Yaconis); alm de "A serpente", de Nelson Rodrigues, “A Ira de Narciso”, de Srgio Branco; “O Capote”, de Nicolai Ggol; e, mais recentemente, “Mos Trmulas”, de Victor Nvoa, e “Teoria King Kong”, de Virginie Despentes.
Silvia Gomez é jornalista, dramaturga e roteirista, autora das peças teatrais “Mantenha fora do alcance do bebê” (prêmios APCA e Aplauso Brasil de dramaturgia, em 2015), “Neste mundo louco, nesta noite brilhante” (indicação ao Prêmio Shell, em 2019) e “A Árvore” (Editora Cobogó), entre outras. Suas peças foram traduzidas para o alemão, espanhol, ̂s, inglês, italiano, mandarim e sueco, tendo sido encenadas e lidas em países como Argentina, Bolívia, Colômbia, Escócia, Espanha, Inglaterra, México e Portugal. Desde 2017, dá aulas de dramaturgia e é atualmente mestranda em Artes Cênicas pela USP.
**********
Lady Tempestade
com Andra Beltro
Direo: Yara de Novaes
Dramaturgia: Silvia Gomez
Cenografia: Dina Salem Levy
Desenho de luz: Sarah Salgado e Ricardo Vvian
Figurinos: Marie Salles
Criao e operao de trilha sonora: Chico BF
Desenho de som: Arthur Ferreira
Assistente de direo: Murillo Basso
Assistente de cenografia: Alice Cruz
Identidade visual: Fbio Arruda e Rodrigo Bleque | Cubculos
Fotografia: Nana Moraes
Assessoria de Comunicao: Vanessa Cardoso | Factoria Comunicao
Assessoria de Imprensa: Daniella Cavalcanti
Comunicao Digital: Bruna Paulin
Produo: Quintal Produes
Teatro Poeira (Rua So Joo Batista, 104 – Botafogo)
Telefone: (21) 2537-8053
Horrio: Quinta a sbado, s 21h | Domingo, s 19h
Ingresso: 100,00 (inteira) | 50,00 (meia)
Capacidade: 171 lugares
Durao: 70 minutos
Classificao: 12 anos
Bilheteria: tera a sbado, das 15h s 21h | domingo, das 15h s 19h
Temporada: de 04 de janeiro a 04 de fevereiro
Incio das vendas pela plataforma Sympla em 20 de dezembro
Vendas na bilheteria do teatro Poeira a partir do dia 02 de janeiro
Sinopse: Numa madrugada estranha, uma mulher atende a um telefonema que mudar sua rotina: a voz de um homem desconhecido avisa que ela receber pelo correio os manuscritos do dirio da advogada pernambucana Mrcia Albuquerque, defensora de presos polticos durante a ditadura civil-militar brasileira. Uma mulher, aparentemente comum, que salvou a vida de muita gente. Numa jornada de reflexo e encontro com histrias escondidas da nossa prpria histria, a dramaturgia explora o espao de inveno entre o documento e a fico e a coliso entre o ado e o presente para pensar o futuro.
https://www.teatropoeira.com.br/
|