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Direitos
Humanos e Literatura
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ANTONIO
CNDIDO
I
456223
O
assunto que me foi confiado nesta srie aparentemente meio
desligado dos problemas reais: Direitos humanos e
literatura. As maneiras de abord-lo so muitas, mas no
posso comear a falar sobre o tema especfico sem fazer
algumas reflexes prvias a respeito dos prprios direitos
humanos.
impressionante como em nosso tempo somos contraditrios neste
captulo. Comeo observando que em comparao a eras
adas chegamos a um mximo de racionalidade tcnica e de
domnio sobre a natureza. Isto permite imaginar a possibilidade
de resolver grande nmero de problemas materiais do homem, quem
sabe inclusive o da alimentao. No entanto, a irracionalidade
do comportamento tambm mxima, servida frequentemente
pelos mesmos meios que deveriam realizar os desgnios da
racionalidade. Assim, com a energia atmica podemos ao mesmo
tempo gerar fora criadora e destruir a vida pela guerra: com o
incrvel progresso industrial aumentamos o conforto at alcanar
nveis nunca sonhados, mas exclumos dele as grandes massas
que condenamos misria; em certos pases, como o Brasil,
quanto mais cresce a riqueza, mais aumenta a pssima distribuio
dos bens. Portanto, podemos dizer que os mesmos meios que
permitem o progresso podem provocar a degradao da maioria.
Ora, na
Grcia antiga, por exemplo, teria sido impossvel pensar numa
distribuio equitativa dos bens materiais, porque a tcnica
ainda no permitia superar as formas brutais de explorao do
homem, nem criar abundncia para todos. Mas em nosso tempo
possvel pensar nisso, e no entanto pensamos relativamente
pouco. Essa insensibilidade nega uma das linhas mais promissrias
da histria do homem ocidental, aquela que se nutriu das idias
amadurecidas no correr dos sculos XVIII e XIX, gerando o
liberalismo e tendo no socialismo a sua manifestao mais
coerente. Elas abriram perspectivas que pareciam levar soluo
dos problemas dramticos da vida em sociedade. E de fato,
durante muito tempo acreditou-se que, removidos uns tantos obstculos,
como a ignorncia e os sistemas despticos de governo, as
conquistas do progresso seriam canalizadas no rumo imaginado
pelos utopistas, porque a instruo, o saber e a tcnica
levariam necessariamente felicidade coletiva. No entanto,
mesmo onde estes obstculos foram removidos a barbrie
continuou impvida entre os homens.
Todos
sabemos que a nossa poca profundamente brbara, embora se
trate de uma barbrie ligada ao mximo da civilizao. Penso
que o movimento pelos direitos humanos se entronca a, pois
somos a primeira era da histria em que teoricamente possvel
entrever uma soluo para as grandes desarmonias que geram a
injustia contra a qual lutam os homens de boa vontade,
busca, no mais do estado ideal sonhado pelos utopistas
racionais que nos antecederam, mas no mximo vivel de
igualdade e justia, em correlao a cada momento da histria.
Mas
esta verificao desalentadora deve ser compensada por outra,
mais otimista: ns sabemos que hoje existem os meios materiais
necessrios para nos aproximarmos desse estgio melhor, e que
muito do que era simples utopia se tornou possibilidade real. Se
as possibilidades existem, a luta ganha maior cabimento e se
torna mais esperanosa, apesar de tudo o que o nosso tempo
apresenta de negativo. Quem acredita nos direitos humanos
procura transformar a possibilidade terica em realidade,
empenhando-se em fazer coincidir uma com a outra. Inversamente,
um trao sinistro do nosso tempo saber que possvel a
soluo de tantos problemas e no entanto no se empenhar
nela. Mas de qualquer modo, no meio da situao atroz em que
vivemos h perspectivas animadoras.
verdade que a barbrie continua at crescendo, mas no se v
mais o elogio, como se todos soubessem que ela algo a ser
oculto e no proclamado. Sob este aspecto, os tribunais de
Nuremberg foram um sinal de novos, mostrando que j no
issvel a um general vitorioso mandar fazer inscries
dizendo que construiu uma pirmide com as cabeas dos inimigos
mortos, ou que mandou cobrir as muralhas de Nnive com as suas
peles escorchadas. Fazem-se coisas parecidas e at piores, mas
elas no constituem motivo de celebrao. Para emitir uma
nota positiva no fundo do horror, acho que isso um sinal
favorvel, pois se o mal praticado, mas no proclamado,
quer dizer que o homem no o acha mais to natural.
No
mesmo sentido eu interpretaria certas mudanas no comportamento
cotidiano e na fraseologia das classes dominantes. Hoje no se
afirma com a mesma tranquilidade do meu tempo de menino que
haver pobres a vontade de Deus, que eles no tm as mesmas
necessidades dos abastados, que os empregados domsticos no
precisam descansar, que s morre de fome quem for vadio e
coisas assim. Existe em relao ao pobre uma nova atitude, que
vai do sentimento de culpa at o medo.
Nas
caricaturas dos jornais e das revistas, o esfarrapado e o negro
no so mais tema predileto das piadas, porque a sociedade
sentiu que eles podem ser um fator de rompimento do estado de
coisas, e o temor um dos caminhos para a compreenso.
Sintoma
complementar eu vejo na mudana do discurso dos polticos e
empresrios quando aludem sua posio ideolgica ou aos
problemas sociais. Todos eles, a comear pelo Presidente da Repblica,
fazem afirmaes que at pouco seriam consideradas
subversivas e hoje so parte do palavreado bem-pensante. Por
exemplo, que no mais possvel tolerar as grandes diferenas
econmicas, sendo necessrio promover uma distribuio
equitativa. claro que ningum se empenha para que de fato
isto acontea, mas tais atitudes e pronunciamentos parecem
mostrar que agora a imagem de injustia social constrange, e
que a insensibilidade em face da misria deve ser pelo menos
disfarada, porque pode comprometer a imagem dos dirigentes.
Esta hipocrisia generalizada, tributo que a iniquidade paga
justia, um modo de mostrar que o sofrimento j no deixa
do indiferente a mdia da opinio.
Do
mesmo modo, os polticos e empresrios de hoje no se
declaram conservadores, como antes, quando a expresso
classes conservadoras era um galardo. Todos so
invariavelmente de centro, e at de centro-esquerda,
inclusive os francamente reacionrios. E nem poderiam dizer
outra coisa, num tempo em que a televiso mostra a cada
instante em imagens cujo intuito mero sensacionalismo, mas
cujo efeito pode ser poderoso para despertar as conscincias
crianas nordestinas raquticas, populaes inteiras sem
casa, posseiros massacrados, desempregados morando na rua.
De um
ngulo otimista, tudo isso poderia ser encarado como manifestao
infusa da conscincia cada vez mais generalizada de que a
desigualdade invel e pode ser atenuada
consideravelmente no estdio atual dos recursos tcnicos e de
organizao. Nesse sentido, talvez se possa falar de um
progresso no sentimento do prximo, mesmo sem a disposio
correspondente de agir em consonncia. E a entra o problema
dos que lutam para que isso acontea, ou seja: entra o problema
dos direitos humanos.
II
Por qu?
Porque pensar em direitos humanos tem um pressuposto: reconhecer
que aquilo que consideramos indispensvel para ns tambm
indispensvel para o prximo. Esta me parece a essncia do
problema, inclusive no plano estritamente individual, pois
necessrio um grande esforo de educao e auto-educao a
fim de reconhecermos sinceramente este postulado. Na verdade, a
tendncia mais funda achar que os nossos direitos so mais
urgentes que os do prximo.
Nesse
ponto, as pessoas so frequentemente vtimas de uma curiosa
obnubilao. Elas afirmam que o prximo tem direito, sem dvida,
a certos bens fundamentais, como casa, comida, instruo, sade
coisas que ningum bem formado ite hoje em dia sejam
privilgio de minorias, como so no Brasil. Mas ser que
pensam que o seu semelhante pobre teria direito a ler
Dostoievskl ou ouvir os quartetos de Beethoven? Apesar das boas
intenes no outro setor, talvez isto no lhes e pela
cabea. E no por mal, mas somente porque quando arrolam os
seus direitos no estendem todos eles ao semelhante. Ora, o
esforo para incluir o semelhante no mesmo elenco de bens que
reivindicamos est na base da reflexo sobre os direitos
humanos.
A este
respeito fundamental o ponto de vista de um grande socilogo
francs, o dominicano Padre Louis-Joseph Lebret, fundador do
movimento Economia e Humanismo, com quem tive a sorte de
conviver e que atuou muito no Brasil entre os anos de 1940 e
1960. Penso na sua distino entre bens compressveis e
bens incompressveis, que est ligada a meu ver com o
problema dos direitos humanos, pois a maneira de conceber a
estes depende daquilo que classificamos como bens incompressveis,
isto , os que no podem ser negados a ningum.
Certos
bens so obviamente incompressveis, como o alimento, a casa,
a roupa. Outros so compressveis, como os cosmticos, os
enfeites, as roupas extras. Mas a fronteira entre ambos
muitas vezes difcil de fixar, mesmo quando pensamos nos que so
considerados indispensveis. O primeiro litro de arroz de uma
saca menos importante do que o ltimo, e sabemos que com
base em coisas como esta se elaborou em Economia Poltica a
teoria da utilidade marginal, segundo a qual o valor de
uma coisa depende em grande parte da necessidade relativa que
temos dela. O fato que cada poca e cada cultura fixam os
critrios de incompressibilidade, que esto ligados diviso
da sociedade em classes, pois inclusive a educao pode ser
instrumento para convencer as pessoas de que o que indispensvel
para uma camada social no o para outra. Na classe mdia
brasileira, os da minha idade ainda lembram o tempo em que se
dizia que os empregados no tinham necessidade de sobremesa nem
de folga aos domingos, porque, no estando acostumados a isso,
no sentiam falta... Portanto, preciso
ter critrios seguros para abordar o problema dos bens
incompressveis, seja do ponto de vista individual, seja do
ponto de vista social. Do ponto de vista individual,
importante a conscincia de cada um a respeito, sendo indispensvel
fazer sentir desde a infncia que os pobres e desvalidos tm
direito aos bens materiais (e que portanto no se trata d
exercer caridade), assim como as minorias tm direito
igualdade de tratamento. Do ponto de vista social preciso
haver leis especficas garantindo este modo de ser.
Por
isso, a luta pelos direitos humanos pressupe a considerao
de tais problemas, e chegando mais perto do tema eu lembraria
que so bens incompressveis no apenas os que asseguram a
sobrevivncia fsica em nveis decentes, mas os que garantem
a integridade espiritual. So incompressveis certamente a
alimentao, a moradia, o vesturio, a instruo, a sade,
a liberdade individual, o amparo da justia pblica, a resistncia
opresso etc.; e tambm o direito crena, opinio,
ao lazer e, por que no, arte e literatura.
Mas a
fruio da arte e da literatura estaria mesmo nesta categoria?
Como noutros casos, a resposta s pode ser dada se pudermos
responder a uma questo prvia, isto , elas s podero ser
consideradas bens incompressveis segundo uma organizao
justa da sociedade se corresponderem a necessidades profundas do
ser humano, a necessidade que no podem deixar de ser
satisfeitas sob pena de desorganizao pessoal ou pelo menos
de frustrao mutiladora. A nossa questo bsica, portanto,
saber se a literatura uma necessidade deste tipo. S ento
estaremos em condies de concluir a respeito.
III
Chamarei
de literatura, da maneira ais
ampla possvel, todas as criaes de toque potico,
ficcional ou dramtico em todos os nveis de uma sociedade, em
todos os tipos de cultura, desde o que chamamos folclore, lenda,
chiste, at as formas mais complexas e difceis da produo
escrita das grandes civilizaes.
Vista
deste modo a literatura aparece claramente como manifestao
universal de todos os homens em todos os tempos. No h povo e
no h homem que possam viver sem ela, isto , sem a possibilidade de entrar em contato com alguma espcie
de fabulao. Assim como todos sonham todas as noites, ningum
capaz de ar as vinte e quatro horas do dia sem alguns
momentos de entrega ao universo fabuloso. O sonho assegura
durante o sono a presena indispensvel desse universo,
independentemente da nossa vontade. E durante a viglia a criao
ficcional ou potica, que a mola da literatura em todos os
seus nveis e modalidades, est presente em cada um de ns,
analfabeto ou erudito como anedota, causo, histria em
quadrinho, noticirio policial, cano popular, moda de
viola, samba carnavalesco. Ela se manifesta desde o devaneio
amoroso ou econmico no nibus at a ateno fixada na
novela de televiso ou na leitura corrida de um romance.
Ora, se
ningum pode ar vinte e quatro horas sem mergulhar no
universo da fico e da poesia, a literatura concebida no
sentido amplo a que me referi parece corresponder a uma
necessidade universal, que precisa ser satisfeita e cuja satisfao
constitui um direito.
Alterando
um conceito de Otto Ranke sobre o mito, podemos dizer que a
literatura o sonho acordado das civilizaes. Portanto,
assim como no possvel haver equilbrio psquico sem o
sonho durante o sono, talvez no haja equilbrio social sem a
literatura. Deste modo, ela fator indispensvel de humanizao
e, sendo assim, confirma o homem na sua humanidade, inclusive
porque atua em grande parte no subconsciente e no inconsciente.
Neste sentido, ela pode ter importncia equivalente das
formas conscientes de inculcamento intencional, como a educao
familiar, grupal ou escolar. Cada sociedade cria as suas
manifestaes ficcionais, poticas e dramticas de acordo
com os seus impulsos, as suas crenas, os seus sentidos, as
suas normas, a fim de fortalecer em cada um a presena e atuao
deles.
Por
isso que nas nossas sociedades a literatura tem sido um
instrumento poderoso de instruo e educao, entrando nos
currculos, sendo proposta a cada um como equipamento
intelectual e afetivo. Os valores que a sociedade preconiza, ou
os que considera prejudicial, esto presentes nas diversas
manifestaes da fico, da poesia e da ao dramtica. A
literatura confirma e nega, prope e denuncia, apoia e combate,
fornecendo a possibilidade de vivermos dialeticamente os
problemas. Por isso indispensvel tanto a literatura
sancionada quanto a literatura proscrita; a que os poderes
sugerem e a que nasce dos movimentos de negao do estado de
coisas predominantes.
A
respeito destes dois lados da literatura, convm lembrar que
ela no uma experincia inofensiva, mas uma aventura que
pode causar problemas psquicos e morais, como acontece com a
prpria vida, da qual imagem e transfigurao. Isto
significa que ela tem papel formador de personalidade, mas no
segundo as convenes; seria antes segundo a fora
indiscriminada e poderosa da prpria realidade. Por isso, nas mos
do leitor o livro pode ser fator de perturbao e mesmo de
risco. Da a ambivalncia da sociedade em face dele,
suscitando por vezes condenaes violentas quando ele veicula
noes ou oferece sugestes que a viso convencional
gostaria de proscrever. No mbito da instruo escolar o
livro chega a gerar conflitos, porque o seu efeito transcende as
normas estabelecidas.
Numa
palestra feita h mais de quinze anos em reunio da Sociedade
Brasileira para o Progresso da Cincia sobre o papel da
literatura na formao do homem, chamei a ateno entre
outras coisas para os aspectos paradoxais desse papel, na medida
em que os educadores ao mesmo tempo preconizam e temem o efeito
dos textos literrios. De fato (dizia eu), h conflito
entre a idia convencional de uma literatura que eleva e
edifica (segundo os padres oficiais) e a sua poderosa fora
indiscriminada de iniciao na vida, com uma variada
complexidade nem sempre desejada pelos educadores. Ela no
corrompe nem edifica, portanto; mas, trazendo livremente em si o
que chamamos o bem e o que chamamos o mal, humaniza em sentido
profundo, porque faz viver.
A funo
da literatura est ligada complexidade da sua natureza, que
explica inclusive o papel contraditrio mas humanizador
(talvez humanizador porque contraditrio). Analizando-a,
podemos distinguir pelo menos trs faces: 1) ela uma construo
de objetos autnomos como estrutura e significado; 2) ela
uma forma de expresso, isto , manifesta emoes e a viso
do mundo dos indivduos
e dos grupos; 3) ela uma forma de conhecimento, inclusive
como incorporao difusa e inconsciente.
Em
geral pensamos que a literatura atua sobre ns devido ao
terceiro aspecto, isto , porque transmite uma espcie de
conhecimento, que resulta em aprendizado, com se ela fosse um
tipo de instruo. Mas no assim. O efeito das produes
literrias devido atuao simultnea dos trs
aspectos, embora costumemos pensar menos no primeiro, que
corresponde maneira pela qual a mensagem construda; mas
esta maneira o aspecto, seno mais importante, com clareza
crucial, porque o que decide se uma comunicao literria
ou no. Comecemos por ele.
Toda
obra literria antes de mais nada uma espcie de objeto, de
objeto construdo; e grande o poder humanizador desta
construo, enquanto construo.
De
fato, quanto elaboram uma estrutura, o poeta ou o narrador nos
propem um modelo de coerncia, gerado pela fora da palavra
organizada. Se fosse possvel abstrair o sentido e pensar nas
palavras como tijolos de uma construo, eu diria que esses
tijolos representam um modo de organizar a matria, e que
enquanto organizao eles exercem papel ordenador sobre a
nossa mente. Quer percebamos claramente ou no, o carter de
coisa organizada da obra literria torna-se um fator que nos
deixa mais capazes de ordenar a nossa prpria mente e
sentimentos; e em consequncia, mais capazes de organizar a viso
que temos do mundo.
Por
isso, um poema hermtico, de entendimento difcil, sem nenhuma
aluso tangvel realidade do esprito ou do mundo, pode
funcionar neste sentido, pelo fato de ser um tipo de ordem,
sugerindo um modelo de superao do caos. A produo literria
tira as palavras do nada e as dispe como todo articulado. Este
o primeiro nvel humanizador, ao contrrio do que
geralmente se pensa. A organizao da palavra comunica-se ao
nosso esprito e o leva, primeiro, a se organizar; em seguida,
a organizar o mundo. Isto ocorre desde as formas mais simples,
como a quadrinha, o provrbio, a histria de bichos, que
sintetizam a experincia e a reduzem sugesto, norma,
conselho ou simples espetculo mental.
Mais
vale quem Deus ajuda do que quem cedo madruga. Este provrbio
uma frase solidamente construda, com dois membros de sete slabas
cada um, estabelecendo um ritmo que reala o conceito, tornando
mais forte pelo efeito da rima toante: aj-U-D-A, madr-U-g-A.
a construo consistiu em descobrir a expresso lapidar e
orden-la segundo meios tcnicos que impressionam a percepo.
A mensagem inseparvel do cdigo, mas o cdigo a condio
que assegura o seu efeito.
Mas as
palavras organizadas so mais do que a presena de um cdigo:
elas comunicam sempre alguma coisa, que nos toca porque obedece
a certa ordem. Quando recebemos o impacto de uma obra literria,
oral ou escrita, ele devido fuso inextricvel da
mensagem com a sua organizao. Quando digo que um texto me
impressiona, quero dizer que ele impressiona porque a sua
possibilidade de impressionar foi determinada pela ordenao
recebida de quem o produziu. Em palavras usuais, o contedo s
atua por causa da forma, e a forma traz em si, virtualmente, uma
capacidade de humanizar devido coerncia mental que pressupe
e que sugere. O caos originrio, isto , o material bruto a
partir do qual o produtor escolheu uma forma, se torna ordem;
por isso o meu caos interior tambm se ordena e a mensagem pode
atuar. Toda obra literria pressupe esta superao do caos,
determinada por um arranjo especial das palavras e fazendo um
proposta de sentido.
Pensamos
agora num poema simples, como a lira de Gonzaga que comea com
o verso Eu, Marlia, no fui nenhum vaqueiro. Ele a
escreveu no calabouo da Ilha das Cobras e se pe na situao
de quem est muito triste, separado da noiva. Ento comea a
pensar nela e imagina a vida que teriam tido se no houvesse
ocorrido a catstrofe que o jogou na priso. De acordo com a
conveno pastoral do tempo, transfigura-se no pastor Dirceu e
transfigura a noiva na pastora Marlia, traduzindo o seu drama
em termos da vida campestre. A certa altura diz:
Proponha-me
dormir no teu regao
As
quentes horas da comprida sesta;
Escrever
teus louvores nos olmeiros,
Toucar-te
de papoulas na floresta.
A
extrema simplicidade desses versos remete a atos ou devaneios
dos namorados de todos os tempos: ficar com a cabea no colo da
namorada, apanhar flores para fazer uma grinalda, escrever as
respectivas iniciais na casca das rvores. Mas na experincia
de cada um de ns esses sentimentos e evocaes so
geralmente vagos, informulados, e no tm consistncia que os
torne exemplares. Exprimindo-os no enquadramento de um estilo
literrio, usando rigorosamente os versos de dez slabas,
explorando certas sonoridades, combinando
as palavras com percia, o poeta transforma o informal
ou o inexpresso em estrutura organizada, que se pe acima do
tempo e serve para cada um representar mentalmente as situaes
amorosas deste tipo. A alternncia regulada de slabas tnicas
e slabas tonas, o poder sugestivo da rima, a cadncia do
ritmo criaram uma ordem definida que serve de padro para
todos e, deste modo a todos humaniza, isto , permite que os
sentimentos em do estado de mera emoo para o da forma
construda, que assegura a generalidade e a permanncia.
Note-se, por exemplo, o efeito do jogo de certos sons expressos
pelas letras T e P no ltimo verso, dando transcendncia a um
gesto banal de namorado:
Toucar-Te
PaPoulas na floresTa.
Ts no
comeo e no fim, cercando os Ps do meio formando com eles uma
sonoridade mgica que contribui para elevar a experincia
amorfa ao nvel da expresso organizada, figurando o efeito
por meio de imagens que marcam com eficincia a transfigurao
do meio natural. A forma permitiu que o contedo ganhasse maior
significado e ambos juntos aumentaram a nossa capacidade de ver
e sentir.
Digamos
que o contedo atuante graas forma constitui com ela um
par indissolvel que redunda em certa modalidade de
conhecimento. Este pode ser uma aquisio consciente de noes,
emoes, sugestes, inculcamentos, mas na maior parte se
processa nas camadas do subconsciente e do inconsciente,
incorporando-se em profundidade como enriquecimento difcil de
avaliar. As produes literrias, de todos os tipos e todos
os nveis, satisfazem necessidades bsicas do ser humano,
sobretudo atravs dessa incorporao, que enriquece a nossa
percepo e a nossa viso do mundo. O que ilustrei por meio
do provrbio e dos versos de Gonzaga ocorre em todo o campo da
literatura e explica por que ela uma necessidade universal
imperiosa, e por que fru-la um direito das pessoas de
qualquer sociedade, desde o ndio que canta as suas proezas de
caa ou evoca danando a lua cheia, at o mais requintado
erudito que procura captar com sbias redes os sentidos
flutuantes de um poema hermtico. Em todos esses casos ocorre
humanizao e enriquecimento, da personalidade e do grupo, por
meio de conhecimento oriundo da expresso submetida a uma ordem
redentora da confuso.
Entendo
aqui por humanizao (j que tenha falado tanto nela) o
processo que confirma no homem aqueles traos que reputamos
essenciais, como o exerccio da reflexo, a aquisio do
saber, a boa disposio para com o prximo, o afinamento das
emoes, a capacidade de penetrar nos problemas da vida, o
senso da beleza, a percepo da complexidade do mundo e dos
seres, o cultivo do humor. A literatura desenvolve em ns a
quota de humanidade na medida em que nos torna mais
compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o
semelhante.
Isto
posto, devemos lembrar que alm do conhecimento por assim dizer
latente, que provm da organizao das emoes e da viso
do mundo, h na literatura nveis de conhecimento
internacional, isto , planejados pelo autor e conscientemente
assimilados pelo receptor. Estes nveis so o que chamam
imediatamente a ateno e neles que o autor injeta as suas
intenes de propaganda, ideologia, crena, revolta, adeso
etc. Um poema abolicionista de Castro Alves atua pela eficincia
da sua organizao formal, pela qualidade do sentimento que
exprime, mas tambm pela natureza da sua posio poltica e
humanitria. Nestes casos a literatura satisfaz, em outro nvel,
a necessidade de conhecer os sentimentos e a sociedade,
ajudando-nos a tomar posio em face deles. a que se
situa a literatura social, na qual pensamos quase
exclusivamente quando se trata de uma realidade to poltica e
humanitria quanto a dos direitos humanos, que partem de uma anlise
do universo social e procuram retificar as suas iniquidades.
Falemos
portanto alguma coisa a respeito das produes literrias nas
quais o autor deseja expressamente assumir posio em face dos
problemas. Disso resulta uma literatura empenhada, em parte de
posies ticas, polticas, religiosas ou simplesmente humansticas.
So casos em que o autor tem convico e deseja exprimi-las;
ou parte de certa viso da realidade e a manifesta com
totalidade crtica. Da pode surgir um perigo: afirmar que a
literatura s alcana a verdadeira funo quando deste
tipo. Para a Igreja Catlica, durante muito tempo, a boa
literatura era a que mostrava a verdade de sua doutrina,
premiando a virtude, castigando o pecado. Para o regime sovitico,
a literatura autntica era a que descrevia as lutas do povo,
cantava a construo do socialismo ou celebrava a classe operria.
So posies falhas e prejudiciais verdadeira produo
literria, porque tm como pressuposto que ela se justifica
por meio de finalidades alheias ao plano esttico, que o
decisivo. De fato, sabemos que em literatura uma mensagem tica,
poltica, religiosa ou mais geralmente social, s tem eficincia
quando for reduzida estrutura literria, forma
ordenadora. Tais mensagens so vlidas como quaisquer outras,
e no podem ser proscritas; mas a sua validade depende da forma
que lhes d existncia como um certo tipo de objeto.
V
Feita
essa ressalva, vou me demorar na modalidade de literatura que
visa a descrever e eventualmente a tomar posio em face das
iniquidades sociais, as mesmas que alimentam o combate pelos
direitos humanos.
Falei h
pouco em Castro Alves, exemplo brasileiro que geralmente
lembramos nesses casos. A sua obra foi em parte um libelo contra
a escravido, pois ele assumiu posio de luta e contribuiu
para a causa que procurava servir. O seu efeito foi devido ao
talento do poeta, que fez obra autntica porque foi capaz de
elaborar em termos esteticamente vlidos os pontos de vista
humanitrios e polticos. Animado pelos mesmos sentimentos e
dotado de temperamento igualmente generoso foi Bernardo Guimares,
que escreveu o romance A Escrava Isaura tambm como libelo. No
entanto, visto que s a inteno e o assunto no
bastam, esta uma obra de m qualidade e no satisfaz
os requisitos que asseguram a eficincia real do texto. A paixo
abolicionista estava presente na obra de ambos os autores, mas
um deles foi capaz de criar a organizao literria adequada
e o outro no. A eficcia humana funo da eficcia esttica
e portanto o que na literatura age como fora humanizadora a
prpria literatura, ou seja, a capacidade de criar formas
pertinentes.
Isso no
quer dizer a s serve a obra perfeita. A obra de menor
qualidade tambm atua, e em geral um movimento literrio constitudo por textos de
qualidade alta e textos de qualidade modesta, formando no
conjunto uma massa de significao que influi em nosso
conhecimento e nos nossos sentimentos.
Para
exemplificar, vejamos o caso do romance humanitrio e social do
comeo do sculo XIX, por vrios aspectos uma resposta da
literatura ao impacto da industrializao que, como se sabe,
promoveu a centralizao urbana em escala nunca vista, criando
novas e mais terrveis formas de misria inclusive a da
misria posta diretamente ao lado do bem-estar, com o pobre
vendo a cada instante os produtos que no poderia obter. Pela
primeira vez a misria se tornou um espetculo inevitvel e
todos tiveram de presenciar a sua terrvel realidade nas
imensas concentraes urbanas, para onde eram conduzidas ou
enxotadas as massas de camponeses destinados ao trabalho
industrial, inclusive como exrcito faminto de reserva. Saindo
das regies afastadas e dos interstcios da sociedade, a misria
se instalou nos palcos da civilizao e foi se tornando cada
vez mais odiosa, medida que se percebia que ela era o quinho
injustamente imposto aos verdadeiros produtores da riqueza, os
operrios, aos quais foi preciso um sculo de lutas para verem
reconhecidos os direitos mais elementares. No preciso
recapitular o que todos sabem, mas apenas lembrar que naquele
tempo a condio de vida sofreu uma deteriorao terrvel,
que logo alarmou as conscincias mais sensveis e os
observadores lcidos, gerando no apenas livros como e de
Engels sobre a condio da classe trabalhadora na Inglaterra,
mas uma srie de romances que descrevem a nova situao do
pobre.
Assim,
o pobre entra de fato e de vez na literatura como tema
importante, tratado com dignidade, mas no como delinquente,
personagem cmico ou pitoresco. Enquanto de um lado o operrio
comeava a se organizar para a grande luta secular na defesa
dos seus direitos ao mnimo necessrio, de outro lado os
escritores comeavam a perceber a realidade desses direitos,
iniciando pela narrativa da sua vida, suas quedas, seus
triunfos, sua realidade desconhecida pelas classes bem
aquinhoadas. Este fenmeno em grande parte ligado ao
Romantismo, que, se teve aspectos francamente tradicionalistas e
conservadores, teve tambm outros messinicos e humanitrios
de grande generosidade, bastando lembrar que o socialismo, que
se configurou naquele momento, sob muitos aspectos um
movimento de influncia romntica.
Ali
pelos anos de 1820-1830 ns vemos o aparecimento de um romance
social, por vezes de corte humanitrio e mesmo certos toques
messinicos, focalizando o pobre como tema literrio
importante. Foi o caso de Eugne Sue, escritor de Segunda ordem
mas extremamente significativo de um momento histrico. Nos
seus livros ele penetrou no universo da misria, mostrou a
convivncia do crime e da virtude, misturando os delinquentes e
os trabalhadores honestos, descrevendo a persistncia da pureza
no meio do vcio, numa viso complexa e mesmo convulsa da
sociedade
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