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DECLARAO DE
HUMANIDADE
Ricardo
Brisolla Balestreri
Consultor Independente do Ncleo de Acompanhamento e Fiscalizao do
Programa de Direitos Humanos, do Ministrio da Justia, e membro do
Comit de Monitoramento do Centro de Recursos Educacionais (CRE), com
base no Instituto Interamericano de Direitos Humanos.
Neste
ano de 1998, a Declarao Universal dos Direitos Humanos est completando
50 anos, fato celebrado pelas democracias do mundo inteiro. Algum questionamento
sobre o tema se impe, no entanto, apesar do aparente consenso, dado
o marco altamente contraditrio da realidade que emoldura tal documento:
Qual
sua real importncia? H, de fato, o que celebrar? Que vnculo significativo
temos, cidados comuns, com essa histria?
Uma
reflexo sobre as circunstncias da contemporaneidade pode apontar-nos
algumas respostas e, ao mesmo tempo, provocar-nos com outras perguntas.
No
raras vezes aturdimo-nos, deslumbrados, diante das maravilhas tecnolgicas
que acompanham nosso tempo. No incomum que nos sintamos privilegiados
em viver dias de grandiosidade, de fantsticas descobertas, de realizao
de sonhos que no ousramos sonhar. H perspectivas de duplicar a estimativa
de vida humana nas prximas duas ou trs dcadas. Comunicamo-nos instantaneamente
com gente de qualquer lugar. Cientistas estimam que os conhecimentos
do planeta dobrem, em ritmo vertiginoso, a cada trs ou quatro anos,
e nos ensoberbecemos - no sem razo - por essa faanha.
Esquecemo-nos,
contudo, muitas vezes, que talvez no sejam essas as principais conquistas
da humanidade (esquecemos mesmo que no so conquistas para toda a urbe,
que as benesses tecnolgicas permanecem inaceitavelmente distantes da
maior parte, que multides famlicas se espraiam pelos cinco continentes
em permanente anacronia com a modernidade).
Nosso
mundo brilhante ainda povoado por sombras. O Relatrio da Anistia
Internacional lanado neste ano cobrindo 1997, d-nos contas de que,
em cento e quarenta e um pases, governos e grupos armados de oposio
violaram Direitos Humanos. Cerca de um bilho e trezentos mil habitantes
tentam sobreviver com menos de um dlar dirio e, todos os dias, em
torno de trinta e cinco mil pessoas morrem de desnutrio e de doenas
que poderiam ser prevenidas. Tortura e maus tratos so prticas sistemticas
em cento e dezessete pases e desaparecimentos de opositores ocorrem
em trinta e um deles. Em cinquenta e cinco comum a prtica de execues
extrajudiciais e em quarenta o Estado legalmente mata. jornalistas,
religiosos, sindicalistas, representantes comunitrios e defensores
dos direitos humanos, entre outros, tm sido permanentemente perseguidos
por opinies ou prticas pacficas. Minorias polticas, tnicas, raciais,
etrias, sexuais, so cultural e mesmo oficialmente discriminadas. A
impunidade grassa, mesmo no grupo das democracias. Milhes de adultos,
mulheres em sua maioria, no sabem ler nem escrever.
Se
o que nos encanta , portanto, destinado a uma quantidade to pequena
de gente e se contrape to fortemente barbrie dominante, teremos
do que orgulhar-nos, aps esses milnios de nossa presena organizada
sobre a terra?
Quais
seriam as vitorias humanas que poderiam evocar o mais justo orgulho,
as que melhor expressariam a qualidade de nossa evoluo desde os primrdios?
Nem arquitetnicas, nem mdicas, nem matemticas, nem qumicas, nem
espaciais, nem eletrnicas, nem informticas, antes de tudo, so as
vitorias morais. Mesmo que parciais, elas despontaram, mais fortemente
do que nunca, no ltimo sculo.
Se
h algo que possa ser considerado essencial ou que chamamos civilizao,
esse algo a construo, lenta mas irreversvel, do edifcio da dignidade
de cada ser humano e de suas comunidades. No h obra mais bela que
a conscincia tica. Podemos dar nomes diversos a esse tesouro. Cidadania
e Direitos Humanos so duas expresses de forte significado, que a
contemporaneidade cunhou para emblematizar tal riqueza.
Evidentemente,
como j afirmado, falta muito. Contudo, ainda que a maioria dos pases
ignore solenemente, na prtica, a questo dos direitos humanos, os poderosos
vivem tempos incmodos. As violaes j no so bem toleradas e consentidas
pelo senso comum, como outrora ocorria. A cada dia novas vozes se elevam
e outras mos se entrelaam, em clamor de universal solidariedade.
No
potica, apenas, poltica, e da melhor qualidade. O muito que h
por fazer no deve roubar-nos o otimismo realista, a esperana obreira,
que seminal hoje e ser amanh. Nada se constri sem f. Que lugar
ocupa, nisso tudo, a Declarao Universal dos Direitos Humanos?
Toda
grande causa - e essa a maior delas - necessita seus marcos de referncia.
Eles so, em primeiro lugar, legados histricos, so patrimnio do espirito,
so reservas morais acumuladas.
A
Declarao de 1948 coroa, como sntese, o sofrido labor de milhes por
uma sociedade mais justa, e aponta, como um competente mapa, os caminhos
do presente e do futuro desejados. No est s, no entanto, como referncia
de civilidade. Ao seu lado e por ela engendrado, um corolrio de pactos,
convenes, tratados internacionais, d testemunho de nosso valor como
criaturas racionais e afetivas e de nossas imensas potencialidades.
papel, diro alguns. luta transformada em letra, diremos ns. E constatao
e proposta. E roteiro.
Foram
necessrios milnios para que se itissem, no campo do direito, paradigmas
universais de carter igualitrio. Esses paradigmas esto expressos
em epstolas humanizadoras que nos comprometem a no esquecer o melhor
de nossa histria, que contnua como promessa e possibilidade. Sistematizam,
do ordenamento e justificam poderosamente nosso fazer social. Atas
da humanidade, o que so! A Declarao Universal dos Direitos Humanos
desponta, entre todas, como a mais magnfica.
Alguns
telogos progressistas dizem que a Bblia continua a ser escrita, mesmo
que no consigamos perceber a sacralidade de muitas aes e reflexes
que produzimos com os signos da modernidade.
Se
acreditarmos nisso, mui respeitosamente, poderemos considerar tal texto,
ofertado por mos do presente, como uma obra divinamente inspirada.
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