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A
Constituio Alem de 1919
Fbio Konder Comparato
Origem
Instituidora
da primeira repblica alem, a Constituio dita de Weimar, cidade
da Saxnia onde foi elaborada e votada, surgiu como um produto
da grande guerra de 1914-1918, que encerrou o longo sculo XIX.
Promulgada imediatamente aps o colapso de uma civilizao, ela
ressentiu-se desde o incio, em sua aplicao, dos tumultos e
incertezas inerentes ao momento histrico em que foi concebida.
A
vigncia efetiva dos textos constitucionais depende, muito mais
do que as leis ordinrias, de sua aceitao pela coletividade.
Ao sair de uma guerra perdida, que lhe custou, ao cabo de quatro
anos de combate, cerca de dois milhes de mortos e desaparecidos
(quase 10% da populao masculina), sem contar a multido dos
definitivamente mutilados, o povo alemo ou a descrer de todos
os valores tradicionais e inclinou-se para solues extremas.
Sem dvida, o texto constitucional equilibrado e prudentemente
inovador. Mas no houve tempo suficiente para que as novas idias
amadurecessem nos espritos e as instituies democrticas comeassem
a funcionar a contento. A Constituio de Weimar foi votada ainda
no rescaldo da derrota, apenas sete meses aps o armistcio, e
sem que divisassem com clareza os novos valores sociais. Ela no
podia deixar, assim, de apresentar ambigidades e imprecises,
a comear pela prpria designao do novo Estado, que se quis
reconstruir sobre as runas do antigo. A Carta poltica abre-se
com a surpreendente declarao de que o imprio alemo (das Deutsche Reich) uma Repblica!
Mesmo
antes do armistcio de 11 de novembro, a Alemanha viu-se sacudida
por uma rebelio naval, que em pouco tempo desembocou em verdadeira
guerra civil. Em 29 de outubro de 1918, os marinheiros estacionados
no porto de Kiel rebelaram-se contra uma ordem do comando naval
da frota de alto-mar, para se lanarem batalha final. Em 3
de novembro, a revolta ganhou adeses na quase-totalidade das
foras navais, ao mesmo tempo em que, um pouco em toda parte,
constituam-se conselhos de soldados e operrios, segundo o
modelo sovitico.
Embora
a abdicao do Kaiser Guilherme II fosse insistentemente pedida, ele
ainda tentou salvar a dinastia, ao nomear no incio de novembro seu
filho, o Prncipe Max de Baden, como chefe do governo. Alimentava com
isso a esperana de ganhar tempo e, em ltimo caso, abrir mo to-s
da coroa imperial, permanecendo como rei da Prssia.
Os
acontecimentos, no entanto, precipitaram-se. Na noite de 7 para
8 de novembro, uma Repblica Democrtica e Socialista era proclamada
na Baviera. No dia imediato, sentido que a liderana das foras
populares lhes escapava em proveito dos grupos de esquerda mais
radicais notadamente o grupo Spartakus,
chefiado por Karl Liebknecht , os representantes do partido socialista
majoritrio alemo (MSPD) retiraram-se do governo e convocaram
uma greve geral. O Prncipe Max anunciou ento a abdicao do
imperador, designou o lder dos socialistas majoritrios, Friedrich
Ebert, para exercer as funes de chanceler, e props a convocao
de uma assemblia nacional constituinte. No mesmo dia 9, tarde,
o ministro Philip Scheidemann, tambm do MSPD, tomou a iniciativa
de proclamar a repblica, do balco da chancelaria em Berlim.
O
governo provisrio ento formado, sob a denominao de Conselho
dos Delegados do Povo, era chefiado por Ebert e compreendia trs
representantes dos socialistas majoritrios e trs do Partido
Social Democrtico Independente (USPD). Seus primeiros decretos
foram o estabelecimento da jornada de trabalho de oito horas e
a atribuio do direito de voto s mulheres. Seguiram-se vrias
medidas de assistncia social aos setores mais carentes da populao.
Os
objetivos poltico-constitucionais dos partidos que compunham
o governo provisrio eram, porm, divergentes. Enquanto o MSPD
propugnava a convocao de uma assemblia nacional constituinte
e o estabelecimento de uma democracia parlamentar, o USPD manifestava-se
a favor da imediata instituio da ditadura do proletariado e
da completa socializao da economia, sem ar por uma reconstitucionalizao
formal do pas.
Nos
ltimos dias de novembro, o governo promulgou uma nova lei eleitoral
e convocou eleies para a formao de um congresso de representantes
das diferentes provncias imperiais, que veio a se reunir em Berlim
em 16 de dezembro. Em 20 de janeiro de 1919, esse congresso votou,
por ampla maioria, a convocao de uma assemblia nacional constituinte.
Uma semana antes, porm, exatamente entre 6 e 15 de janeiro, as
foras policiais, que compreendiam vrios grupos paramilitares,
empenharam-se em sangrentos combates de rua em Berlim contra os
militares do grupo Spartakus. Em meio refrega, os
lderes esquerdistas Karl Liebknecht e Rosa Luxemburgo foram capturados
e sumariamente executados. Com o desaparecimento dessas grandes
personalidades da esquerda, nicas em condies de resistir criticamente
influncia do comunismo sovitico, o movimento socialista alemo
viu-se singularmente enfraquecido para ganhar a confiana das
classes mdias e enfrentar com xito, nas urnas, o perigo montante
da extrema direita totalitria.
As
eleies para a constituinte realizaram-se em 6 de fevereiro e,
contrariamente expectativa, os partidos socialistas no alcanaram
a maioria absoluta, obtendo 185 cadeiras (163 para o MSPD e 22
para o USPD), num total de 414.
O
projeto para a Constituio foi redigido por Hugo Preuss, discpulo
do historiador do direito e terico do antigo comunitarismo germnico,
Otto v. Gierke. Desde a sua concepo, portanto, a Constituio
de Weimar se estruturava contraditoriamente, procurando conciliar
idias pr-medievais com exigncias socialistas ou liberais-capitalistas
da civilizao industrial.
Instalada
em 6 de fevereiro de 1919, a assemblia nacional constituinte
encerrou seus trabalhos em 31 de julho seguinte, quando foi aprovada
a nova Constituio por 272 votos contra 75 e vrias abstenes.
Pouco
antes, porm, em 9 de julho, a assemblia havia ratificado o tratado de
Versalhes, que imps Alemanha indenizaes de guerra em montante
desproporcional e invel. Como advertiu Keynes, as potncias
vencedoras criavam com isso as condies predisponentes de um futuro
colapso financeiro da Repblica Alem, tornando impossvel a sua normal
integrao no concerto europeu do ps-guerra. O fator desencadeante da
bancarrota adveio dez anos aps, com o colapso da Bolsa de Nova York e a
grande depresso mundial que se lhe seguiu. Abria-se, assim, o palco para
a entrada em cena da barbrie nazista, que destruiu a Repblica de
Weimar em poucas semanas, no incio de 1933.
Importncia
histrica
Apesar
das fraquezas e ambigidades assinaladas, e malgrado sua breve
vigncia, a Constituio de Weimar exerceu decisiva influncia
sobre a evoluo das instituies polticas em todo o Ocidente.
O Estado da democracia social, cujas linhas-mestras j haviam
sido traadas pela Constituio mexicana de 1917, adquiriu na
Alemanha de 1919 uma estrutura mais elaborada, que veio a ser
retomada em vrios pases aps o trgico interregno nazi-fascista
e a 2 Guerra Mundial. A democracia social representou efetivamente,
at o final do sculo XX, a melhor defesa da dignidade humana,
ao complementar os direitos civis e polticos que o sistema
comunista negava com os direitos econmicos e sociais, ignorados
pelo liberal-capitalismo. De certa forma, os dois grandes pactos
internacionais de direitos humanos, votados pela Assemblia Geral
das Naes Unidas em 1966, foram o desfecho do processo de institucionalizao
da democracia social, iniciado por aquelas duas Constituies
no incio do sculo.
A
estrutura da Constituio de Weimar claramente dualista: a primeira
parte tem por objetivo a organizao do Estado, enquanto a Segunda
parte apresenta a declarao dos direitos e deveres fundamentais,
acrescentando s clssicas liberdades individuais os novos direitos
de contedo social.
Essa
estrutura dualista no teria minimamente chocado os juristas de
formao conservadora, caso a Segunda parte da Constituio de
Weimar se tivesse limitado clssica declarao de direitos e
garantias individuais. Estes, com efeito, so instrumentos de
defesa contra o Estado, delimitaes do campo bem demarcado da
liberdade individual, que os Poderes Pblicos no estavam autorizados
a invadir. Os direitos sociais, ao contrrio, tm por objeto no
uma absteno, mas uma atividade positiva do Estado, pois o direito
educao, sade, ao trabalho, previdncia social e outros
do mesmo gnero s se realizam por meio de polticas pblicas,
isto , programas de ao governamental. Aqui, so grupos sociais
inteiros, e no apenas indivduos, que am a exigir dos Poderes
Pblicos uma orientao determinada na poltica de investimentos
e de distribuio de bens; o que implica uma interveno estatal
no livre jogo do mercado uma redistribuiro de renda pela via
tributria.
Essa
orientao marcadamente social e no individualista aparece at
mesmo nas disposies que o constituinte classificou como se referindo
a pessoas individuais. Assim que o art. 113, de modo pioneiro,
atribuiu a grupos sociais de expresso no alem o direito de
conservarem o seu idioma, mesmo em processos judiciais, ou em
suas relaes com a istrao Pblica. Marcou-se, desta forma,
a necessria distino entre diferenas e desigualdades.
As diferenas so biolgicas ou culturais, e no implicam a superioridade
de alguns em relao a outros. As desigualdades, ao contrrio,
so criaes arbitrrias, que estabelecem uma relao de inferioridade
de pessoas ou grupos em relao a outros. Assim, enquanto as desigualdades
devem ser rigorosamente prescritas, em razo do princpio da isonomia,
as diferenas devem ser respeitadas ou protegidas, conforme signifiquem
uma deficincia natural ou uma riqueza cultural.
No
campo da vida familiar, a Constituio alem de 1919 contm mais
duas inovaes de importncia. Ela estabeleceu, pela primeira
vez na histria do direito ocidental, a regra da igualdade jurdica
entre marido e mulher (art. 119), e equiparou os filhos ilegtimos
aos legitimamente havidos durante o matrimnio, no que diz respeito
poltica social do Estado (art. 121). Ademais, a famlia e a
juventude so postas, precipuamente, sob a proteo estatal (arts.
119 e 122).
Mas
foi, sem dvida, pelo conjunto das disposies sobre a educao
pblica e o direito trabalhista que a Constituio de Weimar organizou
as bases da democracia social.
Consagrando
a evoluo ocorrida durante o sculo XIX, e que havia contribudo
decisivamente para a elevao social das camadas mais pobres da
populao em vrios pases da Europa Ocidental, atribuiu-se precipuamente
ao Estado o dever fundamental de educao escolar. A educao
fundamental foi estabelecida com a durao de oito anos, e a educao
complementar at os dezoito anos de idade do educando. Em disposio
inovadora, abriu-se a possibilidade de adaptao do ensino escolar
ao meio cultural e religioso das famlias (art.146, Segunda alnea).
Determinou a Constituio que na escola pblica em ambos os nveis
o fundamental e o complementar , o ensino e o material didtico
fossem gratuitos (art. 145, in fine). Ademais, previu-se a concesso
de subsdios pblicos aos pais de alunos considerados aptos a
cursar o ensino mdio e o superior (art. 146, ltima alnea).
A
seo sobre a vida econmica abre-se com uma disposio de princpio,
que estabelece como limite liberdade de mercado a preservao
de um nvel de existncia conforme dignidade humana (art. 151).
A
funo social da propriedade foi marcada por uma frmula que se
tornou clebre: a propriedade obriga (art. 153, Segunda alnea).
Tal
como a Constituio mexicana de 1917, os direitos trabalhistas
e previdencirios so elevados ao nvel constitucional de direitos
fundamentais (arts. 157 e s.). nesse conjunto de normas, duas
devem ser ressaltadas. A do art. 162 chama a ateno pela sua
extraordinria antecipao histrica: a preocupao em se estabelecerem
padres mnimos de regulao internacional do trabalho assalariado,
tendo em vista a criao, poca ainda incipiente, de um mercado
internacional de trabalho. No art. 163, claramente assentado
o direito ao trabalho, que o sistema
liberal-capitalista sempre negou. Ele implica, claramente, o dever
do Estado de desenvolver a poltica de pleno emprego, cuja necessidade,
at mesmo por razes de estabilidade poltica, foi cruamente ressentida
pela recesso dos anos 30.
Nos
arts. 165 e seguintes foi instituda a participao de empregadores na
regulao estatal da economia. O movimento fascista tomou por base
disposies da Constituio de Weimar para deform-las, criando a
organizao corporativa da economia, sob a dominao do partido
nico.
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