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A Constituio Mexicana de 1917
Fbio Konder Comparato
A
Revoluo Mexicana de 1917
A fonte ideolgica da Constituio Poltica
dos Estados Unidos Mexicanos, promulgada em 5 de fevereiro de 1917, foi
a doutrina anarcossindicalista, que se difundiu no ltimo quartel do
sculo XIX em toda a Europa, mas principalmente na Rssia, na Espanha e
na Itlia. O pensamento de Mikhail Bakunin muito influenciou Ricardo
Flore Magn, lder do grupo Regeneracin, que reunia jovens
intelectuais contrrios a ditadura de Porfrio Diaz. O grupo lanou
clandestinamente, em 1906, um manifesto de ampla repercusso, no qual se
apresentaram as propostas que viriam a ser as linhas-mestras do texto
constitucional de 1917: proibio de reeleio do Presidente da
Repblica (Porfirio Diaz havia governado mediante reeleies
sucessivas, de 1876 a 1911), garantias para as liberdades individuais e
polticas (sistematicamente negadas a todos os opositores do
presidente-ditador), quebra do poderio da Igreja Catlica, expanso do
sistema de educao pblica, reforma agrria e proteo do trabalho
assalariado.
A
transformao desse iderio em normas constitucionais, no entanto,
produziu um efeito poltico exatamente contrrio ao objetivo visado,
pela primeira vez, na movimentada histria do caudilhismo mexicano,
criou-se uma slida estrutura estatal, independente da figura do chefe de
Estado, ainda que a Constituio o tenha dotado de poderes
incomensuravelmente maiores do que o texto constitucional norte-americano
atribuiu ao presidente da repblica. O iderio anarquista de
destruio de todos os centros de poder engendrou contraditoriamente, a
partir da fundao do Partido Revolucionrio Institucional em 1929, uma
estrutura monocrtica nacional em substituio multiplicidade de
caudilhos locais.
Importncia histrica
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A Carta
Poltica mexicana de 1917 foi a primeira a atribuir aos direitos
trabalhistas a qualidade de direitos fundamentais, juntamente com as
liberdades individuais e os direitos polticos (arts. 5 e 123). A
importncia desse precedente histrico deve ser salientada, pois na
Europa a conscincia de que os direitos humanos tm tambm uma
dimenso social s veio a se firmar aps a grande guerra de 1914-1918,
que encerrou de fato o longo sculo XIX. A Constituio de Weimar,
em 1919, trilhou a mesma via da Carta mexicana, e todas as convenes
aprovadas pela ento recm-criada Organizao Internacional do
Trabalho, na Conferncia de Washington do mesmo ano de 1919, regularam
matrias que j constavam da Constituio mexicana: a limitao da
jornada de trabalho, o desemprego, a proteo da maternidade, a idade
mnima de isso nos trabalhos industriais e o trabalho noturno dos
menores na indstria.
Entre a Constituio mexicana e a Weimarer Verfassung, eclode a
Revoluo Russa, um acontecimento decisivo na evoluo da humanidade
do sculo XX. O III Congresso Pan-Russo dos Sovietes, de Deputados
Operrios, Soldados e Camponeses, reunido em Moscou, adotou em 4 (17) de
janeiro de 1918, portanto antes do trmino da 1 Guerra Mundial, a
Declarao dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado. Nesse documento
so afirmadas e levadas s suas conseqncias, agora com apoio da
doutrina marxista, vrias medidas constantes da Constituio mexicana,
tanto no campo scio-econmico quanto no poltico.
No Captulo II, afirma essa Declarao de
Direitos:
1 A fim de se realizar a
socializao da terra, abolida a propriedade privada da terra; todas
as terras am a ser propriedade nacional e so entregues aos
trabalhadores sem qualquer espcie de resgate, na base de uma
repartio igualitria em usufruto.
As florestas, o subsolo e as guas que
tenham importncia nacional, todo o gado e todas as alfaias, assim como
todos os domnios e todas as empresas agrcolas-modelos am a ser
propriedade nacional.
2 Como primeiro o para a
transferncias completa das fbricas, das usinas, das minas, das
ferrovias e de outros meios de produo e de transporte para a
propriedade da Repblica operria e camponesa dos Sovietes, o Congresso
ratifica a lei sovitica sobre a istrao operria e sobre o
Conselho Superior da Economia Nacional, com o objetivo de assegurar p
poder dos trabalhadores sobre os exploradores.
3 O Congresso ratifica a transferncia
de todos os bancos para o Estado operrio e campons como uma das
condies de libertao das massas laboriosas do jugo do capital.
4 Tendo em vista suprimir os elementos
parasitas da sociedade e organizar a economia, estabelecido o servio
do trabalho obrigatrio para todos.
5
A fim de assegurar a plenitude dos poderes das massas laboriosas e de
afastar qualquer possibilidade de restaurao do poder dos exploradores,
o Congresso decreta o
armamento dos trabalhadores, a formao de um Exrcito vermelho
socialista dos operrios e camponeses e o desarmamento total das classes
possuidoras.
Mas a, como se v, j se est fora do
quadro dos direitos humanos, fundados no princpio da igualdade essencial
entre todos, de qualquer grupo ou classe social. Desde o seu ensaio
juvenil Sobre a Questo Judiciria,
publicado em 1843, Marx criticou a concepo sa de Direitos dos
Homens, separados dos direitos do cidado, como consagradora do grande
separao burguesa entre a sociedade poltica e sociedade civil,
dicotomia essa fundada na propriedade privada. Os direitos do homem no
ariam de barreira ou macros divisrios entre os indivduos, em tudo
e por tudo semelhantes aos limites da propriedade territorial. E os
direitos do cidado, sobretudo numa poca de sufrgio censitrio, nada
mais seriam do que autnticos privilgios dos burgueses, cm excluso da
classe operria. Na sociedade comunista, cujas linhas-mestras foram
esboadas no Manifesto do Partido
Comunista, cinco anos mais tarde, s os trabalhadores tm direitos e
s eles constituem o povo, titular da soberania poltica.
Sem dvida, na Constituio mexicana de
1917 no se fazem as excluses sociais prprias do marxismo: o povo
mexicano no reduzido unicamente classe trabalhadora. Mas no se
pode deixar de reconhecer que nem todos os direitos trabalhistas, l
declarados, podem ser considerados, objetivamente, como direitos humanos.
A doutrina jurdica alem contempornea distingue, nitidamente, os
direitos humanos dos direitos fundamentais. Estes ltimos so os
direitos que, consagrados na Constituio, representam as bases ticas
do sistema jurdico nacional, ainda que no possam ser reconhecidos,
pela conscincia jurdica universal, como exigncias indispensveis de
preservao da dignidade humana. Da porque os direitos humanos
autnticos existem, independentemente de seu reconhecimento na ordem
jurdica estatal, e mesmo contra ela, ao o que alguns direitos,
qualificados como fundamentais na Constituio de um pas, podem no
Ter a vigncia universal, prpria dos direitos humanos.
Da mesma forma, secundrio o fato de que,
numa sociedade largamente agrcola, como a mexicana do incio do sculo
XX, os direitos trabalhistas interessavam a uma parcela nfima da
populao, sem falar na sua inaplicabilidade para as pequenas e mdias
empresas urbanas.
O que importa, na verdade, o fato de que a
Constituio mexicana foi a primeira a estabelecer a
desmercantilizao do trabalho, prpria do sistema capitalista, ou
seja, a proibio de equipar-lo a uma mercadoria qualquer, sujeita a
lei da oferta e da procura no mercado. A Constituio mexicana
estabeleceu, firmemente, o princpio da igualdade substancial de
posio jurdica entre trabalhadores e empresrios na relao
contratual de trabalho, criou a responsabilidade dos empregadores por
acidentes de trabalho e lanou, de modo geral, as bases para a
construo do moderno Estado Social de Direito. Deslegitimou, com isso,
as prticas de explorao mercantil do trabalho, e portanto da pessoa
humana, cuja justificao se procurava fazer, abusivamente, sob a
invocao da liberdade de contratar.
O
mesmo avano no sentido da proteo da pessoa humana ocorreu com o
estatuto da propriedade privada (art. 27). No tocante s terras e
guas compreendidas dentro dos limites do territrio nacional, a
Constituio estabeleceu a distino entre a propriedade originria,
que pertence nao, e a propriedade derivada, que pode ser atribuda
aos particulares. Aboliu-se, com isto, o carter absoluto e sagrado
da propriedade privada, submetendo-se o seu uso, incondicionalmente, ao
bem pblico, isto , ao interesse de todo o povo. A nova constituio
criou, assim, o fundamento jurdico para a importante transformao
scio-poltica provocada pela reforma agrria, a primeira a se realizar
no continente latino-americano. |