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A Gramtica dos Direitos Humanos* 315y1y

Oscar Vilhena Vieira**

1. O que significa ter um direito?

2. O Papel dos Direitos

3. Prevalncia dos Direitos

4. Crtica a Idia de Direitos Humanos

5. A Eroso dos Direitos Humanos

6. Direitos Humanos no Mundo Contemporneo. Uma Anlise Normativa

1. O que significa ter um direito ? 613o2p

Embora todos os dias falemos sobre direitos parece ser mais fcil compreender o que ter um objeto ou poder criticar o governo livremente, do que ter um direito propriedade ou liberdade de expresso. O objeto ns podemos ver e pegar e criticar o governo, ns simplesmente criticamos, mas o direito algo mais abstrato. Por outro lado, ns sabemos que as pessoas no podem pegar o que nosso ou impedir a nossa crtica sem a nossa permisso ou sem uma excelente razo. Ou seja, as demais pessoas tm o dever de respeitar a nossa propriedade ou a nossa liberdade, porque estes so nossos direitos. Da se dizer que ter um direito ser beneficirio de deveres de outras pessoas ou do Estado.[1] Assim se eu tenho o direito de andar pelas ruas, conclui-se que as demais pessoas tm, por alguma razo, o dever de respeitar esse meu direito, no podendo, restringir a minha liberdade. Se eu sou um deficiente fsico, por exemplo, e as caladas no tem rampas que permitam que me locomova com minha cadeira de rodas, algum est deixando de cumprir o seu dever e, portanto, restringindo ou violando o meu direito. Se tenho direito educao, isto justifica que algum tenha uma obrigao, para comigo, de estabelecer escolas e bibliotecas, treinar e pagar professores, para que eu possa aprender. Se cada um de ns tem o direito de votar, estes votos devem ser levados em considerao na escolha dos que iro nos governar e, mais do que isto, significa que aqueles que foram eleitos tm uma obrigao de nos representar.

Temos direitos a coisas distintas, como propriedade, liberdade de expresso, ao voto, educao ou sade, prestao jurisdicional. Esses direitos podem aparecer formalmente como: direito-pretenso, liberdade, poder, ou imunidade, gerando, por sua vez, obrigaes correlatas em terceiros, na forma de: dever, no-direito, sujeio e incompetncia. Ou, seja[2]:

1. A tem um direito-pretenso a X, em relao a B, se e somente se B tem um dever de X em relao a A;

2. A tem uma liberdade a X, em relao a B, se e somente se B tem um no direito de que A deva X;

3. A tem um poder a X, em relao a B, se e somente se B est sujeito a que sua posio jurdica possa ser alterada por A, ao realizar X;

4. A tem uma imunidade a X, em relao a B, se e somente se B tem uma incompetncia para alterar a posio de A em relao a X.

Portanto, para cada um desses direitos existir distintas formas de deveres. Nesse sentido muito difcil falar em direito sem imediatamente pensar em uma obrigao ou em um dever, que pode significar simplesmente o dever de se abster de uma determinada conduta (no torturar), como na obrigao de fazer algo (obrigao da polcia de investigar um caso de tortura).

Destaque-se, ainda, que para cada um desses direitos h distintas pessoas ou instituies que estaro obrigadas a respeit-los. H direitos que obrigam apenas uma pessoa, como os derivados de um contrato. Outros obrigam o Estado, como o direito educao bsica, expresso em nossa Constituio. H direitos, por sua vez, que criam obrigaes universa is, ou seja, que obrigam a todas as pessoas e instituies. O direito a no ser torturado, como reconhecido por diversos instrumentos, entre os quais a Conveno Contra a Tortura, um bom candidato a essa categoria.

2. O Papel dos Direitos

Os direitos, como hoje compreendidos, constituem uma formidvel construo da modernidade, que est diretamente associada ao sentimento de que as pessoas no podem dispor de uma esfera de proteo, que assegure determinados valores ou interesses fundamentais.

A principal distino entre a moderna linguagem dos direitos, que surge com as declaraes e constituies do final do sculo XVIII, e os privilgios existentes no perodo medieval, a idia de universalidade e reciprocidade intrinsecamente ligada aos direitos. Enquanto os privilgios constituem proteo de interesses de um determinado grupo ou classe, os direitos se apresentam como algo que deve a todos proteger. No mais os direitos tende m a estabelecer relaes horizontais e de reciprocidade, em contrapartida com as relaes verticais e hierarquizadas decorrentes de um universo regulado por privilgios. Evidente que essas caractersticas da gramtica dos direitos se colocam num plano ideal, e muitas vezes o que chamamos de direitos funcionam na realidade como privilgios. No entanto, ainda no plano ideal, a adoo de um sistema de direitos permite o estabelecimento de relaes de reciprocidade entre os diversos sujeitos, ou seja, permite a construo de um mundo fundado na igualdade entre os seres humanos.

A idia Kantiana de que "toda a ao que por si mesma ou por sua mxima permite que a liberdade de cada indivduo possa coexistir com a liberdade de todos os demais de acordo com uma lei universal direito"[3] encontra na gramtica dos direitos um instrumento indispensvel a sua realizao. O papel formal dos direitos de harmonizar e preservar uma esfera de interesses da pessoa, tambm pode ser aceita, com ponderaes, por alguns utilitaristas. A distino bsica se dar mais em funo do fundamento ltimo do sistema de direitos, do que em relao a sua funo de mediao de relaes de reciprocidade. Enquanto para Kant os direitos servem para preservar e realizar a autonomia, para Stuart Mill os direitos devem harmonizar interesses e no valores pretensamente intrnsecos. Mill renuncia a "...idia de direito abstrato, como algo independente da utilidade. Eu encaro a utilidade como ltima instncia em todas as questes ticas...utilidade baseada nos interesses permanentes do homem..."[4] Nesse sentido os direitos so instrumentos de realizao de interesses e no de valores como a dignidade ou autonomia.

Isto s possvel porque os direitos e o Direito (o chamado sistema jurdico) em si so criaes voltadas a organizar ou a mediar relaes entre pessoas. Neste sentido no seria incorreto dizer que os direitos so uma conseqncia do fato das pessoas atriburem umas as outras uma esfera de valores e decidirem, ainda que implicitamente, que isto deve ser respeitado, seja por uma razo tica ou utilitria. desta relao de reciprocidade, onde nos vemos como pessoas dignas de direitos - na mesma medida que reconhecemos estes mesmos direitos as outras pessoas - que surge todo o sistema de direitos no sentido contemporneo. Para alguns, dessa mesma relao de reciprocidade que surge o prprio Direito enquanto sistema.[5]

Assim, o papel dos direitos assegurar esferas de autonomia ou dignidade, para os Kantianos, ou de interesses, para os utilitaristas, que permitam aos seres humanos se relacionarem e conviverem sem que essa liberdade ou que esses interesses se encontrem constantemente ameaados pelas liberdades e interesses dos demais. Invocar valores ou interesses a partir da linguagem dos direitos significa reivindicar um situao especial para esses valores ou interesses.

3. Prevalncia dos Direitos

As pessoas que tm um direito encontram-se, normalmente, numa posio mais confortvel em relao queles que tem obrigaes. Como num jogo de baralho, onde h determinadas cartas que tm mais valor que as cartas dos adversrios, a presena de direitos um trunfo.[6] Assim, quando numa disc usso reivindicamos um interesse ou um valor que nos diz respeito, como a integridade fsica, que protegida por um direito, esta reivindicao deve prevalecer sobre outros valores ou interesses que no so protegidos por direitos. Por exemplo: reduzir os gastos do Estado pode ser um objetivo ou um interesse legtimo do governo, mas isto no pode ser feito fechando escolas ou deixando de pagar professores, pois o governo tem um dever de prestar este servio, o que decorre do direito que todas as crianas e jovens tm educao. O mesmo exemplo poderia ser dado quanto ao objetivo de reduzir a criminalidade, que uma meta mais do que desejvel, mas isto no pode ser feito por intermdio da tortura ou da eliminao de suspeitos, pois todas as pessoas tm direito a sua integridade fsica e moral, portanto o Estado deve respeit-las. No se busca aqui argumentar que os direitos, em geral, sejam absolutos, que prevaleam sobre todos os outros interesses; por outro lado deve-se destacar que muitas vezes os direitos encontram-se em tenso uns com os outros.

Cabem tambm destacar que a relao entre direitos e obrigaes mediada e no automtica. Da a adequao da proposio de Raz de que ter um direito significa ter uma boa justificativa, uma razo suficiente, para que outras pessoas estejam obrigadas, e portanto tenham deveres, em relao aquela pessoa que tem um direito. Os direitos no geram obrigaes diretas nas outras pessoas, mas razes para que as outras pessoas se encontrem obrigadas.[7]

Neste sentido um direito no se confunde com uma presuno absoluta, ou com a idia de uma esfera intransponvel e incompatvel com as liberdades e direitos alheios. Se direitos s existem em sociedade[8] e se pressupem uma deciso da sociedade de preservar certos valores ou interesses por intermdio do meio legal, fundamental que eles sejam em primeiro lugar capazes de se conciliar com direitos alheios e em segundo lugar compatibilizar-se com interesses coletivos, ainda que numa posio de superioridade presumida em relao a outros interesses da sociedade. Da a importncia de se compreender os direitos como uma razo ou como uma justificativa suficientemente importante para que os outros tenham o dever de respeit-los.

Entender os direitos desta forma nos facilita compreender de que maneira os direitos se harmonizam entre si e com outros interesses legtimos existentes em uma sociedade. Num mundo onde existem uma profuso de valores e interesses e porque no dizer uma profuso de valores e interesses com presuno de legitimidade, somente alguns desses valores e interesses so reconhecidos como direitos. Desta forma, quando houver uma competio entre diversos valores e interesses, aqueles que forem protegidos por direitos, tem uma boa razo para prevalecerem sobre os demais valores e interesses.

Mas mesmo valores e interesses protegidos como direitos muitas vezes podem ceder espao para outros que se demonstram, numa determinada situao, mais relevantes. s pensar nos limites que as democracias contemporneas pem sobre o direito da propriedade. O direito propriedade presume uma obrigao dos demais de respeito propriedade, porm, razes como o bem estar coletivo podem limitar o uso da e impor encargos mesma. Num conflito entre valores e interesses, reivindica-los por intermdio da gramtica dos direitos, significa estabelecer uma prioridade destes interesses e valores guardados por direitos sobre outros desprovidos de uma proteo especial.

Essa definio de direitos, alm de nos auxiliar a compreender o papel dos direitos como fundamento para a ao individual e coletiva, tambm nos permite solucionar conflitos entre direitos. Se adotssemos uma definio mecnica, em que direitos impe deveres diretamente, ficaria difcil explicar porque, na prtica, muitas vezes os sujeitos de direitos vem seus direitos legitimamente limitados pelos direitos dos outros. Se tenho direito a plena liberdade de expresso, como justificar que este direito possa ser restringido, se pela minha definio mecnica, todas as outras pessoas se encontram obrigadas automaticamente a respeitar tal liberdade? Caso razes como a integridade moral de outras pessoas ou mesmo a segurana da coletividade possam ser legitimamente invocadas para restringir o meu direito liberdade de expresso, a linguagem dos direitos como fonte geradora de deveres, ficaria absolutamente destituda de sentido. Porm se adotarmos uma definio de direito que no seja mecnica, mas que transforme as pretenses articuladas por intermdio da linguagem dos direitos, em razes prioritrias, razes com pretenso de superioridade, ento poderemos entender porque em face de outras razes tambm importantes, em determinadas circunstncias, nossos direitos so algumas vezes obrigados a se conciliar com razes adversas.

Portanto, se correto afirmar que o direito estabelece um conjunto de razes que cada um de ns deve levar em considerao, em conjunto com outras ordens de razes, antes de agir, deve-se ter em mente que as razes articuladas pelos direitos so sempre prioritrias, devendo se encontrar entre as primeiras a serem consideradas por cada um de ns antes de tomarmos uma deciso. Constituem, assim, razes a priori, que devem ter um peso maior do que o das demais razes.[9]

3.Fundamentos Filosficos dos Direitos e Humanos

Quando associamos a expresso humanos a idia de direitos, a presuno de superioridade, inerente aos direitos em geral, torna-se ainda mais peremptria, uma vez que esses direitos buscam proteger valores e interesses indispensveis realizao da condio de humanidade de todas as pessoas. Agrega-se, assim, fora tica a idia de direitos, ando estes direi tos a servir de veculos aos princpios de justia de uma determinada sociedade.

Numa definio preliminar os direitos humanos poderiam ser compreendidos como razes peremptrias, pois eticamente fundadas, para que outras pessoas ou instituies estejam obrigadas, e portanto tenham deveres, em relao aquelas pessoas que reivindicam a proteo ou realizao de valores, interesses e necessidades essenciais realizao da dignidade, reconhecidos como direitos humanos.

Alguns destes valores, interesses e necessidades, protegidos como direitos humanos, so to relevantes que no seria incorreto afirmar que se sobrepem as demais ordens de valores, interesses e necessidades. O direito de no ser torturado, por exemplo, se coloca como um obstculo absoluto face aos interesses do Estado de descobrir um crime. A liberdade de religio tambm uma vedao a que o Estado determine uma religio oficial. Porm o exerccio da liberdade religiosa no pode ser utilizado de forma a infringir a liberdade das outras pessoas. Da a necessidade de conciliao entre direitos.

A grande dificuldade, que tem monopolizado os debates entre filsofos e tericos do direito, pelo menos nestes ltimos dois milnios, saber que direitos so estes, que se sobrepem aos demais interesses e valores, de onde eles vm e se precisam de alguma forma de reconhecimento positivo para que possam existir.

Exemplo desta discusso sobre a origem dos direitos humanos pode ser encontrada desde a Grcia antiga, como na tragdia Antgona, de Sofcles.

Morto Polcines, irmo de Antgona, numa batalha contra o reino de Tebas, o rei Creonte baixa um dito determinando que o corpo do traidor fique insepulto, para ser devorado pelos ces e abutres. Revoltada, Antgona enterra o irmo. presa pelos soldados do rei e levada a sua presena, que indaga: sabias que um dito proibia aquilo? Antgona responde que sabia. Como ignoraria? Era notrio. O rei ento indaga Como ousastes desobedecer s leis?, ao que Antgona por fim responde:

Mas Zeus no foi o arauto delas para mim, nem essas leis so as ditadas entre os homens pela Justia... e nem me pareceu que tuas determinaes tivessem fora para impor aos mortais at a obrigao de transgredir normas divinas, no escritas, inevitveis; no de hoje, no de ontem, desde os tempos mais remotos que elas vigem, sem que ningum possa dizer quando surgiram

A resposta de Antgona, alm de corajosa, tem um profundo sentido crtico, pois questiona, de forma veemente, a idia de que direito tudo aquilo que colocado pelo poder constitudo, limitando o fenmeno jurdico a uma mera expresso do poder, a uma questo de fato. Na linguagem de Kant "uma teoria emprica pura do direito" que reduza o direito ao fato social, "como a cabea de madeira na fbula de Fedrus, pode ter uma bela aparncia, mas no ir infelizmente conter crebro."[10]

Porm, ao buscar dar outro fundamento de validade ao direito, que no o poder, Antgona vacila entre a transcendncia divina e a Justia, que tambm uma deusa. Ao fundar os direitos na autoridade divina e coloc-los como entidades atemporais, Antgona pressupe a crena e a prpria existncia de deuses. Muito embora este tipo de argumento tenha sido aceito por um longo perodo da histria, principalmente durante aquele perodo em que prevaleceu no ocidente o domnio quase que absoluto do cristianismo, este direito de origem divina perde o seu principal e numa sociedade dominada pelo racionalismo.

Com o fim da hegemonia crist, h uma ruptura dos paradigmas de verdade impostos pelo pensamento dogmtico. E com isto a idia de direitos naturais decorrentes de deus perde a sua sustentao. J no Renascimento o pensamento de base crist comea a ser desafiado. Os fundamentos do poder e da prpria arte, que estavam diretamente submetidos ao domnio cultural da igreja, comeam a se esgarar. Basta para isto ter em mente as figuras e as obras de Michelangelo e Maquiavel. O que une o gnio da arte ao criador da cincia poltica moderna, foi a capacidade destes dois homens, no apenas de se libertar dos paradigmas dominantes nas suas esferas de ao, mas de reencontrar o humano, separando-o do religioso. Se compararmos a arte pr-renascentista com as pinturas e esculturas produzidas por Michelangelo, podemos perceber que seus personagens so homens e mulheres que no so feitos a imagem e semelhana de um deus idealizado, mas so o resultado da sobreposio de tecidos, msculos e veias e que tm um movimento que resulta de uma vontade estritamente humanas. Era o homem de carne e osso que o interessava. Basta pensar em seu Moiss, na escultura do escravo em fuga, ou mesmo no deus da capela Sistina, para reencontrarmos o humano, mesmo nas figuras divinas.

Da mesma forma Maquiavel, no Prncipe, nada mais fez do que desvendar o poder. Assim como Michelangelo, ao descrever o modo como o Prnci pe conquista e se mantm no poder, Maquiavel esta dissecando o seu objeto de anlise. Afastando as vises religiosas que fundamentavam o poder e buscando demonstrar a forma pela qual esse poder efetivamente exercido. Como salientou o insuspeito Rousseau, ao dar lies ao Prncipe, sobre como alcanar o poder, Maquiavel estava na realidade demostrando ao povo a forma pela qual o poder sobre ele exercido. Qualquer que tenha sido a inteno de Maquiavel o fato que ele nos demonstrou que o poder do Estado e a legitimidade dos reis no decorrem da vontade divina ou mesmo da tradio, seno da ao humana.

Neste contexto os jusnaturalistas modernos, Hobbes e especialmente Locke, iro fundar o direito no mais numa entidade transcendente, mas na razo humana. Utilizando-se da abstrao do contrato, especialmente Locke, aponta que se seres racionais fossem submetidos a uma situao de natureza, ou seja, a ausncia do Estado, certamente eles acordariam em criar uma entidade voltada a regular a vida em sociedade, desde que limitada pelo direito.[11] A criao do Estado e do direito, assim, a a ser compreendida como resultante da vontade humana. Evidente que nenhum destes autores seria ingnuo o suficiente para acreditar que o estado de natureza tenha realmente existido. Mas a utilizao desta abstrao ser ve para demonstrar como a razo funcionaria caso ela fosse consultada, no vazio de instituies e outras condies que limitam a sua liberdade.

A grande diferena entre Hobbes e Locke o modo como cada um destes autores descreve o ser humano. Dotados de menos qualidades morais, os indivduos hobbesianos viveriam num estado de guerra de todos contra todos, que para ser pacificado exigiria um Estado forte. J os indivduos descritos por Locke, que no estado de natureza sabem diferenciar o justo do injusto, mas no tm quem resolva um conflito de modo imparcial quando este aparecer, vivendo num mundo precrio, optariam pelo seu ser aperfeioamento, atravs da criao de uma entidade imparcial, que auxiliasse no bom relacionamento entre os indivduos.[12]

O que importa, para efeito desse ensaio, que para ambos os autores ser a razo que ditar qual o fundamento ltimo do direito. Como explicita Locke "O estado de natureza tem uma lei de natureza para govern-lo, que a todos obriga; e a razo, que essa lei, ensina a todos os homens que a consultem, sendo todos iguais e independentes, que nenhum deles deve prejudicar a outrem na vida..."[13]

Da mesma forma Kant colocar a razo como ponto central sobre sua reflexo sobre direitos. Para eles as leis da natureza no constituem algo inerente natureza, "mas construes da mente utilizadas para o propsito de entender a natureza"[14] O estabelecimento de regras ticas no deriva da experincia, mas de proposies lgicas a priori, que possam ser adotadas como lei universal. Esses imperativos categricos, na linguagem de Kant, so juzos formais, que no estipulam o contedo dos direitos, mas a frmula pela qual a razo humana pode descrever esferas recprocas de autonomia para os indivduos.

O que importa para Kant o estabelecimento de uma lei necessria para todos os seres racionais para que estes possam julgar as suas aes "segundo mximas tais que possam os mesmos querer que elas devam servir como leis universais."[15] Tomando os "homens com fins em si mesmos" e obedecendo a mximas construdas livremente e que possam ser universalizveis, estaremos construindo racionalmente a esfera tica, na qual se insere o direito. Conforme Kant o "direito portanto a soma total dessas condies dentro das quais a vontade de uma pessoa possa ser reconciliada com a vontade de outra pessoa de acordo com a lei universal da liberdade"[16] No sentido kantiano, os direitos so fruto dessa razo tica, da no deverem ser confundidos com direitos transcendentes no sentido religioso, mas como construo humana, como uma decorrncia do processo de emancipao da humanidade, em que os homens se utilizam do direito como instrumento de realizao da liberdade ao mesmo tempo em que serve de auto-limitao dos interesses.

Esse racionalismo levado a prtica impe necessariamente que o direito seja fruto da vontade humana, como pretendia Rousseau. "J que nenhum homem tem autoridade sobre seu semelhante, e uma vez que a fora no produz direito algum, restam ento as convenes como base de toda a autoridade legtima entre os homens."[17] Sendo todos os homens iguais, ou seja, tendo o mesmo valor moral, para que se justifique uma regra que vincule a conduta de todos, fundamental que todos participem de sua formulao. Desta forma amos de um jusnaturalismo substantivo, comprometido com o contedos dos direitos que deveriam ser protegidos, para um jusnaturalismo racional ou formal, que se concentra na construo de procedimentos racionais que favoream a produo de decises justas. Deve-se destacar, no entanto, que em nenhum momento esses autores abrem mo da idia de dignidade humana. Pois a igualdade e o valor moral atribudo a todos que justifica a idia de contrato social ou o estabelecimento de leis universais.

As Revolues sa e Americanas, assim como as declaraes e constituies que delas derivam so fruto dessa idia de um homem racional, emancipado e livre para decidir seu prprio destino. Ao redigir a Declarao de Direitos de Virgnia, de 1776, logo aps a ruptura dos laos com a metrpole, Jefferson acolhe a argumentao dos jusnaturalistas ao afirmar que "todos os homens so por natureza igualmente livres e independentes e tm certos direitos inatos de que, quando entram no estado de sociedade no podem, por nenhuma forma, privar ou despojar a sua posteridade, nomeadamente o gozo da vida e da liberdade, com os meios de adquirir e possuir a propriedade e procurar e obter felicidade e segurana."[18] Da mesma forma os ses ao redigirem a Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado, de 1789, estabeleceram que todos "os homens nascem e so livres e iguais" e que o fim de toda a "associao poltica a conservao dos direitos naturais e imprescritveis do homem"[19], numa clara sintonia com a idia de direitos como fruto da razo, declarada por intermdio da lei, expresso da vontade geral rousseauniana.

O Estado e os direitos so, assim, obras humanas que tm por nica finalidade a preservao da esfera de dignidade das pessoas. Apesar de Jefferson se utilizar da idia de direitos inatos, que se encontram em estado de natureza, trata-se de uma utilizao retrica, que esconde uma construo tica. Evidente que os homens no so iguais, como afirmado por Jefferson, do ponto de vista de sua riqueza, poder complexo fsica inteligncia, etc., mas sim do ponto de vista moral. Como destaca Habermas, os direitos bsicos no so uma ddiva transcendente, mas uma consequncia da deciso recproca dos cidados iguais e livres de "legitimamente regular suas vidas em comum por intermdio do direito positivo"[20]. O Contrato social uma metfora dessa deciso, assim como os momentos constitutintes, em que se declaram direitos, so tentativas de dar concretude aos ideais de autonomia; do livre estabelecimento das leis sob as quais a comunidade pretende viver.

4. Crtica a Idia de Direitos Humanos

Essa razo abstrata ser, no entanto, intensamente criticada por autores conservadores como Edmund Burke e mesmo por progressistas como Hume, Bentham e Marx. Para Burke as instituies decorriam de um longo processo de sedimentao histrica. O direito era algo que se herdava das geraes anteriores, a partir de um processo de erro e acertos que iria apurando a lei e o governo. Pretender que todas as instituies fossem recriadas de um s ato, como o poder constituinte, que a materializao da vontade geral rousseauniana, pretender que a razo de um grupo de homens, num determinado momento histrico, se sobreponha a sculos de experimentao.[21] Como dizia um de seus seguido res, fazer uma constituio no como fazer um pudim, no basta que se siga uma receita para que o resultado seja bom. Por fim, afirma que a Declarao poderia levar as pessoas a crer que eles realmente tinham aqueles direitos, o que provocaria uma grande desordem se viessem a exigi-los.

A crtica progressista ou radical, embora tenha uma finalidade distinta, tambm desconfia desta razo abstrata, da qual os jusnaturalistas derivam direitos. Hume critica Locke e os demais contratualistas tanto em relao ao uso que fazem da racionalidade, ao dela derivarem o direito natural, quanto a idia de contrato, que alm de num haver existido, tem por nica funo mistificar o verdadeiro exerccio do poder. No h para Hume como derivar obrigaes morais e polticas da razo abstrata proposta pelos contratualistas, pois os valores que dela derivam e que apontam como obrigatrio, no am de justificao uma determinada forma de organizao da sociedade e exerccio do poder,[22] como um dia esses mesmos direitos naturais serviram para justificar o poder absoluto dos reis.

Bentham, por sua vez, descreve os direitos tais como expresso na Declarao sa como falcias anrquicas. Ao seu ver a natureza colocou a humanidade sob o governo de dois princpios soberanos, que so a dor e o prazer. Nesse sentido as decises morais so aquelas que derivam da maior felicidade, ou maior prazer. Os sistemas jurdicos ao invs de dar ateno aos "caprichos" de uma falsa razo, "escurido" devem se fundar no princpio da utilidade, nico derivado da verdadeira razo.[23] Para Bentham o bem estar da sociedade s pode ser alcanado a partir do sacrifcio de todos e no pelo fortalecimento do egosmo de cada um, como assegurado pela Declarao de 1789.

Este tambm ser o ponto bsico da crtica de Marx, ao fazer uma anlise da declarao sa, em sua obra Questo Judaica. Ao garantir direitos que separam a esfera pblica da privada, a Declarao estaria apenas mantendo uma situao de natureza dentro da nova esfera privada, assegurada pelo Estado, que deve preserv-la, sem intervir. A esfera cercada por direitos burgueses tem por funo bsica garantir o mercado, que nada mais do que uma extenso do estado de natureza, onde deve prevalecer o mais forte, aquele que tenha domnio sobre os meios de produo. Ao vender a sua fora de t rabalho, ou seja, ao realizar um contrato que protegido pela Declarao de Direitos, como parte intrnseca do direito de propriedade, as pessoas esto indiretamente alienando tambm seus demais direitos. "O direito humano propriedade privada, portanto, o direito de desfrutar o seu patrimnio e dele dispor arbitrariamente, sem atender aos demais homens, independentemente da sociedade...[sendo] a segurana o conceito social supremo da sociedade burguesa"[24] como meio de preservao da sociedade.

Estas crticas direita e esquerda da Declarao, somadas a uma reao historicista no pensamento jurdico alemo, retiraram credibilidade desse direito racional, com pretenses universalistas. Assim, para esses autores, a legitimidade do direito deve derivar ou de sua sincronia com os valores e a herana cultural de uma determinada comunidade, do princpio da utilidade - ou felicidade para o maior nmero - ou de uma total reformulao da sociedade, a partir da igualizao material.

Nesse contexto de diversos princpios e ideologias com pretenso de validade, mas que no entanto so auto excludentes, surge uma espcie de descrena em verdades superiores e absolutas. O mundo que se abre com o sculo XX cetico, da a fora do positivismo como mtodo interpretativo do direito. Nesse sentido, no mais se deve indagar sobre a legitimidade ou justia do direito, mas sobre a sua eficcia, sobre a sua fonte de produo. O que nos recoloca na posio de Antgona, ou seja, de nos vermos obrigados a um direito que tem como nico ttulo de legitimidade o fato de ser posto por aqueles que se encontram no poder.

A importante distino, no entanto, que a partir de Rousseau a soberania no mais compreendida apenas da perspectiva que lhe foi atribuda por Bodin, ex parti principe, mas como soberania popular, ou seja, no final do sculo XIX, incio do sculo XX, a lei ganha validade quando produzida por um parlamento que represente a nao, e este seu critrio ltimo de validade.

5. A Eroso dos Direitos Humanos

Embora a idia de que as pessoas tm direitos que lhe so inerentes pelo simples fato de serem humanas poder ser rastreada desde a antigidade, no incio de nosso sculo o paradigma dominante era de que os direitos decorriam da vontade dos Estados, ainda que estes Estados no correspondessem mais ao modelo absoluto hobbesiano, mas a um Estado que tm no parlamento sua esfera mxima de legitimao. H que se destacar, no entanto, que o conceito de democracia parlamentar prevalecente poca era um conceito bastante formal, que se adaptava a transio do Estado liberal para o Estado intervencionista. Mais do que isto o ambiente intelectual e poltico na Europa nas primeiras dcadas do sculo tambm no contribuam, para uma percepo substantiva dos direitos, enquanto uma esfera de proteo inerente ao ser humano. H, neste sentido, uma srie de eventos que precedem o perodo da II Guerra mundial que podem nos ajudar a compreender, como puderam os direitos de milhes de pessoas serem simplesmente destroados pelos regimes totalitrios e autoritrios que assolaram os diversos continentes. Max Weber escreve, no primeiro ps-guerra, sobre o processo de desencantamento por que a o mundo. Constata que a prevalncia de uma racionalidade instrumental[25], tanto na esfera da cincia, como no mbito do funcionamento da empresa, provocou uma ruptura com os parmetros intelectuais do sculo XIX. Neste mundo desencantado, a idia de uma verdade absoluta ou mesmo da exist ncia de direitos naturais, inerentes a qualquer pessoa, pelo simples fato de ser humana uma pessoa, totalmente destituda de credibilidade. A herana do direito natural a, portanto, por um vertiginoso processo de eroso nos anos 20 e 30, no apenas na Alemanha, mas com efeitos mais catastrficos neste pas. A cultura jurdica produzida pelo positivismo jurdico sintetiza esta superao do direito natural. Para o positivismo qualquer que seja o ttulo de legitimidade do poder, os direitos no am de uma expresso da vontade do Estado e, portanto, podem ser colocados e retirados a qualquer momento por este. Deve-se destacar que dentro dessa idia de que os direitos podem ser colocados e tirados a qualquer momento, Hitler, que dispunha de um corpo de juristas de planto, num determinado momento vislumbra a possibilidade de realizar os fins do nazismo utilizando-se dos mecanismos formalmente estabelecidos pela Constituio de Weimar, assim como pelas instituies organizadas sob os padres burocrticos bismarkianos. Desta forma o direito neutro serve de instrumento para um Estado nazista.[26]

Aps chegar ao poder em 1933, Hitler por uma srie de medidas legislativas, altera a Constituio (conquistando o quorum de dois teros) e promulga o Ato de Habilitao, que seria o embrio do sistema jurdico nazista. Por este ato constitucional, todas as medidas propostas por Hitler, que fossem incompatveis coma a Constituio, desde que obtivesse maioria parlamentar, poderiam ser transformadas em lei. Um dos primeiros atos de Hitler foi destituir diversos grupos do seu status de nacionais. Os judeus foram os primeiros a ser desnacionalizados. Como no mais tinham vnculos com o Estado alemo, como no haviam relaes jurdicas que os ligassem a qualquer outra rbita de proteo de direitos, eles encontravam-se excludos moral e juridicamente do sistema de proteo concebido pela Constituio de Weimar e mesmo do precrio sistema de proteo oferecido pela Liga das Naes. Excludos, judeus, ciganos, comunistas, homossexuais e outras minorias ficaram totalmente vulnerveis e aram a ser tratadas como objeto e no como sujeito de direitos, como descreve Hannah Arendt.[27]

A II Guerra mundial se diferencia das demais guerras exatamente pelo fato de que as principais vtimas foram nacionais mortos pelos seus prprios Estados. No perodo que vai de meados dos anos 30 at o final da II Guerra morreram cerca 45.000.000 de pessoas. Mais da metade desses mortos no foram soldados vitimados em combate, mas civis mortos pelos seus prprios Estados, primordialmente na Alemanha e na Unio Sovitica. Ento esses mais de 20 milhes de seres humanos foram vtimas da instituio que a princpio deveria proteg-las. Este um fato absolutamente aterrorizador. Essa idia de que o Estado se utiliza do direito, e por intermdio do direito ele consegue liquidar grupos raciais, religiosos e dissidentes polticos, numa escala assustadora, algo peculiar ao perodo da II Guerra.[28]

6 Direitos Humanos no Mundo Contemporneo. Uma Anlise Normativa

6.1 A Carta da ONU e a Declarao Universal

O holocausto e as outras barbries do perodo, como os campos soviticos de trabalhos forado e m esmo a bomba atmica, causaram um profundo choque na conscincia da comunidade internacional. como reao a esta demonstrao de irracionalidade e da capacidade do homem de se auto destruir que surge a idia contempornea de direitos humanos. Trata-se de uma reao, ainda que filosoficamente no bem resolvida, ao vazio tico deixado pelo desencantamento que favoreceu o nazismo e todas as atrocidades do perodo.

O primeiro o no sentido da construo de um direito internacional dos direitos humanos foi a incluso, na Carta da Naes Unidas, do respeito e da observncia dos direitos humanos como uma das obrigaes da prpria ONU e dos Estados membros (artigos 1, (3), 55 (c) e 56 da Carta). Neste sentido, o Estado que se torna parte das Naes Unidas, aderindo Carta, a, no plano jurdico, a reconhecer os direitos humanos como uma obrigao internacional, que no mais pode ficar restrita esfera domstica das naes.

A Carta, no entanto, no explicitou o contedo dos direitos humanos. O que gera, de certa forma, um paradoxo, pois os Estados se obrigaram a respeitar direitos, sem que o seu contedo fosse conhecido ou sequer delimitado. Isto somente veio a acontecer trs anos depois com a adoo da Declarao Universal de 1948, por intermdio de uma resoluo da Assemblia Geral das Naes Unidas.

O artigo 68 da Carta da ONU previu a criao de uma comisso voltada para a questo dos direitos humanos. Para os fundadores das Naes Unidas, a Comisso de Direitos Humanos deveria iniciar seus trabalhos propondo uma carta de direitos que pudesse servir como paradigma para o mundo ps-guerra. Conforme manifestao do presidente Truman, dos Estados Unidos, ao fechar a Conferncia de So Francisco, ns temos boas razes para esperar a elaborao de uma carta internacional de direitos, que ser to parte da vida internacional, como a nossa (americana) Carta de Direitos de nossa prpria Constituio[29]

Se por um lado o Trumam acertou ao antever a importncia que a Declarao de 1948 assumiria no cenrio poltico internacional, errou rotundamente no que se refere a fora jurdica da Declarao. Muito mais tensa do que a discusso sobre o contedo do documento, foi a deciso sobre seu status jurdico: se um tratado multilateral, um apndice Carta da ONU, ou uma simples resoluo da Assemblia Geral, sem capacidade d e vinculara a conduta dos Estados, o que acabou prevalecendo. Como pretendia o bloco comunista, acompanhado pelos Estados Unidos, a Declarao no nasceu com pretenso de obrigar juridicamente os Estados. Alm das divergncias ideolgicas, no queriam as superpotncias se ver suas soberania limitadas por qualquer forma de agncia internacional de fiscalizao de suas prticas domsticas.

A Declarao de 1948, talvez por no ter alcanado fora jurdica, recebeu um amplo reconhecimento por parte da comunidade internacional. A Declarao foi aprovada pela unanimidade dos pases membros das Naes Unidas, com a absteno de apenas oito Estados: Unio Soviica, Checoslovquia, Russia Branca, Iugoslvia, Polnia, frica do Sul e Arbia Saudita, sendo que apenas os dois ltimos tinham problemas de ordem substantiva em relao ao documento. Para os sul-africanos a idia de que toda a forma de discriminao seria banida era, por razes bvias, inissvel. Para os sauditas, por sua vez, no aceitavam a liberdade para que se trocasse de religio, o que no constituiu um problema para que os demais pases islmicos tenham aprovado a resoluo. Hoje, todos estes pases reconhecem a Declarao Universal.

Assim que surgiu a Declarao Universal dos Direitos Humanos, com o objetivo de estabelecer um novo horizonte tico, a partir do qual a relao dos Estados com seus cidados pudesse ser julgada por um paradigma externo ao prprio direito de Estado. A Declarao, como j se disse, no surgiu com a pretenso de transformar-se em direito internacional, como uma hard law,, mesmo porque coincidindo com incio da Guerra Fria, dificilmente seria a possvel alcanar um consenso mais slido entre os dois blocos. Embora seja o principal instrumento e certamente o mais conhecido dos documentos de direitos humanos produzidos na esfera das Naes Unidas, no um tratado internacional, mas uma simples declarao decorrente de uma resoluo da Assemblia Geral das Naes Unidas. No sendo um tratado, no pde ser ratificada e, portanto, no tinha originalmente pretenso de obrigar os Estados juridicamente. Mas, sim, de servir como paradigma moral. Apesar disto muitos juristas lhe conferem fora de direito internacional pblico. Para uma primeira corrente, ao menos alguns dos dispositivos da Declarao transformaram-se em direito internacional costumeiro, em face do artigo 38 do Estatuto da Corte Internacional de Justia, que estabelece as fontes do Direito Internacional Pblico. Para outros a fora jurdica da Declarao decorre do fato desta constituir uma interpretao autntica da Carta da ONU. Ao aderir Carta da ONU os Estados se obrigaram a assegurar os direitos humanos, mesmo que no houvessem acordado sobre quais direitos. Ao adotarem a Declarao de 1948, deram substnc ia ao compromisso assumido em 1945. Portanto, tecnicamente, a Declarao deveria vincular as condutas dos que participam da comunidade internacional.[30]

Diferentemente do que argumentam alguns a Declarao de 1948 no constitu um mero exerccio de hegemonia ou imperialismo cultural do ocidente. Embora fundada sobre os alicerces do racionalismo iluminista e das Declaraes americana e sa do final do sculo XVIII, a participao dos representantes de pases do extremo oriente, mulumanos, latino-americanos e africanos, deu a Declarao uma conformao mais pluralista. O fundamento Kantiano aparece logo no prembulo da Declarao ao estabelecer que o reconhecimento da dignidade e dos direitos iguais e inalienveis de todos os membros da famlia humana o fundamento da liberade, justia e paz no mundo.

Foram reconhecido pela Declarao especialmente direitos civis. Do artigo 1 ao 20 temos vemos aqueles direitos que foram moldados a partir dos sculos XVII e XVII, pelas revolues liberais, porm com um nova linguagem, especialmente no que se refere a no discriminao de qualquer natureza. No arigo 21 reconece-se os direitos polticos e do 23 ao 27 os direitos econmicos sociais e culturais. O artigo 28 trata da solidariedade internacional, o 29 dos deveres para com a comunidade e o 30 uma clusula interpretativa.


* Texto escrito em homenagem a Andr Franco Montoro.

** Professor de Direito da PUC-SP, Master of Laws pela Universidade de Columbia, NY, Doutor pela Universidade de So Paulo, Secretrio Executivo do ILANUD e Procurador do Estado.

[1] Esta a formulao bsica de David Lyons, a partir da obra de J. Bentham, Rights, Claimants and Beneficiaries, American Philosophical Quartely, V 6, no. 3, 1969, 173.

[2] Esse quadro constitui uma verso simplificada por John Finnis, Natural Law and Natural Rights, Clarendon Press, Oxford, 1980, p. 199.

[3] Kant, The Metaphysics of Morals, in H. Reiss, Kant Political Writings, Cambridge University Press, Cambridge, 1970, p. 133.

[4] John Stuart Mill, Sobre a Liberdade, Vozes, Petrpolis, 1991, p. 54.

[5] Para esta inverso na proposio tradicionalmente reconhecida pela doutrina jurdica positivista, do qual os direitos subjetivos derivam do direito objetivo, ver Lon Fuller, The Morality of Law, Yale University Press, 1969.

[6] Ronald Dworkin, Rights as Trumps, in Jeremy Waldron, Theory of Rights, Oxford University Press, Oxford, 1984, 153.

[7] De acordo com Raz X tem um direito se e somente se X pode Ter um direito, e, outras coisas sendo iguais, algum aspecto do bem estar de X (seu interesse) uma razo suficiente para manter uma outra pessoa a ela obragada; Joseph Raz, The morality of freedom, Claredon Press, Oxford, 1986, 166.

[8] Em oposio a idia de direito de natureza em Hobbes, definido como a liberdade que cada homem tem de usar o seu prprio poder, da maneira que quiser, para a preservao de sua prpria natureza, ou seja, de sua vida; e consequentemente de fazer tudo aqu ilo que seu prprio julgamento e razo lhe indiquem como meios adequados para este fim., Leviat, Victor Civita, So Paulo, Cap. XIV, 1983.

[9] Para uma definio do direito enquanto razo para agir, ver Joseph Raz, Practical reason and norms, Princeton University Press, Princeton, 1990.

[10] Kant, ob. cit., p. 132.

[11] John Locke, Segundo Tratado sobre o Governo, Nova Cultural, So Paulo, 1991, Pargrafo 95 e ss.

[12] Idem, pargrafo 6.

[13] Idem, ibidem.

[14] Reiss, ob. cit., p. 17.

[15] Kant Fundamentos da Metafsica dos Costumes, Ediouro, Rio de Janeiro, 1996, p. 76

[16] Kant, in Reiss, ob. cit., p. 133.

[17] Rousseau, O Contrato Social, Martins Fontes, So Paulo, 1996, L. I cap. IV.

[18] Jorge Miranda, Textos Constitucionais Estrangeiros, Lisboa, 1974, p. 31.

[19] Idem, p. 68

[20] Jurgen Habermas, Between Facts and Norms, MIT Press, Cambridge, 1996, p. 119.

[21] Edmund Burke, Reflexes sobre a Revoluo em Frana, Editora Universidade de Braslia, Braslia, 1982, p. 88 e ss.

[22] David Hume, Da Origem do Governo, in Escritos Polticos, So Paulo, Abril Cultural, 1979, p. 228.

[23] Jeremy Benthan, An Introduction to the Principles of Morals and Legislation, cap. 1, in Henkin at alli, Human Rights, New York, Foundation Press, 1999, 52.

[24] Karl Marx, A Questo Judaica, So Paulo, ed Moraes, 1991, pp.43 e 44.

[25] Reinhard Bendix, Max Weber, Buenos Aires, Amorrortou, 1960, 64 e ss.

[26] Para uma anlise detalhada do papel dos juristas nesse perodo ver Ingo Muller, Hitler's Justice: the courts os the Third Reich, Cambridge, Harvard University Press, 1991 pp12 e ss.

[27] Celso Lafer, A recosntruo dos Direitos Humanos: um dilogo com o pensamento de Hannah Arendt, So Paulo, Cia. Das Letras, 1988, p.

[28] Eric Hobsbawm, The Age of Extrems, New York, Panteon, 1995, p.

[29] Henry Trumam, apud Geoffrey Robertsonn. Crimes against humanity. London, Pinguin Books, 1999.

[30] Para uma anlise da formao do direito internacional costumeiro ver Louis Henkin, Pugh, Scharter e Smit, International Law, St Paul, West Publishing co., 1987, p. 37 e ss; ver tambm Theodor Meron, Human rights and humanitarian norms as custumary law, Oxford, Claredon Paperbacks, 1989, p. 79 e ss..

Buscando conciliar o liberalismo com o igualitarismo a Declarao estabelece em seu artigo 1 que todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. So dotados de razo e conscincia e devero agir uns em relao aos outros com esprito de fraternidade. Esta a proposio moral que ir influenciar todo o edifcio dos direitos humanos construdo no sculo XX. As desigualdades naturais devero se corrigidas por uma igualdade socialmente construda por seres racionais, capazes de agir moralmente, fraternalmente.

A Declarao reconhecer ento os direito de no ser discriminado em funo de nenhuma forma de distino, como sexo, raa, cor, lingua, religio, opinio poltica, nacionalidade, origem social, propriedade, nascimento ou outra condio. Da mesma forma nenhuma distio poder ser feita em funo do status do estado ou jurisdio a qual a pessoa esteja ligada (artigo 2). A todos reconhecido o direito vida liberdade, segurana pessoal (artigo 3); ningu p oder se feito escravo (artigo 4); ningm poder ser submetido tortura, ou tratamento cruel ou degradante (artigo 5); todos devem ser reconhecidos como iguais perante a lei, assim como receber igual tratamento da lei (artigo 7).; Do artigo 8 ao 11 encontram-se as garantias bsicas do processo e do estado de direito, como, a garantia a todos de remdios legais efetivos assegurados por tribunais competentes, independentes e imparciais; a proibio de priso arbitrria; a presuno de inocncia; o princpio da prvia cominao legal, para que algum possa ser penalmente punido. Os direitos privacidade, liberdade de movimento, inclusive a deixar seu prprio pas e procurar asilo em outro pas, aparecem nos artigos 12, 13 e 14. Como reao ao processo de desnacionalizao, que permitiu o surgimento de milhes de aptridas na primeira metade do sculo, reconhece-se, no artigo 15, o direito nacionalidade. No artigo 16 aparece o livre direito a contrair matrimnio, em termos iguais para homens e mulheres, que tambm devem gozar de direitos iguais durante ou depois da disssoluo do matrimnio. Este, certamente, um dos dispositivos mais complexos, pois choca-se frontalmente com preconceitos culturais, tradies religiosas e normas legais de diversos Estados, em todos os continentes. O artigo 17, que reconhece o direito propriedade, o faz de uma forma muito distinta da Declarao sa de 1789, que atribua uma posio sagrada a esse direito. De acordo com o exposto na declarao Universal todos tm propriedade de forma individual ou coletiva, o que viabilizou o consenso sobre esse dispositivos entre liberais e socialistas. O artigo 18 tambm troxe problemas e foi a razo pela qual a Arbia Saudita no reconheceu, num primeiro momento a Declarao. Ao estabelecer a liberdade de pensamento, conscincia e religio, a Declarao tambm assegurou a liberdade para que as pessoas pudessem livremente mudar de crena ou religio, de forma individual ou coletiva, o que viola os cdigos religiosos mulumanos. Nos artigos seguintes temos a liberdade de expresso, assim como o direito de receber informaes imparciais por intermdio da mdia (artigo 19); e a liberdade de associao, sendo reservado o direito de no se associar (artigo 20).

No artigo 21 temos uma das deficincia da Declarao. Ao invs de falar abertamente em democracia, o que no seria aceito por diversos pases do bloco socialista, aquele momento, a Declarao preferiu assegurar a todos o direito de tomar parte no governo de seu pas, direta ou indiretamente, por meio de representantes livremente escolhidos, assim como estabeleceu que a vontade do povo deve ser a base para a autoridade do governo, o que deve se dar por intermdio de eleies livres e peridicas. Este, portanto, o nico artigo que fala em direitos polticos.

O direitos sociais, culturais e e conmicos tm incio no artigo 22 vo at o 27. So esses os direitos ao trabalho, a livre escolha da profisso, assim como proteo contra o desemprego; todos tem direito a igual remunerao por trabalhos iguais; todos tm direito a uma remunerao adequada e compatvel com uma exist6encai digna para si e sua famlia, suplementado, se necessrio, por outros meios de proteo social (artigo 23). O artigo 24, certamente o mais criticado, traz o direito ao descanso e ao laser, assim como a limitao as horas de trabalho e descanso remunerado. Na verdade essas so crticas preconceituosas, pois nenhum ser humano pode viver dignamente, sem que possa gozar de esferas de liberdade fora do trabalho. Sem dvida nenhuma a crtica de Marx ao direito de livre contratao, que permitia que pessoas fossem literalmente presas aos seu empregos por mais de 18 horas dirias, durante a Revoluo Industrial, teve um impacto junto aqueles que tiveram a responsabilidade de redigir a Declarao Universal. O artigo 25 fala novamente no direito a um padro de vida digna, que atenda as necessidades de sade, alimentao, moradia, vestimenta, e a servios sociais, incluindo a garantia contra o desemprego, a doena, a incapacidade, viuvez, velhice e outras dificuldades que se coloque fora do controle das pessoas. O artigo 27 refere-se educao. Trata-se de um dos dispositivos mais felizes da Declarao. A educao um direito de todos, deve ser gratuita, ao menos nos nveis elementar e fundamental. Devendo a educao elementar ser obrigatria. Trata ainda da educao tcnica e superior. A Declarao, no enta nto, no se satisfez em estabelecer direito a educao, mas tambm busca estabelecer alguns princpios e diretrizes que devem informar a realizao desse direito: a educao deve ser direcionada para o pleno desenvolvimento da personalidade humana e para o fortalecimento do respeito aos direitos humanos e liberdades fundamentais. Deve promover o entendimento, tolerncia e amizade entre as naes, grupos raciais e religiosos... Ou seja, a educao no apenas um instrumento voltado a formao tcnica ou mesmo a transmisso de conhecimento de uma gerao para a outra, mas sim um instrumento de formao moral dos indivduos. O que significa, de acordo com a declarao, formar pessoas que sejam capazes de respeitar os demais em seus direitos e em sua condio de seres humanos. O artigo 27 trata do direito de o cultura e as artes, assim como do direito as criaes cientficas, artsticas e intelectuais. Esta segunda parte do artigo 27 no deveria efetivamente fazer parto do rol de direitos reconhecido pela Declarao, pois dificilmente poderamos encontrar uma boa justificativa para coloc-lo ao lado de direitos to fundamentais exist6ncia de uma vida digna.

O artigo 28, violado desde o momento desde sempre, refere-se ao direito de todos a uma ordem social e internacional em que os direitos reconhecidos na Declarao possam ser plenamente realizados. Estabelece assim o direito s olidariedade internacional, pelo qual as naes mais desenvolvidas deveriam partilhar de seus recursos, muitas vezes construdos as custas dos menos desenvolvidos, com aqueles que se encontram numa condio menos favorvel.

O artigo 29 da Declarao estabelece que todos tm deveres com a comunidade, sem os quais os direitos no poderia se realizar. Mais do que isso estabelece que os direitos e liberdades podem ser limitados em funo dos direitos e liberdades dos demais. Esta limitao, no entanto, s ser possvel por intermdio da lei, quando necessrio para a preservao da moralidade, ordem pblica e bem estar geral numa sociedade democrtica. Aqui aparece ento, pela nica vez, o termo democracia no texto da Declarao.

Por fim h um dispositivo que estabelece que nada na Declarao deve ser interpretado de forma a autorizar qualquer Estado, grupo ou pessoa a engajar em atividade que violem direitos humanos.

A Declarao, com esse contedo, ou a ocupar um papel to importante no imaginrio da comunidade internacional aps a II Guerra e serviu de respaldo ideolgico no processo de descolonizao e mesmo na luta de resistncia contra os regimes autoritrios nas mais diversas partes do mundo, que deixou de ser um mero instrumento retrico e ou a ser incorporada pelos Estados enquanto direito em suas constituies.[1] Basta olharmos o exemplo da frica, onde dezenas de constituies foram promulgadas a partir da concepo de direitos humanos proposta pela Declarao, o que jamais significou o respeito incondicional a estes direitos. Pases na Amrica Latina que se reconstitucionalizaram nesse perodo, quase todos incorporaram a estrutura e a lgica da Declarao dentro de suas constituies. Talvez a Constituio brasileira de 1988 seja um ponto exemplar, no s de reproduo da lgica da Declarao e dos demais instrumentos internacionais de proteo da pessoa humana, mas de uma ampliao e atualizao de seus ideais. A nossa Constituio generosa e criativa em termos da confeco do mapa tico segundo o qual a sociedade deve se organizar. Alm de sua pormenorizada carta de direitos, por fora do pargrafo 2 do artigo 5, abre suas portas para que uma srie de direitos decorrentes do regime e dos princpios por ela adotados e dos tratados internacionais dos quais o Brasil seja parte em a ingressar em nosso ordenamento numa posio privilegiada.[2]

A Declarao Universal , porm, apenas um primeiro o nesse processo de constitucionalismo globalizado que vem sendo propulsionado pelos direitos humanos. H hoje diversas esferas internacionais de proteo pessoa humana. A nvel global temos o sistema das Naes Unidas, fundado na Carta da ONU, de 1945, na Declarao Universal de 1948 e nos diversos tratados de proteo especfica, onde se inclui tambm a proteo dos refugiados; h tambm sistemas regionais de proteo dos direitos humanos, sendo os mais evoludos aqueles que se encontram em funcionamento nos continentes europeu e americano; por fim, deve-se destacar o direito internacional humanitrio, estabelecido a partir das Convenes de Genebra, de 1949, que buscam dar proteo s pessoas que se encontram submetidas a conflitos armados.

6.2. Pactos Internacionais

O sistema global de proteo aos direitos h umanos ou a ter mais consistncia, no entanto, com a adoo da Conveno Internacional de Direitos Econmicos Sociais e Culturais e a Conveno Internacional de Direitos Civis e Polticos, ambas de 1966. Estes quatro documentos formam o International Bill of Rights, o cerne deste processo global de constitucionazao. Com contedos distintos, a primeira Conveno incorpora aqueles direitos que decorrem da tradio socialista, estabelecendo obrigaes positivas aos Estados. Seu grande defeito, semelhante a muitas constituies nacionais, foi dar carter programtico ou progressivo a estes direitos.[3] A Conveno de Direitos Civis e Poltico, por sua vez, abriga diretos decorrentes do movimento liberal e democrtico, j reconhecidos pelos constitucionalismos nacionais desde o sculo XIX, dando-lhes eficcia imediata. Criou este tratado um Comit de Direitos Humanos, que, entre outras funes, analisa relatrios preparados pelos Estados, assim como denncias individuais de violao dos direitos estabelecidos pela Conveno.[4] Diversas outras convenes foram adotadas pelas Naes Unidas nestes ltimos cinqenta anos. Cada uma delas voltada a tutelar direitos especficos ou grupos determinados de pessoas. Trazem tambm mecanismos prprios de fiscalizao e monitoramento. O sistema da ONU , no entanto, padece de grande fragilidade, posto que a prpria Carta das Naes Unidas determina que a Organizao seja ciosa com a esfera de soberania dos Estados, tal como reconhecido pelo artigo 2 da Carta.

6.4. Outras Iniciativas na Esfera da ONU

Nos anos sessenta, por intermdio das resolues 1235 e 1503, do Conselho Econmico e Social, estabeleceu-se que a partir de denncias que aparentemente revelam um padro consistente, repulsivo e confiavelmente atestado de violaes de direitos humanos..., ou seja, graves violaes de direitos humanos, o Estado estaria violando obrigaes contradas com a Carta e poderia, assim, sofrer investigaes, repreenses e mesmo sanes por parte da comunidade internacional.

Houve, nos ltimos anos, bastante progresso, especialmente a partir da Conferncia Mundial de Direitos Humanos realizada em Viena, em 1993. Entre estes citaria a criao de um Alto Comissariado para Direitos Humanos, que tem por funo articular as aes das Naes Unidas nesta esfera e do Tribunal Internacional Criminal, a partir das experincias dos Tribunais de Ruanda e da Ex-Iugoslvia. Desta forma o sistema global, que at 1998 no contava seno com parmetros normativos e agncias fiscalizadoras (comits e comisses), ou a poder tambm contar com uma instncia jurisdicional, ainda que em moldes bastante distintos daqueles existentes nos sistemas regionais de direitos humanos.[5] Ao menos para o crime de genocdio, os crimes contra a humanidade e os crimes de guerra, o sistema das Naes Unidas se fortaleceu neste ltimo ano.

Os sistemas regionais europeu e interamericano, porm, so melhor estruturados e tcnicamente mais viveis, aproximando-se ainda mais de um sistema internacional de carter constitucional. Como o sistema ONU, estes dois sistemas regionais so fundados a partir de tratados internacionais, que no apenas do o parmetro normativo, criam sistemas de monitoramento, mas tambm estabelecem instncias jurisdicionais de proteo dos direitos humanos, que j se encontram em funcionamento.???? /span>/font>

6.5. Sistema Interameicano de Direitos Humanos

No continente americano o sistema ou a se desenvolver a partir da adoo, pela Organizao dos Estados Americanos, da Declarao dos Direitos e Deveres do Homem, em 1948. Assim como a Declarao Universal, no a Declarao Americana um tratado internacional. Em 1959, sob os auspcios da OEA e dentro de sua estrutura constitucional, foi criada a Comisso Interamericana, com a funo primordial de implementar os direitos humanos no continente. Somente em 1969 que surgiu a Conveno Americana de Direitos Humanos, com fora jurdica de tratado internacional. Esta Conveno, que s entrou em vigor em 1978, reconheceu direitos de ordem civil, poltica e social, estes ltimos apenas de forma progressiva.[6]

A Conveno tambm estabeleceu uma Corte Interamenricana de Direitos Humanos e deu um novo status Comisso, que ou a funcionar como rgo da Carta da OEA e rgo da Conveno, para aqueles pases que desta se tornarem parte. As competncias comuns da Comisso, tanto como rgo da Carta como da Conveno, so bastante genricas. Nos anos setenta isto permitiu que a Comisso de forma bastante criativa desempenhasse um papel tremendamente importante na denncia das violaes que eram cometidas pelos regimes militares ento no poder. J sob o mandato da Conveno, a Comisso ou a ter funes mais concretas, como receber denuncias individuais, represent-las junto Corte Interamericana[7], fazer investigaes no local, ou solicitar informaes dos governos.[8]

A Corte Interamericana de Direitos Humanos um autntico tribunal, que pode exercer, para aqueles Estados parte que reconheam sua jurisdio, uma prestao jurisdicional de carter contencioso, relativa a todos os casos concernentes interpretao e aplicao da Conveno Americana, ou outros tratados de proteo pessoa humana, na esfera da comunidade interamericana. A Corte s poder ser provocada em sua jurisdio contenciosa pela Comisso ou pelos Estados parte que aceitem a sua jurisdio. Suas decises podem fazer cessar uma situao de leso aos direitos protegidos pela Conveno, como a tortura, priso ilegal, ou mesmo buscar a suspenso de uma norma que viole os dispositivos da Conveno, exercendo, assim, uma espcie de judicial review dos ordenamentos jurdicos domsticos em face da Conveno. Isto pode ser feito ainda de forma preventiva, atravs da jurisdio no contenciosa da Corte. [9] Por outro lado a Corte tambm pode determinar que os Estados indenizem as vtimas ou os seus familiares. O que ocorreu pela primeira vez no caso Velasquez, onde o governo de Honduras, responsvel pelo seu desaparecimento, foi condenado ao pagamento de uma indenizao famlia.[10] Neste aspecto ocorre um dos pontos de maior proximidade entre o sistema interamericano e os sistemas domsticos. De acordo com o artigo 68 da Conveno a parte da sentena que determinar a indenizao compensatria poder s er executada no pas respectivo pelo processo interno vigente para a execuo de sentenas contra o Estado. Assim a deciso da corte no tem fora de sentena estrangeira, mas de uma sentena judicial como outra qualquer, numa perfeita integrao com os sistemas domsticos.

A importncia do sistema interamericano tem aumentado na medida em que os pases am voluntariamente a se submeter sua ordem. Embora mecanicamente o sistema no apresente grandes falhas, o que o fragiliza o fato da maior potncia do continente, os Estados Unidos da Amrica, at o presente momento, continuar marginal ao sistema, postura, alis, semelhante a do Brasil at pouco. Porm, com a estabilizao dos regimes democrticos no continente, a integrao entre as ordens jurdicas interna e regional tem aumentado. A Constituio argentina, por exemplo, expressamente assegura status constitucional aos direitos previstos nos tratados internacionais. No Brasil a doutrina, e uma jurisprudncia embrionria, tem dado a mesma interpretao ao pargrafo 2 do artigo 5 da Constituio Federal.[11] Isto, portanto, caracteriza o caminho inverso, de internacionalizao do direito constitucional.

6.6 Sistema Europeu de Direitos Humanos

O sistema europeu de proteo dos direitos humanos, por sua vez, tem sido um dos pilares do processo de constitucionalizao da Comunidade, assegurando parmetros que devem limitar no apenas os Estados, em suas relaes com os seus cidados, mas tambm a Comunidade no embate com os nacionais de cada Estado.

O sistema europeu foi estabelecido pelo Conselho da Europa, que determina em seu estatuto que todos os Estados membros do Conselho da Europa devem aceitar os princpios do Estado de Direito e a fruio por todas as pessoas dentro de suas jurisdies dos direitos humanos e liberdades fundamentais...[12]. A Conveno Europia de Direitos Humanos, de 1950, entrou em vigor trs anos aps a sua adoo. Reconhece basicamente direitos de ordem civil. Logo em seu prembulo estabelece que o objetivo do sistema europeu dar eficcia aqueles direitos elencados na Declarao Universal de 1948, embora a Conveno deixe de lado direitos de ordem social e econmica. Esta lacuna foi parcialmente preenchida em 1961, com a adoo da Carta Social Europia. Digo parcialmente, pois assim como os demais documentos internacionais que tratam de direitos sociais, a Carta estabelece obrigaes vagas e que devem ser perseguidas nos limites dos meios existentes e como poltica governamental.

Trs eram os rgos responsveis pela implementao da Conveno, at o ano de 1998, quando surge a nova e unificada Corte Europia de Direitos Humanos, por fora do Protocolo no. 11. Mesmo assim interessante compreender o funcionamento pretrito desse sistema, pois o novo modelo simplesmente buscou conjugar as atividade dos diversos rgos em uma s Corte.[13]

A Comisso de Direitos Humanos, que funcionou em Estrasburgo, tinha por funo bsica receber denncias de Estados e indivduos, de acordo com o artigo 25 da Conveno. A maior parte dos Estados reconhecia a competncia da Comisso para receber tais denncias. Havia um processo bastante rigoroso que avaliava a issibilidade das peties individuais. Sendo aceitas, iniciava-se uma nova fase em que a Comisso buscaria a realizao de um acordo amigvel com os Estados. Caso este acordo no fosse alcanado, a Comisso poderia encaminhar o caso ao Conselho de Ministros ou Corte de Direitos Humanos. Em geral deveriam seguir para a Corte os casos dos Estados que aceitavam sua jurisdio. Os demais devendo ser encaminhados para o Conselho de Ministros para que fosse tomada uma deciso poltica, ainda que balizada pelo direito. O fato porm que a deciso de qualquer uma destas instncias tinha fora obrigatria para os Estados parte, ou seja, impunha uma obrigao internacional dos Estados em se conformarem a ela. Esse mecanismo criou um sistema paralelo de controle da compatibilidade da legislao domstica aos parmetros estabelecidos pela Conveno Europia de Direitos Humanos.

Com o novo formato dado pelo Protocolo no. 11, a Corte ou a concentrar todas as atividade da Comisso. Assim a Corte hoje quem recebe as peties individuais, analisa sua issibilidade, nomeia um de seus juzes como rapporteur do caso, realiza os acordos amigveis, quando for o caso, ou finalmente julga as demandas que lhe chegam. O papel do Conselho de Ministros, por sua vez, ficou limitado a supervisionar a execuo das decises da Corte.

Por fim, deve-se destacar que na maioria dos Estados europeus a Conveno ingressa automaticamente no ordenamento jurdico, com status de lei ordinria, podendo ser invocada diretamente face aos tribunais nacionais. Na Holanda o status da Conveno supra-constitucional. H alguns pases[14], no entanto, onde a Conveno exige atos parlamentares para que os direitos ali reconhecidos possam ser reclamados junto ao judicirio. Paulatinamente, no entanto, os magistrados destes pases tm se permitido olhar para a Conveno como direito auto-aplicvel.


[1] Oscar Vieira, A Constituio brasileira, os tratados internacionais e os mecanismos de defesa dos direitos humanos, in direitos humanos no Brasil, NEV/USP, So Paulo, 1993, p.13.

[2] Para uma interpretao deste dispositivo ver Oscar Vieira, O Supremo Tribunal Federal: jurisprudncia poltica, Revista dos Tribunais, So Paulo, 1994, p. 88; e o detalhado trabalho de Flvia Piovesan , Direitos humanos e o direito constitucional internacional, So Paulo, Max Limonad, 1996, p. 82 e ss.

[3] Art. 2 (CIDESC/1966) Cada Estado parte na presente Conveno compromete-se a adotar medidas...que visem assegurar progressivamente...o pleno exerccio dos direito reconhecido no presente Pacto...

[4] Isto quando o Estado expressamente acatar a jurisdi o do Comit, por intermdio do Protocolo Adicional Conveno.

[5] Para uma precisa anlise ver Jos Francisco Sieber Luz Filho, Perspectivas para a corte internacional permanente, , in Revista do ILANUD, no. 12, So Paulo, 1998.

[6] Artigo 26, caput (CADH/1969), desenvolvimento progressivo.

[7] Quando os Estados expressamente consentirem com esta hiptese, conforme o artigo 62 da referida Conveno.

[8] Artigo 41 (CADH/1969).

[9] Para uma anlise do papel da Corte ver Thomas Burguenthal, The Inter-American system for the protection of human rights, in Theodor Meron, Human rights in international law: legal and policy issues, Oxford, Claredon Press, 1989, pp. 460 e ss.

[10] Sobre o caso Velasquez consultar Juan Mendes e Jose Miguel Vivanco, Disappearences and the Inter-American Court: reflexions on a litigation experiences, Hamline Law Review, V. 13, No. 3, summer 1990.

[11] Flvia Piovesan, ob. cit., 82 e ss ; e Carlos Weis, Direitos humanos contemporneos, So Paulo, Malheiros Editor, 1999, cap. 1.

[12] Tomas Burguenthal, International Human Rights, St Paul, West Publishing Co., 1988.

[13] Nicolas Bratza and Michael O'Boyle, the Legacy of the Commission to the New Court under the Eleventh Pro tocol, in Henkin et al, ob. cit., 1999, pp. 554 e ss.

[14] Basicamente a Inglaterra e os pases escandinavos.

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