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P
aradoxo dos Direitos Humanos
no Capitalismo Contemporneo
*

Ivete Manetzeder Keil**

Os direitos humanos no nos obrigaro a abenoar o capitalismo.

Gilles Deleuze

INTRODUO 2s6h4p

Nascidos da tradio ocidental (mas no inerentes a ela), numa combinao da filosofia estica com o iluminismo, como querem alguns, ou no cristianismo, como querem outros, os direitos humanos, ainda como temas humanitrios esticos e cristos, foram acolhidos pela tradio de mais de dois mil anos do Direito natural, estendendo-se desde a antigidade at a jurisprudncia racional da era moderna. De l para c, Declaraes, Pactos e Intenes de direitos humanos foram sendo aprovados e ratificados, fazendo parte dos princpios constitucionais de muitos Estados, ou simplesmente negados (seno retirados) por outros pela presso de interesses econmicos, polticos e religiosos. Em outros termos, tanto no campo das aes quanto no campo das protees, os direitos humanos ainda no am de belas palavras. Muito embora, desde a Segunda Guerra Mundial, com a experincia do genocdio praticado pelo nacional-socialismo, sua promoo tenha sido proclamada como meta obrigatria pela comunidade das naes e consolidada atravs da Carta das Naes Unidas.

Hoje, em plena poca de consolidao do processo de modernizao capitalista da economia e da sociedade (fundada na produtividade e competitividade extremas, totalmente obcecada pelas taxas crescentes de lucratividade aos menores riscos e prazos possveis), os modernos direitos humanos povoam os discursos polticos, miditicos, sociolgicos, e tantos outros, como se o sculo que se abre, fatigado das injustias e dos sofrimentos do sculo que se extingue, quisesse conjurar a vergonha ou responder ao intolervel. Infelizmente, isto no a de uma miragem neoliberal na qual os direitos humanos so propagados (mas no efetivados) como valores e prticas ticas indiscutveis.

Ora, todos ns sabemos que persistentes violaes dos direitos civis, polticos e sociais so tristes realidades em todas as regies do mundo, sobretudo nos pases perifricos nos quais atingem nveis de indecncia e monstruosidade. Estas violaes

alm da tortura e dos tratamentos ou penas cruis, desumanos e degradantes, incluem as execues sumrias e arbitrrias, os desaparecimentos, as detenes arbitrrias, o racismo em todas as suas formas, a discriminao racial e o apartheid, a ocupao e dominao estrangeiras, a xenofobia, a pobreza, a fome e outras denegaes dos direitos econmicos, sociais e culturais, a intolerncia religiosa, o terrorismo, a discriminao contra a mulher e o atropelo das normas jurdicas.[1]

Assim, embora os direitos humanos tenham de fato contribudo para o aumento da participao de indivduos e grupos na produo da cidadania e possam ser considerados essencialmente como uma conquista das lutas populares e movimentos sociais que se realizaram ao longo da histria dos homens (sobretudo nos sculos XVIII, XIX e XX), como tambm foram uma esperteza para a abstrao da continuidade (como na Revoluo sa), a experincia cotidiana vivida por ns mostra que neste domnio surgem hoje novos obstculos e desafios que se somam aos que j haviam e que sequer foram superados.

Hoje, a grande questo que se coloca o aparecimento dos direitos humanos como razo central de aes e intervenes planetrias guerreiras, legitimando guerras, violncias e profundas injustias sociais.[2] Em realidade, os direitos humanos alimentam a Mo invisvel do Mercado mundial, por um lado, produzindo um imaginrio de igualdade e paz universal, por outro, contribuindo para compor a perversa equao contempornea da qual fala Gilles Chtelet ao reclamar uma filosofia do combate em seu virulento Vivre et penser comme des porcs, isto , a equao: Mercado = Democracia = Homem mdio.[3]

Neste trabalho Gilles Chtelet se debrua sobre as sociedades do dito Primeiro Mundo, sobre suas democracias-mercado contemporneas que clamam o respeito pelos direitos humanos, mas nas quais na realidade se vive e se pensa comme des porcs. O autor lembra a impostura pseudo-libertria do caos e da auto-organizao no contexto da Contra-Reforma neoliberal e denuncia o Grande Mercado, tido por alguns como uma manifestao das virtudes criadoras do caos, como o grande destruidor do Estado social, herana da segunda onda industrial, para substitu-lo pela terceira onda ps-industrial considerada leve, urbana, nmade. Nela nos tornamos seres cibernticos que pastam mansamente entre os servios e as mercadorias ofertadas. Por ela nos distanciamos da ao poltica autntica e fascinados nos deleitamos com a fluidificao absoluta das fronteiras, dos mercados, das informaes. O homem mdio se sintetiza como tomo produtor-consumidor de bens e servios. Vive com gozo a volatizao do capital, dos servios, do trabalho e dele mesmo. O homem fludo, o trabalho flexvel, o capital voltil, a democracia tecno-populista eis o resultado de nossa fabulosa engenharia social.

Diante das estratgias de manipulao e da instabilidade que realam a fragilidade dos assuntos contemporneos e da impossvel soberania da multido, cabe examinar o contexto capitalista da sociedade ps-industrial ou ps-moderna, e a repensar os direitos humanos e o seu discurso cnico que se impe em escala planetria. E, ento, corajosamente recusar o domnio da globalizao liberal que tem substitudo progressiva e aceleradamente a poltica pelo mercado, como instncia privilegiada de regulao, definio e determinao social. Nos lembra Hannah Arendt, poltica e direito so complementares: a poltica favorece a diversificao da ao e o direito preserva e protege a sua especificidade.[4] Sabemos que no escapamos das conseqncias dos nossos atos, mas ainda h tempo de recusar o destino de gado cognitivo[5] e de bucha de consenso,[6] e construir uma crtica emancipatria.

Com esta perspectiva crtica, nesta contribuio assumo a tarefa de falar sobre os direitos humanos no capitalismo ps-industrial e nela defendo duas teses. Teses estas que j venho discutindo, na nossa Universidade e fora dela, h muito tempo:

1- na primeira tese junto-me queles que consideram que a nova ordem mundial promovida pelo capitalismo ps-industrial em grande parte edifica os fundamentos de sua legitimao atravs dos direitos humanos. Os direitos humanos so na realidade absolutamente impotentes e demasiadamente ornamentais para promover emancipaes e liberdades coletivas e universalistas;

2- paradoxalmente, a partir de uma linha tica vinda do interior dos direitos humanos, tambm est sendo produzido um enorme potencial de subjetividade poltica que se ope nova ordem mundial.

No limite de uma interveno, para ir ao fundo das coisas e de modo conciso, discuto, em termos gerais, a nova ordem do mundo preparando o terreno para abordar a questo dos direitos humanos enquanto legitimador do capitalismo contemporneo. Em seguida, minha ateno se volta ao seu paradoxo, isto , os direitos humanos enquanto locus possvel de fecundao de contestaes e alternativas contra as configuraes atuais da mundializao e da globalizao liberal e do seu clssico slogan: There is no alternative.

Antes de desenvolver os argumentos, considero til observar que a nova ordem mundial que agora se configura no expressa a pretenso e o desejo da multido e tampouco ela inevitvel, mas aparece como fruto da vontade poltico-econmica de alguns que se beneficiam com ela. Chomsky na Conferncia DAlbuquerque, proferida no Novo Mxico, em 26 de fevereiro de 2000, por ocasio do vigsimo aniversrio do Centro de documentao intercontinental, observa que a

ordem scio-econmica particular que se impe o resultado de decises humanas tomadas no interior de instituies humanas. As decises podem ser revertidas e substitudas, como pessoas honestas e corajosas, fizeram ao longo da histria.

Portanto, falar da inevitabilidade das transformaes econmicas atuais no mnimo insensato.

DEMOCRACIAS-MERCADO CONTEMPORNEAS 561151

Seja como for, e mesmo que se possa argumentar que o capitalismo sempre tenha funcionado como uma economia mundial, somente na segunda metade do sculo XX que empresas industriais e financeiras multinacionais e transnacionais comearam de fato a compor biopoliticamente os territrios em escala mundial. Este novo movimento do capital faz declinar a fora poltica dos Estados-nao dissipando qualquer dvida sobre a possibilidade de que eles ainda possam influenciar os parmetros do desenvolvimento econmico. Para se ter uma idia, a nvel da Amrica Latina, a Carta Econmica das Amricas por determinao dos Estados Unidos, em fevereiro de 1945, decretou o fim do nacionalismo econmico latino-americano. Est claro que a nova ordem mundial das democracias-mercado contemporneas vem sendo construda h vrias dcadas, rompendo hoje mais claramente com os projetos capitalistas de abordagem keynesiana para dar lugar a um projeto que rene poder econmico e poder poltico.

As relaes de poder se reorganizam e adquirem uma configurao totalmente desnacionalizante. Como lembra Elmar Altvater, a desnacionalizaco e o enfraquecimento das fronteiras, que acompanham a desregulamentao, fixaram marcos de um campo terico novo.[7] Compreender isto muito importante porque em termos constitucionais, os processos de mundializao e de globalizao no so mais simplesmente um fato, mas so tambm uma fonte de definies jurdicas, tendendo a projetar uma configurao supranacional nica de poder poltico,[8] que gira em torno dos Estados Unidos. Neste quadro, muitos no desprezam a idia de continuidade imperialista (um novo imperialismo), mas preciso ir mais alm. Toni Negri e Michael Hardt, referindo-se ao imperialismo, lembram que isto que habitualmente gerou conflitos ou rivalidades entre vrias potncias foi substitudo por um poder nico. Lembram eles que hoje se consolida uma nova inscrio de autoridade e um novo projeto de produo de normas e de instrumentos legais de coero. Isto , novas figuras jurdicas mostram uma tendncia em direo regulao centralizada e unitria do mercado mundial.[9] Como eles, vrios autores, referem-se ao nascimento de uma nova era imperial. Isto significa dizer que se abre um abismo entre os projetos anteriores do capitalismo e o projeto do capitalismo ps-industrial. Claro est que todos estes projetos (ou fases de um mesmo projeto) constituem o mesmo movimento antagonista do capital e da explorao social, figurando desde sempre como tendncia histrica do desenvolvimento capitalista. Grandes so as transformaes que ocorrem na agem do capitalismo industrial ao capitalismo ps-industrial, s para se ter uma idia, entre outras, podemos citar:

Capitalismo industrial 3w6j

Capitalismo ps-industrial 6v60b

1. Dominante capital nacional.

1. Dominante capital firmas transnacionais e oligoplios mundiais.

2. Dominante industrializao.

2. Dominante capital financeiro;

3. Poder disciplinar.

3. Poder controle mundializado.

4. Estados nacionais influenciando os parmetros do desenvolvimento econmico.

4. Fim da influncia dos Estados nacionais nas decises econmicas, declnio do Estado-nao.

5. Instituio do Estado de bem-estar como poltica acomodadora do trabalho, da pobreza extrema, marginalizao.

5. Desmantelamento do Estado de bem-estar: fim sistema proteo social, pobreza, pobreza e desemprego, precarizao do trabalho, pobreza extrema, excluso.

6. Explorao fora de trabalho.

6. Intensificao da explorao.

7. Geopoltica.

7. Geoeconomia.

8. Pirataria ecolgica.

8. Expanso da pirataria ecolgica.

9. Acelerada degradao das condies de existncia[10].

Em outros termos, como j referi em trabalho anterior, o capitalismo ps industrial traz ao mundo modificaes importantes: 1-dispensa o Estado de bem estar; 2-acentua o processo de fragmentao dos operrios enquanto classe; 3- transforma a relao salarial, que se estende agora a uma escala mundial, tornando frgil a relativa fora que os operrios gozavam na era fordista; 4- produz uma fora de trabalho flutuante e mvel que tende a acentuar a segmentao social e a decompor as estreitas relaes entre a fbrica e o territrio que unifica as categorias populares.[11] Portanto, desenhado pelo capitalismo, o novo contexto da economia-mundo se caracteriza pela grande concentrao e transnacionalizao do capital, pelo jogo do mercado financeiro, pelo desenvolvimento desigual, pela produo do desemprego, pela proletarizao de enorme contingente de trabalhadores (naes inteiras) e pela acumulao flexvel. Esta a realidade da modernizao capitalista planetria.

Em realidade, a economia mundial foi fortemente submetida aos ritmos e exigncias do capital financeiro, ofertando um mundo mais profundamente organizado e determinado pelo dinheiro em suas diferentes formas. Ora, ns sabemos com Marx que o dinheiro, abstrato e privado de sensibilidade, tem um contedo eminentemente de desigualdade e de explorao. Entretanto, as polticas liberais, no jogo de foras entre o capital e o trabalho, privilegiam fortemente o primeiro, colocando os homens contemporneos, principalmente dos pases perifricos, fora do alcance dos ganhos de produtividade do trabalho. Elmar Altvater no nos deixa esquecer que no mundo contemporneo, de acordo com os dados da Organizao Internacional do trabalho (OIT), mais de 700 milhes de pessoas esto desempregadas ou precariamente empregadas.[12]

Alis, os resultados das investigaes sobre as novas polticas econmicas no so nada encorajadoras, ao contrrio. Elas mostram que os pobres sofreram queda absoluta e real de renda enquanto que os mais ricos tiveram suas rendas aumentadas. Contrariando as informaes oficiais, estudos comparativos do desempenho econmico brasileiro correspondente ao ano de 92 e 98, realizados na Unicamp pelo economista e professor Waldir Quadros, mostram que a participao nos ganhos totais da terceira camada da populao brasileira, constituda por indivduos pobres, decresceu de 33,4% para 30% enquanto seus rendimentos mdios relativos caram de 2,1% para 1,9%. A parcela da quarta camada, isto , dos mais pobres, teve seu rendimento total decrescido de 8,4% para 6,9%. A primeira camada, isto , os mais ricos do pas, beneficiados pelas polticas liberais, tiveram um crescimento real de renda ando de 41,1% para 45,2%. Portanto, estamos longe de qualquer possibilidade de elevao das taxas de crescimento econmico, uma vez que as polticas econmicas adotadas pelo governo brasileiro so extremamente concentradoras e centralizadoras.

No difcil verificar as propores com que isto vem ocorrendo, pois o que se v atualmente so nveis extremamente elevados de desemprego de longa durao e violenta precarizao do trabalho. Em o Colapso da modernizao Robert Kurz chama ateno sobre o fato de que hoje o sofrimento do Terceiro Mundo no mais deriva da explorao capitalista da fora de trabalho, mas da ausncia desta explorao:

ningum precisa da grande maioria dessas massas desarraigadas, levando esta parte uma vida miservel e improdutiva fora de qualquer estrutura de reproduo coerente (...) a maioria da populao mundial consiste hoje em sujeitos-dinheiro sem dinheiro, em pessoas que no se encaixam em nenhuma forma de organizao social, nem na pr-capitalista, nem na capitalista, e muito menos na ps-capitalista, sendo foradas a viver num leprosrio social que j compreende a maior parte do planeta:[13]

No mais o homem confinado que toma a existncia, diz Gilles Deleuze, mas o homem endividado.[14]

De fato, no plano social, os resultados das polticas neoliberais mostram um acelerado aumento da pobreza e de surtos de violncia em todos os nveis e um processo regressivo de desmantelamento do Estado de bem estar. Aqui se faz necessrio uma explicao: no fao a defesa do Estado, ao contrrio, pois o Estado, como diz Robert Kurz, uma mquina de alienao.[15] Na verdade, considero o Estado e sua governabilidade centralizada nefasto s igualdades sociais e econmicas, entretanto no quadro de acelerado aprofundamento dos antagonismos sociais que vivemos hoje so fundamentais as conquistas obtidas pelas lutas operrias que tiveram como resultado o Estado de bem estar (em alguns pases apresentado em uma forma mais acabada, em outros, em uma forma apenas embrionria). A rigor o Estado de bem estar serviu apenas para acomodar a pobreza. Cabe lembrar com Gilles Deleuze que s se pode pensar o Estado em relao ao que est para alm dele, o mercado mundial, e ao que est aqum dele, as minorias, os devires, as pessoas. [16]

Voltemos nova economia liberal, mundializada e globalizada, para dizer que ela instaura um novo processo de excluso excluindo totalmente indivduos e grupos do processo econmico. Face as contingncias histricas do capitalismo, pode-se afirmar que nunca o mundo produziu, ao mesmo tempo, tanta riqueza e tanta pobreza quanto agora. Milton Santos em Por uma outra globalizao refere-se a uma pobreza estrutural globalizada, resultante de um sistema de ao deliberada na qual os pobres no so includos nem marginais, eles so excludos.[17]

Esse novo universal instaura um modelo universal de excluso. Alis no nos cabe estranhar, porque alm desse modelo universal de excluso resultado do capitalismo, s uma coisa universal, o mercado. No existe Estado universal, justamente porque existe um mercado universal cujas sedes so os Estados, as Bolsas. Ora, ele no universalizante, homogeneizante, uma fantstica fabricao de riqueza e de misria.[18]

A nova ordem mundial deixa sobrar um incmodo contingente de trabalhadores sem trabalho, abrindo a arena da competitividade na qual h, a todo custo, que se vencer o outro, esmagando-o para tomar seu lugar.[19] Esse movimento marca a exacerbao dos individualismos: na vida econmica, na ordem poltica, na ordem dos territrios, na relao social e afetiva, produzindo subjetividades muito perversas e eticamente fracassadas. O fato de no se ter trabalho numa sociedade salarial (na qual o universo de referncia identitrio o trabalho), a extrema competitividade, o abandono do compromisso tico-poltico, tanto no campo material quanto simblico, tem implicaes extremamente importantes. Os comportamentos de incluso e excluso social cada vez mais so interiorizados pelos prprios sujeitos e tornados inquestionveis. Como observa Michel Foucault, a vida foi transformada num objeto de poder.[20]

Interferindo no sentido da vida e no desejo de criatividade, o poder se exerce hoje por mquinas que organizam diretamente os crebros (pelos sistemas de comunicao, das redes de informao...) e os corpos (pelos sistemas de vantagens sociais, de atividades enquadradas...) em direo a um estado de alienao autnomo.[21] O novo paradigma do poder o biopoder gera e regulamenta a vida social com a finalidade de privilegiar o capital e organizar o Imprio, tratando a esfera planetria como um conjunto sistmico nico. Evidentemente, para isso necessita de tecnologias especficas: flexveis e formativas (tcnicas de polcia). Dominar os espaos ilimitados do planeta, penetrar nas profundezas do mundo biopoltico e afrontar uma temporalidade imprevisvel tais so, para Toni Negri e Michael Hardt, as determinaes sobre as quais o novo direito supranacional deve ser definido.[22]

OS DIREITOS HUMANOS COMO ESTRATGIA DO PODER 48436v

No cenrio do capitalismo ps-industrial, portanto, transformados em estratgias de poder, com poder de polcia, os direitos humanos funcionam como uma poltica contra os direitos humanos. Esse movimento indissocivel da problematizao feita por Michel Foucault a respeito do biopoder, ou ainda de Antonio Negri com o conceito de biopoltico produtivo, pois que implica no poder de criar, istrar e controlar a vida produzindo e reproduzindo subjetividades e formas de vida. Ou seja, os direitos humanos, com a idia de que acima do direito positivo que emana dos poderes existe um direito superior que verdadeiramente o poder legtimo, funciona como estratgia do novo poder.

O jogo simples: a primeira vista, os direitos humanos, enquanto resultados de conquistas histricas, de fato parecem interferir no descaso do poder positivo face as precariedades, conflitos e desajustes das sociedades contemporneas, na prtica afirma a solidez da fora material e simblica da nova ordem mundial sobre os Estados-nao e realiza uma poltica geoeconmica. A legitimidade de suas aes e intervenes produzida em razo da carga teolgica que carrega como seu constitutivo numa sociedade em que, infelizmente, o homem quer ocupar o lugar de Deus. Edouard Delruelle observa que em colocando o homem no lugar de Deus, em falando em nome dos direitos humanos e no mais em nome de Cristo fica assegurado a perpetuao dogmtica (que a prpria religio quer livrar-se) como estrutura, como referncia legitimamente organizada em nome de um sujeito universal, central e superior. Mantm-se a velha idia teolgica que um poder (potestas) se apoia sempre sobre alguma autoridade (auctoritas).[23]

Em outros termos, para que possa se estabelecer, o capitalismo ps-industrial produz em nome dos direitos humanos um novo exerccio de foras legtimas, justamente, no momento em que constri seus fundamentos. Tendo a visibilidade planetria, a tica e a paz como argumentos, a eficcia do uso da fora que funda a legitimidade do novo poder. Razo pela qual se utiliza de intervenes tanto militares quanto humanitrias. Os direitos humanos desempenham na sociedade contempornea a funo de polcia mundial favorecendo os interesse da economia triunfante ando a ignorar, ainda mais, as violaes cometidas pela esfera econmica. Ora,

na medida em que geram reivindicaes substanciais, certos direitos materiais no podem ser democratizados. Por exemplo: todos podem participar de eleies em igualdade de condies, mas no de um alto consumo de recursos naturais. Eis a tragdia, por assim dizer, do processo democrtico: as regras formais do jogo no se encaixam com as contingncias do jogo.[24]

O direito ao desenvolvimento, justia social e ao o riqueza natural, dos indivduos e povos, considerados fundamentais para o discurso democrtico moderno tornaram-se letra morta, fazendo calar a razo crtica.

Sem dvida, a ordem democrtica sofre atualmente uma enorme corroso, uma vez que sua lgica no compatvel com a racionalidade do mercado mundial. Pois, os que decidem na economia negam a territorialidade poltica ou ento a tomam como uma oportunidade de especulao atravs da arbitragem com o cmbio, ou seja, a reduzem ao clculo econmico.[25] A concluso que se pode chegar mostra que o papel democrtico necessrio s tomadas de decises poltica, social e economicamente relevantes para a igualdade social e econmica mundial aparece extremamente reduzido: qualquer participao nestes termos desigualmente distribuda. A desigualdade a verdadeira essncia do capitalismo, agora exacerbada na nova ordem mundial. Ora, o conceito ocidental dos direitos humanos, nos lembra Robert Kurz, contm como pr-requisito tcito saber se o indivduos tem valor de venda e poder de compra. Quem no preenche esses critrios na verdade no mais um ser humano, mas uma poro de bio-massa.[26]

Interessa agora para ns destacar a evidncia das consideraes assinaladas por Slavoj Zizek em seu artigo Direitos humanos e tica perversa, escrito para o Caderno Mais da Folha de So Paulo,[27] nas quais o autor observa que a neutralidade dos direitos humanos fictcia, uma vez que os direitos humanos atendem aos interesses da nova ordem mundial dominada pelos Estados Unidos. Entre suas diversas interrogaes Slavoj Zizek pergunta porque Henri Kissinger, considerado criminoso de guerra tal qual Pinochet e Milosevic, ainda no est preso. E sugere como ato poltico autntico a sua priso argumentando que

este gesto colocaria o maquinario internacional de direitos humanos prova, obrigando seus executores a deixar claro sua posio e a fazer a escolha: ou o imprio americano obrigaria esse pas a soltar Kissinger, com isso expondo a grande fraude dos direitos humanos ou....

O filsofo sloveno solidifica suas crticas utilizando-se de contundentes argumentos. Pergunta ele a propsito de cada interveno especfica realizada em nome dos direitos humanos: baseada em que critrios foi feita essa escolha? Por que os albaneses na Srvia e no os palestinos em Israel, os curdos na Turquia? Por que Cuba boicotada enquanto o regime norte-coreano, muito mais rgido, recebe ajuda gratuita para desenvolver capacidades atmicas seguras? Na verdade, a nova ordem mundial produz, sob a mscara dos direitos humanos, um novo exerccio de foras legtimas. Ora, sabemos que as aes e as intervenes no s militares, mas tambm as humanitrias, exercem o poder de polcia sob a denominao de funes ticas.



** Antroploga. Pesquisa poder e subjetividade. Professora PPGEduc Bsica Unisinos.

[1] ALMEIDA, Fernando Barcellos. Teoria geral dos direitos humanos. Porto Alegre : Fabris, 1996, p.172.

[2] Muitas crticas so feitas aos Direitos Humanos. Neste sentido, dois bons exemplos so: 1- sua expresso como uma viso unilateral e individualista de ser humano, legitimando profundas diferenas de oportunidades e de condies de vida; 2- a ausncia de reivindicaes para a real superao da pobreza e da excluso.

[3] CHTELET, Gilles. Vivre et penser comme des porcs. Paris : Gallimard, 1998.

[4] ARENDT, Hannah. A condio humana. Rio de Janeiro: Forense- Universitria, 1988.

[5] Idem, p.22.

[6] Id. Ibid., p. 16.

[7] ALTVATER, Elmar.Os desafios da globalizao e da crise ecolgica para o discurso da democracia e dos direitos humanos. In. HELLER, Agmes et. Alli. A crise dos paradigmas em cincias sociais e os desafios para o sculo XXI.. Rio de Janeiro: Contraponto, 1999, p.112.

[8] NEGRI, Antonio; HARDT, Michael. Empire. Paris : Exils,2000, p.32.

[9] idem

[10] Este fenmeno da mundializao, povoa os tempos modernos de crises econmicas, de guerras e torna o capital o grande predador planetrio. Todos sabemos que as destruies ecolgicas e a pilhagem dos recursos naturais, enfim, a pirataria ecolgica, foram acelerados e intensificados com a mundializao.

[11] VAKALOULIS, Michel. Le capitalisme post-moderne. Paris : PUF, 2000.

[12] ALTVATER, Elmar.Os desafios da globalizao e da crise ecolgica para o discurso da democracia e dos direitos humanos. In. A crise dos paradigmas em cincias sociais e os desafios para o sculo XXI. Agnes Heller et al. Rio de Janeiro : Contraponto, 1999, p.111.

[13] KURZ, Robert. O colapso da modernizao. Da derrocada do socialismo de caserna crise da economia mundial. So Paulo : Paz e Terra, 1999, 181.

[14] DELEUZE, Gilles. Conversacoes : 1972-1990. - 1. Ed. - Rio De Janeiro : Editora 34, 1992.

[15] KURZ, Robert. O colapso da modernizao. Da derrocada do socialismo de caserna crise da economia mundial. So Paulo : Paz e Terra, 1999, p.40.

[16] DELEUZE, Gilles. Op. cit.

[17] SANTOS, Milton. Por uma outra globalizao. Do pensamento nico conscincia universal. Rio de Janeiro : Record, 2000, p. 72.

[18] DELEUZE, Gilles. Op. cit., p. 213.

[19] SANTOS, Milton. Por uma outra globalizao. Do pensamento nico conscincia universal. Rio de Janeiro : Record, 2000, p. 46.

[20] FOUCAULT, Michel. Les mailles du pouvoir, in Dits et crits. Paris : Gallimard, 1994, vol.4, p.182-201.

[21] NEGRI, Antonio e HARDT, Michael. Empire. Paris : Exils,2000, p. 49.

[22] NEGRI, Antonio e HARDT, Michael. Empire. Paris : Exils,2000, p. 52.

[23] DELRUELLE, Edouard. Lhumanisme, inutile et incertain? Bruxelles : Labor, 1999, p.21.

[24] ALTVATER, Elmar.Os desafios da globalizao e da crise ecolgica para o discurso da democracia e dos direitos humanos. In. A crise dos paradigmas em cincias sociais e os desafios para o sculo XXI. Agnes Heller et al. Rio de Janeiro : Contraponto, 1999, p.125.

[25] ALTVATER, Elmar.Os desafios da globalizao e da crise ecolgica para o discurso da democracia e dos direitos humanos. In. A crise dos paradigmas em cincias sociais e os desafios para o sculo XXI. Agnes Heller et al. Rio de Janeiro : Contraponto, 1999, p.117.

[26] KURZ, Robert. O mpeto suicida do capitalismo. Folha de So Paulo 30 de setembro de 2001.

[27] Jornal Folha de So Paulo 1/07/2001.

A Guerra do Golfo aparece como o grande marco dessa poltica, atravs dela mostrado mais claramente ao mundo o novo regime especfico de relaes mundiais, no qual a guerra sacralizada pelos direitos humanos, se justifica por ela mesma. O novo poder legitima o aparelho militar fundando-o na tica e na paz e junto produz um imaginrio no qual o inimigo ameaa esta paz desejada e a ordem tica mundial. O Imprio no se constitui a partir da fora, mas como lembram Toni Negri e Michael Hardt, se constitui sobre sua capacidade de apresentar a fora como estando ao servio do direito e da paz.[1] Todas as intervenes so solicitadas por algumas das partes do conflito j existente fato que legitima a prpria interveno. E atravs delas que a nova ordem mundial (imperial) expande seu poder e o mantm e, ainda mais, inscrita na idia de preveno e represso, a nova ordem produz um imaginrio de equilbrio social: tudo isso prprio do poder de polcia. Assim, em nome dos direitos humanos a atividade mundial de polcia demonstra capacidade e eficcia real para criar e manter a ordem.

No capitalismo ps-industrial desenvolvem-se estruturas de poder propriamente globais. So estruturas que expressam as configuraes e os movimentos, as articulaes e as contradies no mbito da sociedade global.[2] Com as novas tcnicas de poder e do poder de polcia mundial, observa-se o nascimento de um novo ethos de e em dimenses mundiais, impossibilitando o acontecimento da democracia (da multido). Entretanto, no h ordem natural, o que os homens contemporneos mostram fruto de uma contingncia: hoje as determinaes supranacionais sobredeterminam as determinaes nacionais e locais. O destino do mundo no est sendo regido pelas vontades coletivas, mas por vontades particulares curvadas ao dinheiro, riqueza, ao lucro. So tticas de governabilidade mundial, nas quais as sociedades aparecem protegidas pelas intervenes. Todos esto supostamente implicados no interior dessas novas dimenses: nossa responsabilidade tica, nossa cidadania, nossa potncia e nossa impotncia encontram a sua medida.

O sintoma mais significativo desta contingncia, portanto, o direito de interveno. Os sujeitos dominantes intervm legitimados pelo imaginrio de defesa das urgncias e ticas superiores universais, os sujeitos dominados, portadores de uma essncia desordenadora e perversa, so invadidos, aniquilados, e a realidade contempornea vai sendo desastrosamente embrutecida pela guerra, pela misria, pelo medo. A constituio da nova ordem planetria consolida uma nova mquina istrativa e produz novas hierarquias operantes em escala mundial. Ou seja, o Imprio emerge como um centro que ordena a globalizao das redes de produo e tece uma tela extremamente englobante para tentar englobar, por sua vez, todas as relaes de poder na ordem mundial desenvolvendo uma importante funo de polcia ao mesmo tempo contra os novos brbaros e contra os escravos rebeldes que ameaam a ordem.[3] Toda a contradio que esta nova ordem comporta faz com que a idia de poder novamente encontre a idia de incerteza, observao j feita por Maquiavel diante da realidade do seu tempo.

Emaranhados nesta nova perspectiva de mundo, muitos interrogantes povoam nossa inquietude: quem poder por um fim s desigualdades sociais? possvel pensar-se em direitos humanos sem repensar a questo da propriedade e do poder? Qual o conceito de paz que agora se constitui? O sonho da democracia da multido tornou-se impossvel? Podero surgir novas subjetividades polticas? Os direitos humanos sero capazes de construir uma subverso tica contra a nova ordem mundial?

UM OUTRO POSSVEL: A Fecundao De Uma Nova Subjetividade Poltica 3l4063

Eric Alliez e Michel Feher em Contretemps[4] trabalham com a idia de que ao armos do capitalismo industrial ao capitalismo ps-industrial (do imperialismo nova era imperial) ns amos tambm de um regime de sujeio a um regime de servido. Isto significa dizer que ocorre uma enorme transformao no capitalismo. O argumento utilizado pelos autores o seguinte: no sistema de sujeio social o capitalismo considera os homens como sujeitos livres capazes de se reconhecerem na produo como a sua essncia subjetiva. Ou seja, o capital trata separadamente homens e equipamentos aos quais esses mesmos homens vm sujeitar-se. No h nenhuma confuso entre eles: homens so homens e equipamentos so equipamentos. Tambm a as fronteiras entre as esferas produtivas e reprodutivas esto muito bem demarcadas. A sujeio s pode acontecer a partir da liberdade de um sujeito, de uma subjetividade livre que s se atualiza pela livre submisso s condies capitalistas de produo, de consumo e de circulao. O indivduo livre para circular em diferentes esferas: a fbrica, a casa... exercendo sua liberdade individual. Os espaos se definem de modo distinto e compartimentado, como tambm o tempo: do trabalho, do lazer, do consumo... o indivduo os percorre livremente. exatamente com esse sistema que o capitalismo ps-industrial rompe, utilizando-se da nebulosidade das fronteiras.

As transformaes observadas pelos autores indicam que no capitalismo ps-industrial os dispositivos de sujeitamento dos indivduos ao capital so substitudos por uma forma de escravizao dos indivduos pelo capital. A expanso da esfera produtiva invade a esfera reprodutiva e a empresa coloniza o tempo livre do trabalhador: o espao domstico torna-se tambm ele produtivo. Evidentemente, o que est em jogo a prpria subjetividade do trabalhador. Isto ,

a diluio progressiva de todas as diferenas de estatuto entre as instncias ocultadas pelo capital constante (meios e objetos de trabalho) e pelo capital varivel (a fora de trabalho), em outras palavras, pela escravizao maqunica objetiva dos indivduos pelo capital, corresponde uma nova relao com eles mesmos que realiza, subjetivamente, a sua integrao no capital do qual eles se consideram um pedao. A nova estratgia capitalista faz com que a desubjetivao dos trabalhadores desge na sua escravizao pelo capital.[5]

No ser muito dizer que nasce um novo tipo antropolgico, na medida em que a sujeio cuja condio a liberdade substituda por uma contnua servido, produzindo novas subjetividades s quais a importncia da liberdade parece estar secundarizada.

Lembram Gilles Deleuze e Felix Guattari em Mille plateaux que a servido e a sujeio compem-se de modos distintos: a primeira toma existncia quando os prprios homens so peas constituintes de uma mquina, mas a segunda, s ocorre quando a unidade superior constitui o homem como um sujeito que se reporta a um objeto tornado exterior. O homem no um componente da mquina, mas um trabalhador, um usurio... A diferena reside no fato de que o homem servil mquina, e no a ela submetido. Ora, ns todos sabemos o quanto o capitalismo sempre investiu na subjetividade.

A subjetividade servil retira o indivduo da vivncia coletiva, do seu prprio reconhecimento enquanto trabalhador livre e explorado pelo capital. O indivduo levado a pensar-se dotado de uma alma de empresrio[6] e, tomado pelo esprito de empresa, se mistura com o capital, e dele parte integrante. Isso fica muito bem explicado quando se percebe que na dinmica do processo de globalizao liberal, o desempenho da economia a a depender menos dos fatores de produo baseados no territrio, como riqueza mineral, qualidade de solo e disponibilidade de recursos naturais, e mais de fatores no-geogrficos, como o o a tecnologia, estratgias de marketing, produo informatizada, criatividade organizacional, gerenciamento de sistemas e capacidades de resposta s mudanas no mercado consumidor, em princpio todos eles baseados na empresa.[7]

Entre as diversas conseqncias desse tipo de processo de subjetivao que torna-se mais difcil o acontecimento das organizaes e lutas coletivas. Estamos de fato na era do homem convertido escravizao maqunica. Outra referncia no negligencivel produo da subjetividade servil que o homem deixa de ser, no s um trabalhador livre, mas tambm um consumidor livre. Como mostram Michel Feher e Eric Alliez ao longo de sua obra, a concepo que tem o capitalismo ps-industrial a respeito do homo economicus consagra o indivduo como um produtor-consumidor.

Os direitos humanos institucionalizados (Declaraes, Pactos e Tratados) no problematizam os fundamentos do capitalismo, nem as produes capitalistas e muito menos suas nefastas conseqncias, ao contrrio. Falar nisso nos suscita a pergunta que no de hoje, certamente, mas que ganha uma especial urgncia diante da problemtica conjuntura de desigualdades e excluses que desafiam a agenda clssica de universalizao dos direitos, isto , onde esto as reais aes das instituies que dizem promover os direitos humanos contra essa economia predadora e selvagem que leva o poder pblico a se misturar (confundindo-se) com o capital transnacional a ponto de financi-lo em detrimento das igualdades econmicas e sociais? Ora, os direitos humanos sempre agem a favor do capitalismo legitimando-o, sobretudo, quando no se opem de fato contra as violaes dos direitos econmicos, polticos e sociais.

Na nova ordem mundial, as subjetividades que esto sendo produzidas tendem ao narcisismo e ao individualismo exacerbados. A rigor no h lugar para um modo solidrio, fraterno e coletivo de vida. A nova ordem mundial, fecundada pelo capitalismo ps-industrial, com muito mais tenacidade do que desejava o capitalismo industrial e a ordem por ele produzida, parece querer bloquear qualquer poltica de liberao. Evidentemente, os direitos humanos enquanto poltica de sustentao e legitimao, materializam a unidade primordial que possibilita esta relao entre os indivduos (enquanto sociedade civil) e o mercado e tornam possvel este bloqueio.

Entretanto, paradoxalmente, os direitos humanos produzem tanto uma contra-mundializao quanto uma contra-globalizao liberal em dois movimentos: 1- h no planeta uma grande mobilizao, mostrando uma experincia produtiva comum da multido: so os novos nmades do mundo capitalista. Com eles as normas convencionais das relaes humanas, espaciais e temporais, econmicas e sociais, tendem a se reorganizar numa perspectiva contestatria e transformadora. Sabemos que, ao contrrio do povo, a multido sempre desobediente; 2- Os direitos humanos ao querer legitimar a nova ordem mundial (imposta pelo capitalismo ps-industrial) e, portanto, preparar o terreno para as intervenes militares e humanitrias, traz para o debate valores da vida. precisamente, esta problematizao dos valores da vida que poder construir outra coisa, isto , uma nova subjetividade poltica, uma vontade afirmativa e um contra poder.

Michel Foucault mostra como a resistncia, o contra poder, portanto, invoca o poder da vida e suas mltiplas foras. H muitas foras crescendo contra a servido, como muitas foras tambm cresceram contra a sujeio, a fim de guardar a vida em movimento. Com efeito, ao longo da histria dos homens as fortes presses que emergiram das lutas populares e dos movimentos sociais em prol de direitos emancipatrios, possibilitaram alguns avanos na perspectiva de uma nova cultura poltica ligada a participao e insero de grupos populares.

Sabemos que direitos polticos foram conquistados particularmente pelas lutas operrias do sculo XIX e incio do sculo XX e pelos movimentos feministas ao longo do sculo XX; presses exercidas pelos indivduos desprovidos de bens e pelas mulheres, nos primrdios do liberalismo (perodo no qual o direito censitrio estava atrelado idia de independncia econmica) possibilitaram algumas conquistas importantes a nvel de direitos. A conquista de direitos traz nela o sentido da inveno de regras de civilidade e de socialidade democrtica.

verdade que somente um sculo e meio aps a primeira declarao de direitos humanos logrou-se alcanar a igualdade dos direitos civis tanto dos homens quanto das mulheres. Mas todos sabemos que processos emancipatrios so realizados com avanos, mas tambm com grandes recuos. longa a lista das lutas e reivindicaes de direitos emancipatrios e das conquistas que a partir delas foram e esto sendo produzidas, sero longas tambm as lutas e reivindicaes que ainda temos pela frente.

Convm entendermos que as lutas populares, as denuncias e questionamentos que realizam, a exigncia dos direitos, tornam mais visveis as antinomias e contradies da vida social. Lembrar isso pode parecer banal, mas os sujeitos que se fazem ver e reconhecer na luta pelos direitos, produzem uma espcie de pedagogia para si mesmos e para toda a sociedade. Esta pedagogia que vem da palavra pronunciada e do ato realizado est carregada de positividade. Atravs dela trava-se o debate sobre as regras da vida em sociedade, das medidas de igualdade e das regras de justia que devem balizar as relaes sociais, definindo-se na arena pblica as responsabilidades das desigualdades e das injustias sociais. Atravs dela (refiro-me ainda pedagogia) coloca-se em cheque o capitalismo ps-industrial e a nova ordem mundial, ou seja, a globalizao liberal e quer se subverter as hierarquias reais e simblicas existentes. Isto significa dizer que , justamente, no conflito travado nas lutas populares e nos movimentos sociais que os princpios universais da cidadania se singularizam. Assim, quando os ndios, os negros, os sem terra, os desempregados... falam sobre o que afeta suas vidas e reivindicam seus direitos, so subjetividades crticas que se inscrevem na cena pblica abrindo o debate. Lembra Vera da Silva Telles na sua conferncia Direitos sociais: afinal do que se trata? que nessa tessitura polmica da vida poltica construda no cenrio das disputas e antagonismos, das divergncias ou no-convergncias em torno de temas pertinentes ou projetados como tais na vida pblica pela prpria dinmica democrtica dos conflitos, que se pode encontrar a chave para decifrar nossa prpria atualidade, seguindo a configurao necessariamente polmica e plural de seus dilemas, das questes abertas e em aberto na cena pblica, e dos horizontes de possveis que descortinam no campo sempre imprevisvel da histria.[8]

Mas nada fcil, liberdades e direitos nunca esto realmente garantidos, basta olharmos as ditaduras militares e econmicas pelas quais grupos e naes inteiras foram e esto sendo submetidos. Direitos, seja l quais forem: civis, polticos, econmicos ou sociais, na maioria das vezes no am de meras formalidades. E, entretanto, os direitos humanos, enquanto medida de justia funciona como marco referencial, construindo e balizando vnculos entre indivduos, grupos e classes.

Em razo de tudo isso, cabe-nos perguntar quais so essas novas foras que hoje se contrapem ao agenciamento do capitalismo contemporneo? Ora, se o capitalismo desterritorializa os sujeitos de suas esferas natais, como refere-se Peter Pl Pelbart, fazendo com que eles reterritorializem sobre referncias identitrios arcaicos ou miditicos, ao mesmo tempo, essa normalizao generalizada pode significar uma refluidificao aberta a novas composies, novos valores e novas sensibilidades.[9] Arcaicos que na minha opinio se transformam em novos significados, transformando-se eles mesmos em outra coisa, isto , em referenciais ps-modernos desejosos de se contraporem nova ordem mundial.

Querer saber quais so as novas foras que hoje se contrapem ao agenciamento do capitalismo contemporneo, lutar contra este agenciamento, trata-se de uma questo tica. A tica no trata particularmente de certos valores do bem e do mal. Mas, nos lembra Suely Rolnik, a tica o carter criador da vida como critrio de valor e no qualquer espcie de forma que a vida tenha tomado ou venha a tomar, no pode ser simplesmente o compromisso com o cumprimento de um conjunto de normas, mas a considerao daquilo que se impe como diferena e que exige criao.[10] Sabemos que os direitos humanos, apesar de legitimarem a nova ordem mundial, paradoxalmente, tambm servem para produzir subjetividades crticas capazes de julgar e querer transformar esta mesma ordem mundial e todas as suas conseqncias.

Essas subjetividades crticas deixam muito claro que embora tenhamos

a impresso de estarmos encerrados dentro de uma fortaleza, ou, antes, dentro de uma cerca de arame farpado, que se estende no apenas por toda a superfcie do Planeta, mas tambm por todos os cantos do imaginrio (...) o capitalismo Mundial Integrado (globalizao liberal) , sem dvida, muito mais frgil do que parece.[11]

Na medida em que - por presso dessas mesmas subjetividades crticas e, portanto, da conscincia do direito de ter direitos[12] que elas evidenciam - os direitos humanos se enrazam nas prticas sociais para dar lugar expanso da dimenso tica na vida social e dos territrios de cidadania. por esse ngulo, e apesar de estarem legitimando a nova ordem social, que Declaraes, Pactos e Intenes de direitos humanos, os discursos a seu respeito, podem se qualificar.

Concluo re-afirmando que a beleza falsa e artificial dos direitos humanos obrigatoriamente deve ser desmascarada no mesmo instante em que se desmascara a globalizao liberal, nem antes e nem depois. Esta talvez seja uma maneira de se evitar, por um lado, que as subjetividades sejam inteiramente moldadas pelo capital, por outro, talvez seja uma maneira de forar que os direitos humanos abandonem seus dilemas deixando de legitimar discursos e aes excludentes e em a ser, eles mesmos, protetores dos direitos humanos.

REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS 1j4n6t

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ARENDT, Hannah. A condio humana. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 1988.

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VAKALOULIS, Michel. Le capitalisme post-moderne. Paris : PUF, 2000.



[1] NEGRI, Antonio ; HARDT, Michael. Empire. Paris : Exils,2000, p. 52.

[2] IANNI, Ocatvio. A era da globalizao. Rio de Janeiro : Civilizao Brasileira, 1997, p.17.

[3] NEGRI, Antonio; HARDT, Michael. Empire. Paris : Exils, 2000, p. 44.

[4] ALLIEZ, Eric; FEHER Michel. Contretemps. Paris : Paris : Michel de Maule, 1988.

[5] ALLIEZ, Eric; FEHER Michel. Contretemps. Paris : Paris : Michel de Maule, 1988, p.204.

[6] ALLIEZ, Eric; FEHER Michel. Contretemps. Paris : Paris : Michel de Maule, 1988, p.204.

[7] FARIA, Jos Eduardo. O futuro dos direitos humanos aps a globalizao econmica. In.: AMARAL JNIOR (org.); MOISS, Cludia. O cinqentenrio da Declarao Universal dos Direitos do Homem. So Paulo : FAPESP, 1999.

[8] Conferncia realizada no Colquio Direitos Humanos no Limiar do Sculo XX, USP, So Paulo, 1996.

[9] Trabalho apresentado no Seminrio Comemorativo do 20 anos do Instituto Sedes Sapientae, em 23 de maio de 1997.

[10] ROLNIK, Suely. Viagem virtual subjetividade: confluncias com a tica e a cultura. ANPOCS, 1996 (mimeo).

[11] GUATTARI, Flix. Revoluo molecular. So Paulo : Brasiliense, 1987, p.

[12] Esta uma expresso de Claude Lefort, em . A Inveno Democrtica : Os Limites Da Dominao Totalitria. So Paulo Brasiliense, 1983.p. 37-69.

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