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O ESTADO DE DIREITO E OS DESTITUDOS NA AMRICA LATINA: INTRODUO

Paulo Srgio Pinheiro
Professor Titular de Cincia Poltica,
Coordenador no Ncleo de Estudos da Violncia da
Ctedra de Direitos Humanos da UNESCO, da Universidade de So Paulo

DESDE O RETORNO AO REGIME DEMOCRTICO para muitos pases na Amrica Latina, as relaes entre governos e sociedade, particularmente os pobres e membros marginalizados da sociedade, tm sido caracterizadas pelo uso ilegal e arbitrrio do poder. A grande esperana durante as transies democrticas na Amrica Latina na dcada de 1980 era de que o fim das ditaduras significariam a consolidao do estado de direito. O retorno ao governo civil trouxe a esperana de que o grau de proteo aos direitos humanos alcanado por opositores polticos durante o regime autoritrio seria estendido a todos os cidados.

No entanto, embora as sociedades latino-americanas vivessem a transio das ditaduras para os governos civis, muitas prticas de seus governos no foram afetadas por mudanas polticas ou eleies. H uma ruptura significativa entre a carta dos direitos humanos, presente em muitas constituies, e a aplicao e prtica do funcionamento da lei. Abusos dos direitos humanos ocorrem todos os dias e a maioria dos infratores no so punidos, ou mesmo responsabilizados, por seus crimes horrendos. Em certas reas, o monoplio pblico da violncia legitimada foi relaxada e a sobrevivncia dependeria da habilidade do indivduo em manter seu/sua reputao, demonstrando "uma ameaa crvel de violncia"1, um processo que ameaa o desenvolvimento da sociedade democrtica. A criminalidade crescente no s desgasta as esperanas democrticas (como demonstrado por vrias pesquisas no continente) como tambm autoriza a violncia arbitrria, enfraquecendo a legitimidade do sistema poltico. H grande partes de territrio, principalmente em reas rurais, onde as classes governantes locais continuam a manipular as instituies pblicas, inclusive o judicirio e a polcia. Para complicar esta situao, deparamo-nos com um paradoxo que enfraquece os esforos de combater ao crime: embora as garantias fundamentais estejam bem-definidas por muitas das constituies democrticas,o exerccio de cidadania plena praticamente inexistente para a maioria da populao. Estas sociedades marcadas pela excluso - em termos dos direitos civis e sociais - poderiam ser consideradas "democracias sem cidadania"2.

Em muitos pases da Amrica Latina, especialmente aqueles sem prticas tradicionais de proteo aos direitos humanos, mesmo aps promulgarem novas constituies democrticas, as instituies legais no foram reformadas e as prticas arbitrrias de agentes do estado permanecem inalteradas. Apesar de avanos significativos no mbito das sociedades civis e da governabilidade democrtica, os pobres continuam a ser as vtimas preferenciais da violncia, da criminalidade, e das violaes dos direitos humanos. O Estado em grande parte da Amrica tem-se mostrado incapaz de - ou, mais provavelmente, no-propenso a - erradicar a impunidade de crimes cometidos por seus agentes na mesma proporo que tenta punir os crimes cometidos por infratores de crimes pequenos e comuns.

Neste continente, a governabilidade democrtica tem sido incapaz de implementar ou propor reformas a certas instituies legais, tais como o judicirio, a promotoria pblica e a polcia. Este livro, ao tentar expor as dimenses destes obstculos e discutir novas perspectivas de reformas, lida com o problema de como o estado de direito na Amrica Latina pode tornar-se um instrumento efetivo para a apropriao dos direitos humanos pela maioria da populao. Os tpicos principais enfocados aqui so os problemas da violncia ilegal, os vrios mtodos de enfrentar a discriminao e os caminhos para a reforma institucional, inclusive o o justia3. Uma importante clarificao feita por Jean-Paul Brodeur para o debate sobre os tpicos propostos por este livro que o estado de direito discutido aqui no deva ser equacionado com o cumprimento da lei criminal, precisamente porque uma das caractersticas fundamentais da lei penal seu carter discriminatrio. De fato, a vasta maioria das pessoas que so punidas ou que vo para a priso em toda sociedade latino-americana, com exceo daqueles que cometem homicdio ou outros crimes horrendos contra as pessoas, so os destitudos de poder e as no-elites - exatamente aqueles a quem a democracia pretende proteger por meio do estado de direito. A democracia no deve apoiar o estado de direito que pune primeiramente os pobres e marginalizados.

Violncia Ilegal

A primeira parte deste livro enfoca a violncia que continua a aoitar as no-elites, particularmente os pobres e destitudos. Em comparao com os pequenos grupos de opositores polticos durante os regimes autoritrios, o nmero de pobres e de grupos vulnerveis aps as transies muito maior. Essas vtimas, alvos tradicionais do poder arbitrrio na democracia e na ditadura, so mais dificilmente identificveis, uma vez que no constituem grupo homogneo. O estado democrtico, em muitos casos, no mais diretamente responsvel por tais abusos. Sua responsabilidade est no fracasso em controlar as prticas arbitrrias de seus prprios agentes ou em combater a impunidade, um fracasso que conseqncia do funcionamento precrio do judicirio.

O retorno ao constitucionalismo democrtico fez pouco para erradicar as prticas autoritrias presentes no estado e na sociedade. Apesar da proteo constitucional, a violncia continua inalterada. Governos civis falharam em controlar abusos de poder. Um dos sinais mais visveis do fracasso das democracias latino-americanas em controlar a polcia, com a imposio de maior controle civil, a prevalncia de prticas abusivas contra suspeitos e detentos, prticas que continuam incrustadas no sistema. Um fracasso significativo do novo estado democrtico sua incapacidade de erradicar os maus-tratos impostos a prisioneiros comuns. A tortura durante investigao da polcia e as condies abominveis de detentos em muitos pases latino-americanos so ainda prevalentes mesmo aps a transio poltica. De fato, como Nigel Rodley observa em seu captulo, mesmo embora a gravidade e escopo da tortura tenham diminudo substancialmente medida que e onde a oposio poltica armada diminuiu, a informao limitada acerca de prticas correntes de tortura poderiam oferecer uma viso imprecisa do problema. Oficiais de funcionamento da lei mal-treinados, mal-pagos e mal-respeitados continuam a praticar a tortura em inquritos policiais. Em muitos pases, essas prticas so exacerbadas pela ausncia de sistemas de prestao de contas (ability): acusaes de tortura so raramente investigadas; quando so investigadas, os responsveis raramente so punidos. Ademais, Rodley lembra-nos que tais prticas so encorajadas pelos sistemas legais que amplamente seguem o dossier escrito, atribuindo, portanto, grande valor s confisses e outras declaraes de suspeitos e testemunhas.

As condies carcerrias so caracterizadas pela super-populao em muitas das instituies na regio. Alimentao, condies de sade e assistncia mdica so precrias. Em muitas casos, a istrao de tais estabelecimentos arbitrria e opressiva e, freqentemente, a superviso interna das prises fica a cargo dos prprios detentos. As conseqncias para centenas e milhares de detentos, concentrados em espaos limitadssimos e sujeitos opresso gratuita dos guardas e violncia sexual de cada um dos prprios detentos, incluem rebelies e motins. A reao das foras policiais a esses protestos tem-se traduzido, em vrios pases da regio, em massacres cometidos em nome da restaurao da "ordem". A priso na Amrica Latina o espao da desordem que vem tona por breves perodos de tempo como conseqncia das revoltas nas prises.

Ao discutir o trabalho de Nigel Rodley, Ligia Bolvar ressalta que ser destitudo fonte e resultado das violaes dos direitos humanos nas esferas da integridade e das condies fsicas da deteno. Ela argumenta que os sistemas judicirios que consideram a confisso como evidncia-chave estimulam o uso da tortura. Em seus comentrios, Bolvar analisa tambm o papel ambguo do estado, das ONGs e da comunidade internacional no cumprimento do estado de direito, no que tange ao uso da tortura e das condies de deteno. Ela chama ateno o mito da democracia estvel em certos pases, que pode contribuir para a tolerncia grave violao dos direitos humanos e que enfraquecem a estabilidade democrtica, quando se permite que abusos continuem a ser cometidos sem punio.

A polcia e outras instituies do sistema da justia criminal tendem a agir como "guardas de fronteiras", protegendo as elites dos pobres. A violncia policial permanece protegida pela impunidade porque est amplamente dirigida contra aquelas "classes perigosas" e raramente afetam as vidas dos privilegiados. Polticas de preveno de crimes, especialmente aquelas propostas durante o perodo das eleies, visam menos a controlar a criminalidade e a delinqncia do que a diminuir o medo e a insegurana das classes dominantes. A percepo da elite em referencia aos pobres como "classes perigosas" so alimentadas por um sistema judicial que processa e condena crimes cometidos pelos pobres, enquanto os crimes cometidos pelas elites permanecem em grande parte impunes. Crimes cometidos pela classe mdia e pela elite - tais como corrupo, golpes financeiros, evaso fiscal e a explorao do trabalho escravo e de crianas - no so percebidos como ameaas ao status quo. O mesmo ocorre em atividades do crime organizado, incluindo-se o trfico de drogas, lavagem de dinheiro, contrabando e at mesmo a altamente lucrativa venda de armas, que no so, em muitas partes da regio, alvos de polticas consistentes de cumprimento da lei.

Na Amrica Latina, os oficiais de policia vem a regra da lei como um obstculo, em vez de uma garantia efetiva, ao controle social; eles acreditam que o seu papel proteger a sociedade dos "elementos marginais" por qualquer meio disponvel. Como Paulo Chevigny mostra em seu captulo, a policia tem tambm poderes especiais, em alguns pases, que servem para enfatizar sua independncia das leis que governam o resto do sistema penal.. na Argentina, por exemplo, a policia federal pode deter uma pessoa por at trinta dias por vadiagem, bebedeira, ou mesmo travestismo. Na Venezuela, a policia pode deter pessoas consideradas como ameaas sociedade por at cinco anos, confirmando, portanto, a crena de que a polcia basicamente tem a funo de controlar as pessoas pobres.
Alm das prticas de tortura, supramencionadas, a polcia em muitos pases tem sido criticada por sua poltica de "atire primeiro, faa perguntas depois". De fato, execues sumrias de suspeitos e criminosos so prticas comuns em muitos pases da regio. Chevigny observa que o abuso de fora letal pela policia varia de pas a pas, mas uma caracterstica preponderante que ela justificada como um meio de controlar o crime comum nos bairros pobres. As vtimas tendem a pertencer aos grupos mais vulnerveis - os pobres, sem-tetos e os descendentes de africanos. Essa violncia cometida pela policia pode ser considerada uma forma de vigilncia, uma verso do esforo da policia para eliminar os "indesejveis". No entanto, o que complica este cenrio mais ainda a aquiescncia da maioria da populao, inclusive dos pobres, em relao a essas prticas. Tais mortes tm amplo apoio no s das elites, mas tambm dos pobres, muito embora estes representem a grande categoria das vtimas dos crimes violentos.

No Brasil, a constituio democrtica no mudou a deciso tomada durante a ditadura militar de que crimes comuns cometidos pela polcia militar deveriam ser julgados por cortes da polcia militar. Estas cortes, constitudas de oficiais militares e fundamentadas por investigaes criminais imprecisas, freqentemente sancionam o uso excessivo da fora, inclusive o uso desnecessrio de fora letal. Diante deste quadro sombrio, Chevigny lembra-se de que a reforma necessria para coibir tais abusos. So necessrias aes que diminuam a violncia e a corrupo e que aumentem a segurana. As legislaturas poderiam aumentar a prestao de contas e reduzir a violncia atravs de mudanas processuais que limitam no s a prtica do abuso policial, como tambm os poderes da polcia.
Em seus comentrios sobre o captulo de Chevigny, Jean-Paul Brodeur expressa ceticismo quanto possibilidade de convencer as classes mais altas de que s seu prprio interesse ter uma fora policial que respeite imparcialmente o estado de direito. Brodeur argumenta que os defensores dos direitos humanos estaro lutando uma batalha perdida, enquanto construrem seu debate em termos dos riscos e da vitimizao do indivduo. Por exemplo, o grave preo pago pelas propinas envolvendo policiais e pela corrupo da polcia , em geral, coletivo porque atinge a riqueza da nao. Ele acredita que somente quando os direitos coletivos e o impacto coletivo dos desvios da polcia forem trazidos ao primeiro plano, poder uma argumentao contundente ser defendida. Brodeur concorda com Chevigny que deveria haver uma iniciativa para persuadir as classes mdia e alta de que do interesse delas ter uma polcia que respeite os direitos humanos e seja conduzida pelo estado de direito. Entretanto, ele no se mostra convencido de que de reconhecimento pleno, na Amrica Latina, que a palavra 'todos" deveria ser interpretada em seu sentido inclusivo. At que isso acontea, as tentativas de convencer certas classes de que a observncia do estado de direito do interesse de todos estar fadada a encontrar dificuldades.

Brodeur comenta ainda que uma das palavras mais freqentemente usadas nos captulos e comentrios neste livro a "impunidade". Observa, entretanto, que respostas diretas a grupos especficos que clamam por severas detenes para perpetradores de crimes simplesmente agravaro a super-populao de detentos em todos os pases. Ele ressalta a necessidade de se encontrarem alternativas para punies na busca de solues para problemas de crimes e represso, alternativas essas que, acredito, devem estar presentes em nossas mentes todas as vezes em que nos preocupamos com desafios relativos ao fortalecimento do estado de direito.

Graves violaes dos direitos humanos em regime democrtico so muito mais visveis nas reas urbanas do que nas rurais, devido maior incidncia de casos e cobertura pela mdia. No entanto, a brutalidade e os massacres cometidos pela polcia so tambm freqentes em reas rurais do continente, particularmente no que se refere aos controles de terras, s comunidades indgenas, ou aos direitos das comunidades rurais. Como Alfredo Wagner indicou em sua apresentao na oficina (workshop) da Notre Dame, baseada em estudo dos massacres ocorridos na estado do Par (numa rea rural do Brasil0, a violncia, como instrumento de controle e opresso, tornou-se a forma principal de comunicao entre os poderes governantes, as comunidades rurais e as comunidades indgenas. A repetio desses massacres, juntamente com a ausncia de medidas efetivas para a investigao desses crimes, contribuem para sua banalizao. O sistema de justia criminal tem falhado na investigao e julgamento de vrios casos de violncia rural contra camponeses pobres. De acordo com a Comisso da Pastoral da Terra, no Brasil, dos 1730 assassinatos de camponeses, trabalhadores rurais, lderes de sindicatos, trabalhadores religiosos e advogados, cometidos entre 1964 e 1992, apenas trinta casos resultaram em condenaes. Atravs do continente, a impunidade virtualmente assegurada para aqueles que cometem violaes contra vtimas consideradas "indesejveis" ou "sub-humanas".

Mais freqentemente, os camponeses, os trabalhadores rurais e os povos indgenas so colocados nessas categorias e no tm o s garantias do estado de direito. Nos casos mencionados por Wagner, o o aos instrumentos jurdicos - por exemplo, para procurar indenizao por danos criminais como resultado de massacres rurais freqentes - no disponibilizado queles grupos. A lei e a polcia existem basicamente como instrumentos de opresso em defesa das elites. A polcia militar, com a incumbncia de policiamento, age como uma extenso da milcia de atiradores dos latifundirios.
Na oficina da Notre Dame, Roger Plant ressaltou o fato de que os massacres na regio amaznica esto ligados a problemas no-solucionados referentes reforma agrria, uma situao mais recentemente agravada pelo enfoque neo-liberal dado aos assuntos agrrios. Neste captulo, Plant identifica a necessidade urgente de prestao de contas (ability) em todos os nveis de governo e de garantias de o justia, inclusive a disponibilidade de leis civis e penais, para trabalhadores e camponeses. Ele enfatiza que nada ter impacto significativo e de longo prazo, enquanto polticas econmicas e sociais mais amplas ignorarem os padres de destituio de terras e desespero. O ponto principal a definio de como aqueles que no possuem recursos podero ter vez no desenvolvimento nacional.

Superando a Discriminao

A segunda parte deste livro discute as vrias formas de se superar a discriminao, nivelando o contedo e a aplicao da lei entre a populao, sem levar em conta raa, gnero ou status econmico. Apesar dos desenvolvimentos positivos em processos de transio e consolidao democrtica, muitas democracias latino-americanas esto ainda longe de serem capazes de assegurar a liberdade e a justia para todos.

Durante a dcada ada, um grande nmero de pases na Amrica Latina adotaram reformas constitucionais ou novas constituies, incluindo provises referentes aos direitos dos povos indgenas. Estas medidas resultaram dec combates e presses considerveis organizadas pelas organizaes da sociedade civil e de grupos de apoio e foram acompanhadas por uma verdadeira avalanche de leis e regulamentos. Em seu captulo, Jorge Dandler lembra-nos que este fenmeno requer uma estratgia particularmente vigilante por organizaes indgenas, a fim de assegurar que seus direitos constitucionais sejam salvaguardados em muitos assuntos, incluindo os direitos da terra, a floresta, biodiversidade, leis sobre o minrio e o petrleo, bem como as leis ambientais. Sem essas iniciativas, a democracia nica para construir pacificamente sociedades multi-tnicas e para prosperar em diversidade, evitando conflitos inter-tnicos e guerra.
Em sua discusso sobre o captulo de Dandler, Shelton Davis concorda que no houve evoluo dos padres internacionais e legais em relao aos direitos de mais de 40 milhes de povos indgenas na Amrica Latina. No entanto, ele insiste que devemos reconhecer que a maioria das reformas constitucionais recentes no enfocam a rea de processo legal ou istrao, isto , "o o lei" ou "o o justia". Portanto, h ainda um longo caminho a percorrer at que se possa dizer que o estado de direito reina nas relaes entre os estados das naes e os povos indgenas na Amrica Latina. Davis determina que muito maior ateno seja dada aos aspectos processuais da lei antes que os povos indgenas e o estado de direito tenham oportunidade real na Amrica Latina.

Em muitos aspectos, a situao das mulheres na Amrica Latina tem vrios pontos de contato com a dos povos indgenas: apesar de um avano substantivo no reconhecimento dos direitos constitucionais da mulher, as leis que regulam esses direitos so esparsos e a democracia ainda no significa a realizao plena das garantias do estado de direito. Mariclaire Acosta, em seu captulo sobre a situao das mulheres no Mxico, enfoca algumas das limitaes impostas sobre as mulheres na vida diria. Nos ltimos quinze anos, perdas de padro de renda e oportunidades de empregos papa a maioria das pessoas, mas particularmente para as mulheres, foram devastadoras. As mulheres e seus filhos tornaram-se o choque dos processos de privatizao e globalizao econmica. Acosta explica como, na prtica, a igualdade entre os homens e mulheres continua a ser em grande parte um direito formal. As mulheres so sistematicamente alvo de violncia sexual e domstica, e muitos dos infratores contam com a impunidade e a recebem. As projees futuras so sombrias; o fim da discriminao contra as mulheres requer, alm da plena implementao de garantias constitucionais e programas governamentais, uma mudana total de polticas econmicas, o que no parece provvel de acontecer em um futuro prximo.

Dorothy Thomas, em seus comentrios sobre o captulo de Acosta, compara a situao das mulheres no Mxico e em outros pases, como Peru, Haiti e Brasil e lembra-nos que a discriminao de gnero est freqentemente associada, de forma profunda, a outras formas de discriminao, tais como a discriminao baseada na raa, etnia, orientao sexual, classe social ou status econmico. Se a regra da lei deve abranger os destitudos, a sociedade ter de mudar este carter prevalente de discriminao e o grau em que est arraigado na estrutura da prpria lei, a fim de que se assegure de que o estado de direito verdadeiramente uma regra para as mulheres e no uma exceo.

Ass constituies dos pases da Amrica Latina geralmente incorporaram amplas provises para a proteo de direitos individuais, que so sistematicamente ignorados. Um contexto de amplas desigualdades econmicas tem ampliado a diferena (gap) entre os ricos e os pobres e fadado milhes de latino-americanos vida de pobreza e excluso social. A discriminao racial uma das mais evidentes expresses do o desigual a recursos. Esse assunto tratado no captulo de Peter Fry. As sociedades latino-americanas tendem a apresentarem-se como democracias liberais, mas a igualdade de todos perante a lei regularmente contestada por contribuio desigual de poder. Dados atuais analisados por Fry demonstram que a "democracia racial" no Brasil um mito, evidenciado pelo fato de que quase 90 por cento da populao de todas as cores concordam que a discriminao racial prevalente no local de trabalho e em relao polcia. A discriminao est tambm presente no sistema judicirio criminal, como Srgio Adorno notou durante sua apresentao na oficina da Notre Dame. De fato, a cor um poderoso propulsor de discriminao na distribuio da justia. As Pessoas de cor confrontam-se com maiores obstculos no o justia criminal e tm maiores dificuldades de fazer uso de seus direitos para uma defesa adequada. Como resultado, mais provvel que elas sejam punidas do que os brancos, assim como recebem tratamento penal mais rigoroso. Aps discutir as recentes tendncias de pesquisas, Fry conclui que o reconhecimento da existncia de racismo consegue mais do que meramente a negao do mito da democracia racial: ele sugere que o mito tem a funo poderosa de mascarar a discriminao e o preconceito e tem evitado a formao de um movimento de protesto negro em larga escala. Ele ento formula uma questo prtica: o que se est fazendo e pode ser feito para reduzir o preconceito e a discriminao contra os pobres em geral e contra as pessoas de cor em particular? Aps descrever as lutas dos movimentos sociais dos negros e as iniciativas tomadas pelo governo federal no governo FHC para implementar polticas especficas em favor dos negros no Brasil, Fry discute as implicaes mais amplas e inesperadas dessas novas evolues.

A debatedora Joan Dassin observa que o "paradoxo" central enfocado no captulo de Fray que apesar da demonstrao da realidade do racismo no Brasil e do fato que a maioria dos brasileiros de todas as cores concordam que o racismo existe, muitos tambm argumentam que eles no discriminam ou sofrem discriminao. Sugere-se aqui que o real debate deva ser feito em torno do mito da democracia racial - um "sonho", um princpio de tal fora que impede o reconhecimento e subseqente punio daqueles que o negam. Dassin comenta que um dos mritos do captulo de Fry que ao contextualizar "raa" e "lei", levando em conta as nuances e o embasamento histrico, ele traz esses conceitos para um srio exame. Essa perspectiva poderia evitar que formuladores de polticas bem-intencionadas sejam persuadidos com solues simplistas e fadadas ao fracasso, assim como muitos dos programas estabelecidos para promover a reforma judiciria e legal, para diminuir a pobreza e para erradicar a discriminao de raa e gnero.

o justia

Esta parte final do livro enfoca a reforma institucional, inclusive o o justia. Instituies pblicas encarregadas de prescrever a lei e a ordem so amplamente percebidas como disfuncionais. Uma grande percentagem dos cidados latino-americanos no acreditam que seus governos implementem, ou tentem implementar, a lei com igualdade e imparcialidade para todos os cidados. Garantias formais consagradas na constituio e nos cdigos legais so sistematicamente violados, em muitos casos devido separao contundente entre o que a lei diz e o modo pelo qual as instituies encarregadas de proteger e implementar as leis - i.e., a polcia e o judicirio - funcionam na prtica. Nos pases da Amrica Latina, os pobres freqentemente vem a lei como um instrumento de opresso a servio dos ricos e poderosos.

O sistema judicirio foi desacreditado por sua venalidade, ineficincia e falta de autonomia. deficiente em todos os aspectos: recursos materiais so escassos; procedimentos jurdicos so excessivamente formalistas; os juizes so insuficientemente preparados; e muitos poucos juzes supervisionam casos demais. Devido a esses obstculos, as cortes frequentemente frustram as pessoas que a elas recorrem. Muitos juzes tm-se mostrado imponentes para julgar casos do crime organizado e alguns tm sido ligados ao trfico de drogas. Em muitos pases da regio, a capacidade investigativa da polcia muito limitada e somente uma pequena percentagem dos casos investigados chegam s cortes. Em geral, a forma pela qual as cortes funcionam est intimamente ligada s prticas hierrquicas e discriminatrias que marcam as relaes sociais.
Alguns desses problemas esto sendo enfrentados na Amrica Latina no mbito de programas internacionais. Em seu captulo. Reed Brody discute as dimenses internacionais dos esforos atuais referentes reforma do judicirio, concentrando-se na recente experincia do Haiti. Ele enfatiza que os princpios-chaves do apoio ao desenvolvimento, no que tange a reforma do judicirio, deveria ser a participao do pblico-alvo na determinao de prioridades e modalidades desse apoio. O apoio internacional reforma do judicirio, como todo apoio internacional ao desenvolvimento, deve ser elaborado por aqueles que venham a ser imediatamente afetados e deve estar de acordo com as normas internacionais dos direitos humanos. Por sua vez, Leonardo Franco conclui que impossvel separar a reforma do judicirio dos direitos humanos. Enfoques desconexos da reforma do judicirio no podem ter sucesso a no ser que estejam associados a medidas para tratar dos fatores polticos, tcnicos e estruturais profundamente arraigados que inibem o funcionamento efetivo do judicirio. Um outro aspecto decisivo enfatizado por Franco que a reforma do judicirio no neutra em nenhuma sociedade; o processo de mudana ajustar-se- a certos interesses sociais e conflituar-se- com os de outros grupos poderosos.

Jorge Correa Sutil oferece uma apresentao abrangente do processo de reformas do judicirio em vrios pases da Amrica Latina. Ele comea seu captulo apontando as tendncias comuns nessas reformas, inclusive as emendas da constituio para garantir uma percentagem do oramento para o judicirio; revisando as regras que governam as formas pelas quais os juzes so nomeados, os perodos e as condies em que se mantm no cargo; adotando procedimentos mais orais e menos inquisitrios; e incluindo medidas para aprimorar a educao dos juzes. Ele ento explica porque as mudanas esto ocorrendo neste momento na Amrica Latina. Um fator relevante a crescente importncia do judicirio aps o retorno aos sistemas polticos democrticos. A transio argentina um bom exemplo, pois coincide com os julgamentos pblicos dos generais que tinham estado no poder. Em muitos casos, essas reformas devem responder s necessidades percebidas de estabelecer novas relaes entre o judicirio e outros braos do poder. Um outro importante elemento que as economias de mercado abertas descentralizam a forma de resoluo de disputas; de fato, o processo de abertura dos mercados, permitindo que aloquem recursos multiplicaram o nmero de processos legais. O captulo conclui que h uma clara tendncia, causada pela abertura de mercado, quanto importncia do judicirio como um frum para resoluo de disputas. H tambm uma tendncia recente de que alguns grupos marginalizados da regio usem o frum judicirio, atravs de litgios de interesse pblico, a fim de avanar seus interesses. O judicirio est provavelmente sendo reformado na Amrica Latina a fim de que possa responder s demandas sociais para um papel mais amplo e forte, sendo que os destitudos podero se beneficiar do processo. Na oficina da Notre Dame, Leopoldo Schiffrin concorda com Correa quando diz que a conexo entre as reformas judicirias e a melhoria de o ao processo legal pelos destitudos no est suficientemente clara. Uma pr-condio importante que polticos devem renunciar a qualquer manipulao do sistema judicirio. As lutas por um tratamento justo para os destitudos, na rea legal, so lutas pelo estado de direito, que existir apenas quando todos tiverem as mesmas oportunidades de obter proteo judicial para seus direitos.

O captulo de Alejandro Garro trata de assuntos que dizem respeito ao o justia pelos pobres da Amrica Latina e argumenta que os termos do debate sobre o "o justia" devem estar centrados em tornar a justia mais vel aos pobres e marginalizados. O captulo considera diferentes enfoques adotados, seus potenciais de progresso e enfoques que tm maior chance de fazerem diferena na busca do o justia. Garro e seu debatedor na oficina da Notre Dame, Srgio Adorno, concordam que reduzir os custos do litgio, ajustar mecanismos processuais prevalentes para satisfazer s enormes necessidades de justia para os marginalizados e abraar o ideal de "advogar pelo interesse pblica", como um componente essencial da educao e capacitao legais, so reformas essenciais que devem ser conduzidas a fim de aperfeioar o o dos destitudos justia e reforar a efetividade institucional.

Os diferentes enfoques de assuntos mltiplos tratados neste livro confirmam o argumento de que as novas democracias da Amrica Latina esto longe de serem capazes de assegurar a liberdade e a justia para todos. Neste contexto, os governos que tentam promover as reformas para tratar de problemas multifacetados referentes ao crime e impunidade podem se ver numa situao sem sucesso. O fracasso dessas democracias em requerer que suas prprias instituies respeitem as leis internas e as obrigaes internacionais tem comprometido seriamente suas legitimidades. Como resultado, os governos podero ter dificuldades em angariar apoio popular para suas iniciativas de reformas. Mas, a fim de que possam fazer da regra da lei uma noo com significado real para os destitudos da Amrica Latina, esses governos devem tratar da necessidade urgente das reformas sociais. O reconhecimento legal e o exerccio dos direitos polticos e civis devem ser ressaltados em ambientes onde os direitos bsicos humanos, sociais e econmicos so sistematicamente violados. Em muitas sociedades latino-americanas, existe uma profunda diferena entre a cidadania social e a cidadania poltica no contexto de um cenrio institucional democrtico.

Devemos tambm reconhecer que a atual conjuntura internacional no mais propcia para a implementao de polticas redistributivas que reduzam a polarizao social ou para a instituio de princpios de justia social. A mudana para polticas econmicas neo-liberais provocaram um aprofundamento da desigualdade que ameaa minar a legitimidade dos novos regimes constitucionais. Talvez a condio bsica para se superar o contedo extremamente limitado do estado de direito para as no-elites nas democracias latino-americanas seja enfrentar o problema da pobreza gerada pela competio tecnolgica e pela crescente globalizao. Desequilbrios econmicos e sociais extremos, que se encontram na raiz da desigualdade e da vitimizao entre os destitudos, no podem ser corrigidos pelo mercado apenas.

As organizaes da sociedade civil e o estado tm papis a desempenhar na obteno do estado de direito na Amrica Latina. Movimentos sociais no foram capazes de reformular a face das polticas, ao ajudar a desmantelar os regimes autoritrios. Quando os direitos continuam a ser violados no regime democrtico, o papel da sociedade civil crucial porque o estado sozinho no pode prescrever as solues. Esses movimentos da sociedade civil introduziram um novo dinamismo e uma capacidade de inovao no sistema pblico. As organizaes da sociedade civil monitoram o cumprimento dos padres internacionais pelo estado, ajudam a promover mudanas nas instituies e desafiam as instituies no interesse dos direitos humanos.

O estado - como primeiro defensor e promotor dos direitos humanos - tem um papel crucial a desempenhar se as sociedade latino-americanas quiserem enfrentar os crescentes problemas de pobreza e os conseqentes problemas com a violncia ilegal, a discriminao racial e de gnero, bem como os obstculos para o o justia. Somente o estado pode prescrever programas nacionais consistentes que promovam a sade e a educao - pr-requisito para a ordem social - baseados no s no silncio do abuso e da impunidade, mas na democracia, no desenvolvimento e no convvio. Infelizmente, como Guillerme O'Donnell argumenta no ltimo captulo, os estudos contidos neste livro mostram um estado severamente inacabado, especialmente no que tange sua dimenso legal. Paradoxalmente, esta deficincia tem crescido, nas decrescido, durante as transies polticas econmicas e consolidaes democrticas, em grande parte devido s crises econmicas e s polticas econmicas desestatizantes adotadas nas ltimas duas dcadas.

Apesar dos obstculos discutidos e analisados neste livro, inclusive o fracasso das atuais instituies pblicas em fazer cumprir o estado de direito, importante reconhecer que o regime civil e a "democracia formal", termo usado por Agnes Hellar4, com todas as suas limitaes, na Amrica Latina, abriu novas perspectivas para os processos de consolidao democrtica que agora necessariamente abrangem a apropriao dos direitos pelos destitudos. Como O'Donnell observa, a efetividade plena da regra da lei no foi completamente alcanada em nenhum pas, como transformao social e aquisio de direitos propulsionam novas demandas e aspiraes. Vista deste ngulo, conclui O'Donnell, a democracia no um regime poltico esttico, mas um horizonte mvel.

1 Para discusso sobre monoplio pblico de violncia fsica, ver Norbert Elias, Violence and Civilization: The State Monoply of Phisical Violence and Its Infringement, in CIVIL SOCEITY AND THE STATE (John Keane ed., London: Verso, 1988). A expresso "ameaa crvel de violncia" usada por MARTIN DALY & MARGO WILSON, HOMICIDE (New York: A. de Gruyter, 1988), im.

2 Elaborei estas idias recentemente em Paulo Srgio Pinheiro, Democracies without Citizenship, 30(2) NACLA REPORT ON THE AMERICAS 17-23 (Sept./Oct. 1996); and PS Pinheiro, Popular Responses et State-Sponsored Violence in Brazil, in THE NEW POLITICS OF INEQUALITY IN LATIN AMERICA 261-80 (Douglas Chalmers et al. Eds. Oxford University Press, 1997).

3 Ao escrever esta introduo, alm de lar os captulos e comentrios, tive a oportunidade de ler o sumrio da oficina acadmica "The Rule of Law and the Inderprivilieged in Latin America", realizada em 9-11 de novembro de 1996, na Universidade de Notre Dame, assim como o quarto programa annual do Projeto Amrica Latina 200, patrocinado por Helen Kellogg Institute for International Studies, com a cooperao e apoio da The Coca-Cola Company, publicado em Andras Feldman & Carlos Guevara-Mann, The Rule od Law and Underprivileged in Latin America, n 27 (Kellogg Institute, Fall, 1996).
4 Agnes Heller, On Formal Democracy, in CIVIL SOCIETY AND ITS STATE, supra note 1, at 109-45.
4 Traduo de Amlia Alves / reviso no realizada pelo autor.

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