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Fim do Sonho para a "Universidade Livre" 371i5d

As delaes de Gilberto Prata surtiram um efeito-domin. As pessoas que haviam entrado em contato com Jos Carlos da Mata Machado - independente do grau de envolvimento poltico - comearam a ser presas. No Recife, um grupo de aproximadamente quinze estudantes que moravam num pequeno bloco de apartamentos, na Ilha do Leite, viveu a presso, tortura e pnico.

A maior parte desses estudantes era vinculado ao curso de Medicina da UFPE Haviam fundado a Universidade Livre da Ilha do Leite, uma espcie de movimento cultural e poltico que os reunia em torno de um objetivo - mudar a realidade de um pas perifrico que era o Brasil. Em reunies dirias, discutiam textos, organizavam o jornal Esculpio, do Diretrio Acadmico, e programavam acampamentos, que aconteciam com frequncia. A gente tinha uma atitude muito crtica em relao aos grupos clandestinos. Preferimos no entrar no tipo de luta deles, mas dvamos o apoio que fosse necessrio, diz Abel Menezes, que naquela poca estava no ltimo ano do curso mdico.

Um tipo de apoio foi dar abrigo a Jos Carlos da Mata Machado, em 1973. Ele ficou hospedado no apartamento de Snia Montenegro, tambm integrante da Universidade Livre. O Jos Carlos era uma figura muito afetiva, uma pessoa discreta, bastante gentil. Parecia algum especial. Gostei dele de cara quando o conheci, frisa Abel. Mesmo sem morar em nenhum dos quatro apartamentos na Ilha do Leite, Abel ia diariamente encontrar os amigos.

No dia 22 de outubro de 1973, ele no pode ir ver sua turma. O pai comemorava 80 anos, em Caruaru. Sorte sua. Naquele dia, 11 integrantes da comunidade foram presos e levados para o DOI/CODI. Nos dias seguintes, outras 14 pessoas tambm foram presas.

Tortura Coletiva Quando os agentes chegaram, eu estava deitado, lendo Dom Quixote, recorda Marcelo Mesel, que naquele ano disputava a presidncia do Diretrio Acadmico. A porta estava aberta, e mandei eles entrarem, era normal um grande fluxo de gente nos apartamentos, detalha Mesel. Do lado de Mesel e sua esposa, Fernanda Gomes de Matos, foram encapuzados e levados para o DOI/CODI. Os amigos se encontraram na priso. Todos imaginaram que seriam libertos rapidamente. No eram de partidos clandestinos, no defendiam a luta armada.

As torturas comearam imediatamente. Queriam informaes. Por vrios dias me perguntavam sobre o Mata Machado. Alm de no sabermos muita coisa, ns o chamvamos ainda de Jos Carlos, lembra Fernanda Gomes de Matos, que naquele ano terminava o curso de Arquitetura, na UFPE.

Choques, pau-de-arara, murros, chutes. Marcelo Mesem apanhou muito para dizer onde estava uma mala com os documentos. Devia ser uma coisa importantssima para a represso, mas eu nunca tinha visto a tal mala, detalha Mesel.

Aps seis dias de maus-tratos, Fernanda viu quando Mata Machado chegou ao DOI/CODI, escoltado por dois agentes. Fiquei feliz, aliviada. Pensei que ele iria reconhecer a gente e confirmar que no tnhamos nenhuma implicao com a guerrilha, recorda Fernanda. A alegria foi ageira. Na mesma noite, numa cela junto sua, Mata Machado foi torturado at a morte.

Somente no incio de novembro os estudantes comearam a ser soltos. Quando todos estavam livres, foram convidados para uma palestra no IV Exrcito. Um coronel nos advertiu sobre o que poderia acontecer se nos envolvssemos com os grupos clandestinos. Foi uma espcie de pedido de desculpas acompanhado de ameaas, frisa Marcelo Mesel.

Estranho no Ninho - Quando chegou ao Recife, possivelmente em agosto de 1973, Gilberto Prata Soares cumpriu a misso determinada pelo Exrcito - refazer contatos, encontrar com Jos Carlos da Mata Machado. No Recife me encontrei com tanta gente. Estive algumas vezes num prdio pequeno, com trs ou quatro apartamentos onde morava um pessoal da rea mdica. afirma Gilberto, em depoimento comisso parlamentar, em novembro de 1992.

Sem conseguir calcular a dimenso das prises que ocorreram a partir de sua colaborao com o Exrcito, Gilberto deixa pistas. Muita gente no tinha nada a ver e acabou sendo envolvida. Prata recorda que ficou hospedado, por um ou dois dias, no apartamento de Snia Montenegro. Era este o refgio de Jos Carlos da Mata Machado.

Prata diz ter absoluta certeza que os estudantes eram ligados ao Diretrio de Medicina, porque, pela primeira vez, teve conhecimento do poeta do absurdo, Jos Limeira. Recebi um jornal que os estudantes mimeografavam. Depois, isso a tudo foi estourado, detalha. O jornal a que se refere Prata era o Esculpio. Marcelo Mesel, irador de Jos Limeira, sempre inclua alguns poemas do absurdo nas edies.

Os integrantes da Universidade Livre da Ilha do Leite divergem sobre o tempo em que Mata Machado ou entre eles. Para alguns, dois meses Fernanda Gomes acha que foi de julho a setembro. Duas dcadas separam aquele doloroso 1973 da atualidade, apagando detalhes aplacando dores.

O convvio com Mata Machado, permanece nas recordaes. Para Abel Menezes, o convvio com a turma da Ilha do Leite deu ao militante clandestino uma espcie de alvio temporrio. Ele sentia que o cerco estava se fechando. Conversamos mais particularmente umas duas vezes e fiz uma anlise pessimista. Mas ele precisava acreditar que tudo iria dar certo, para criar foras e seguir a luta, conta Abel.

O ltimo encontro festivo que Mata Machado teve com o grupo da Ilha do Leite, foi num acampamento. Umas doze pessoas foram para uma praia afastada. Barracas, violo, bebidas, paz. Mas a priso estava prxima. A represso bateu vrias fotos deste acampamento. Nas celas do DOI/CODI, os integrantes da Universidade Livre puderam v-las. A gente, de certa forma, sabia dos perigos. O que ningum estava querendo mais era ter limites, conclui Abel, hoje mdico e escritor.

Aps sarem da priso, das torturas, os integrantes da Universidade Livre da Ilha do Leite enfrentaram outro desafio - reconstituir os pedaos das prprias vidas. O longo e doloroso processo de cicatrizar as feridas, oriundas das torturas. A maior parte do pessoal ficou perdida. Uns dois ou trs foram internados em casas de sade, diz Abel Meneses. Do grupo preso no dia 22 de setembro de 1973, um integrante tentou o suicdio, ainda na priso. Motivo - estava escutando gritos dos parentes numa cela ao lado, sendo torturados.

Marcelo Mesel levou as sequelas para a profisso. Depois de formado em medicina, ou dois anos sem exerc-la. Comecei a achar que em todo lugar tinha gente me seguindo. Tinha pesadelos, escutava gritos. Foi horrvel. Depois, ca na onda hippie, relata Mesel. O casamento com Fernanda Gomes de Matos durou apenas mais um ano e trs meses.

Mesmo no tendo sido preso. Abel Meneses acabou tendo o que denominar ciso neurtica. Rasgou os documentos, todos os escritos que havia acumulado, deixou a mulher grvida, de nove meses, e foi morar no mato. Eu me parti em dois, conta ele. Aps uma semana longe de todos, voltou para recomear tudo. Muita gente entrou na psicanlise ou algum tipo de terapia. A maior parte do pessoal s conseguia dormir com Diempax, diz.

Alguns dos ex-torturados entraram para religies dogmticas. Outros, nunca mais retomaram seu rumo.

So mortos-vivos, como denomina Abel Pessoas que foram psiquicamente destrudas. Deixaram suas almas nos pores da ditadura.

O psicanalista Hlio Pellegrino, morto em 1988, foi um feroz inimigo do regime militar No dia 5 de junho de 1982, escreveu um artigo denominado A Tortura Poltica, publicado no jornal Folha de So Paulo. Veja os principais trechos desta anlise lcida e contundente.

A tortura reivindica, em sua empreitada nefanda, uma rendio do sujeito na qual estejam empenhados nervos, carne, sangue, ossos e tendes, cabea, tronco e membros.

Para tanto, a tortura busca, custa do sofrimento corporal invel, introduzir uma cunha que leve a ciso entre o corpo e a mente. E mais que isto: ela procura, a todo preo, semear a discrdia e a guerra entre o corpo e a mente. Atravs da tortura, o corpo se torna nosso inimigo, e nos persegue.

A ausncia de sofrimento corporal, ao preo da confisso que lhe foi extorquida, lhe custa a amargura de sentir-se traidor, trado pelo prprio corpo. Sua carne apaziguada testemunha e denuncia a negao de si mesmo. A tortura, quando vitoriosa, opera no sentido de transformar sua vtima numa desgraada - e degradada - espectadora de sua prpria runa.

O torturator, este no tem nenhuma sada. Quando consegue xito - e esta sua melhor hiptese -, o torturador, a semelhana da hiena, a a alimentar-se de um cadver. O torturador vitorioso tem, portanto, nas garras e nos dentes, os despojos massacrados de um sujeito humano. Ele vive da morte - e na morte.

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