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GLOBALIZAO
E DIREITOS HUMANOS
Wellington
Almeida
1.
A Evoluo
dos Direitos Humanos
2.
A Idia
de Segurana Humana Global
3.
O Que
Fazer com Tudo Isto?
4.
O Programa
Brasileiro de Direitos Humanos
1.
A EVOLUO DOS DIREITOS HUMANOS
Um
longo caminho marca a trajetria dos direitos humanos como um tema global. At
a Conferncia de Viena, em 1993, que consolidou definitivamente os direitos
humanos dentro da temtica que conforma a agenda global neste final de sculo,
este assunto esteve bastante contingenciado (em parte contnua) por
interpretaes polticas e ideolgicas. Na bipolaridade da Guerra Fria os
dois grandes plos polticos utilizavam enfoques distintos no tratamento
dos direitos humanos. De um lado, o bloco formado pelos pases capitalistas
ocidentais e desenvolvidos se apegavam aos aspectos mais formais dos
direitos da pessoa humana, os chamados direitos de primeira gerao. De
outro, o ex-bloco socialista junto com os pases do chamado Terceiro Mundo,
articulados no movimento dos no-alinhados, dava pouca importncia aos
direitos individuais, conferindo maior nfase aos direitos sociais e
coletivos e aos direitos dos povos, que caracterizam os direitos de segunda
e terceira gerao.
Ainda
no auge da Guerra Fria, em 1968, realiza-se em Teer, a primeira Conferncia
Mundial dos Direitos Humanos das Naes Unidas. Este encontro, embora
limitado pela realidade bipolar, j comea a dar os primeiros os para
romper a dicotomia entre direitos civis e polticos com os direitos econmicos,
sociais e culturais, proclamando a indivisibilidade e a interdependncia
entre todos eles, como nos mostra Canado Trindade. Este processo se completa
em Viena, dentro de uma conjuntura de polaridades indefinidas, quando, aps
intensos debates e negociaes, foi aprovado o texto final.
So
mais de 200 anos de disputas polticas em torno do conceito de direitos
humanos. Segundo Dornelles, podemos buscar fundamentos tericos bem mais
antigos para explicar a evoluo dos direitos humanos:
As
origens mais remotas da fundamentao filosfica dos direitos fundamentais
da pessoa humana se encontram nos primrdios da civilizao humana. No
mundo antigo, diversos principies embasavam sistemas de proteo aos
valores humanos marcados pelo humanismo ocidental judaico-cristo e
greco-romano e pelo humanismo oriental, atravs das tradies hindu,
chinesa e islmica. Assim que diferentes ordenamentos jurdicos da
Antiguidade, como as leis hebraicas, previam princpios de proteo de
valores humanos atravs de uma leitura religiosa.
Apesar
desses primrdios e de suas fontes plurais, citados por Dormentes, os
direitos humanos geralmente tm sua origem relacionada com os ideais
burgueses constituidores dos pilares da democracia liberal e ocidental que se
consolidam com a Independncia Americana e a Revoluo sa, embora,
raramente, apaream tambm referncias Revoluo Parlamentar Inglesa
do sculo XVII. Esses dois acontecimentos impulsionam de forma definitiva a
ruptura com o antigo regime absolutista e o movimento de independncia das
colnias americanas. Assim, a Declarao de Virgnia, de 12 de junho de
1776, e a Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado da Assemblia
Nacional sa, de 1789, se tornam os dois documentos mais influentes nas
definies normativas futuras dos direitos humanos.
na afirmao deste Estado liberal, que expressa os anseios e valores da
burguesia revolucionria, vitoriosa na luta contra o absolutismo feudal, que
se solidificam os ideais do iluminismo e se consolidam os direitos civis e polticos
ou direitos individuais, a primeira gerao dos direitos humanos. No sculo
XIX, o desenvolvimento da sociedade industrial e as lutas levadas a cabo pela
nova classe operria, principalmente, sob influncia do pensamento
socialista, d novo contedo aos direitos humanos. Neste contexto de intensa
disputa entre liberalismo e socialismo, com acontecimentos marcantes como a
Revoluo Russa de 1917 e diversos levantes operrios na Europa, emergem os
direitos sociais ou coletivos (segunda gerao de direitos humanos). Em
1919, ao mesmo tempo em que constituda a Repblica de Weimar, na
Alemanha, fundada pelo Tratado de Versalhes a Organizao Internacional
do Trabalho - OIT. A partir da os direitos humanos no so mais entendidos
somente como direitos individuais da pessoa humana ou direitos civis e polticos.
Os direitos dos povos (tambm conhecidos como direitos da solidariedade), se
desenvolvem no segundo ps-guerra e so classificados como de terceira
gerao. Hoje, porm, esta diviso por geraes cumpre apenas um carter
didtico, pois todos os direitos humanos esto inter-relacionados. A tese de
geraes de direitos no tem mais consistncia.
A
nova realidade internacional do ps-guerra, ao mesmo tempo em que
condicionada pela diviso do mundo em blocos, tambm pode ser caracterizada
pela sua complexidade e pelas novas demandas provocadas pelo fantstico
desenvolvimento econmico entre a segunda metade da dcada de 40 at o
final da dcada de 60, com uso intensivo e indiscriminado dos recursos
naturais. A ameaa de um confronto nuclear aterroriza o mundo; os processos
de descolonizao na frica e na sia aumentam significativamente o nmero
de atores estatais; surgem movimentos sociais lutando por novos direitos
especficos. Assim, surgem novos direitos que aos poucos vo ampliando
mais ainda o foco dos direitos humanos. Entre eles esto o direito paz; ao
desenvolvimento e autodeterminao dos povos; a um meio ambiente saudvel
e ecologicamente equilibrado; utilizao do patrimnio comum da
humanidade; da mulher; da criana entre outros.
Para
promover e proteger todos estes direitos no plano internacional foram
constitudos diversos mecanismos que se expressam em diversos documentos. O
mais conhecido destes textos Declarao Universal dos Direitos do Homem,
que d incio formao de regimes internacionais em direitos humanos.
Esta declarao foi aprovada pela Assemblia Geral da ONU, que se reuniu em
Paris, no dia 10 de dezembro de 1948, por 48 votos a favor e 8 abstenes.
Se abstiveram de votar a Polnia, Ucrnia, Iugoslvia, Unio Sovitica,
Bielorssia, Tcheco-eslovquia, frica do Sul e Arbia Saudita. Os seis
primeiros, ento socialistas, alegando que a declarao no deu
tratamento adequado aos direitos econmicos, sociais e culturais, Arbia
Saudita por princpios religiosos e a frica do Sul pelo contedo do texto
que questionava a sua ento poltica racista do apartheid.
A
partir dai ocorre, progressivamente, a internacionalizaco da proteo dos
direitos humanos, com a perda relativa da soberania pelos Estados Nacionais.
Canado Trindade faz uma anlise comparativa da evoluo dos sistemas de
proteo dos direitos humanos e do meio ambiente. Sua concluso de que
ambos testemunham e precipitam a eroso gradual do chamado domnio reservado
dos Estados4. Este sistema ampliado pela constituio de
diversos pactos e tratados internacionais. No mbito das Naes Unidas, em
1966, a Declarao Universal de 1948 completada com a adoo do Pacto
de Direitos Civis e Polticos e com o Pacto de Direitos Econmicos Sociais e
Culturais5.
O
processo de internacionalizao dos direitos humanos, iniciado em 1948,
ganha outra dimenso com a Conferncia de Viena, em 1993, quando estes se
afirmam como um tema global. Esta conferncia criou novos regimes em direitos
humanos, impondo, em tese, limites aos Estados no exerccio da soberania.
O
primeiro ponto que deve ser destacado em relao aos resultados de Viena
que eles foram satisfatrios, contradizendo as avaliaes pessimistas
que surgiram no decorrer do processo preparatrio. Os aspectos conceituais
presentes na Declarao de Viena significam reconhecimento no plano poltico
do carter global dos direitos humanos, abrindo novos caminhos para o avano
normativo na proteo internacional. E, ao mesmo tempo, conferindo aos
direitos humanos a representao simblica de uma nova agenda positiva.
A
Conferncia configurou tambm um novo marco poltico e conceitual para o
tema. Aprovou, com apoio de praticamente toda a comunidade de Estados, uma
resoluo que afirma serem os direitos humanos universais, indivisveis,
interdependentes e inter-relacionados, negando as pretenses dos pases que
queriam legitimar o discurso do relativismo cultural para negarem os direitos
humanos. Desmontou assim a falsa contradio entre especificidades
culturais, histricas e religiosas e a obrigao por parte dos Estados
com a garantia destes direitos. Nesse mesmo sentido foi tambm significativo
o apoio explcito democracia como forma de governo mais adequada para se
alcanar estes objetivos e o chamamento comunidade internacional para a
sua promoo, inclusive com a garantia do direito ao desenvolvimento.
igualmente significativo o tratamento dado aos chamados temas especficos
como os direitos da mulher, ndios, crianas, trabalhadores imigrantes,
portadores de deficincia, meio ambiente, moradia, minorias em geral entre
outros. Nestes casos as propostas aprovadas incorporaram no plano
internacional uma srie de reivindicaes que se forjara a partir da atuao
de amplos, distintos e plurais movimentos civis que conseguiram constituir
uma agenda poltica por fora dos Estados. Uma agenda que no pode ser mais
ignorada pelos representantes de governos nos fruns internacionais. O
desafio maior para a sociedade civil garantir a elaborao de planos
nacionais constitudos a partir destes acordos.
Certamente,
estas propostas contidas na Declarao e no Programa de Ao ainda esto
distante da realidade. E necessrio ponderar, inclusive, que a Conferncia
de Viena est inserida dentro do processo que previa uma completa reformulao
da ONU, que visava dot-la de maior capacidade poltica para atuar na soluo
dos grandes conflitos e problemas internacionais contemporneos. E at agora
este processo tem um saldo de fracasso. Nem por isso, porm, deixam de ser
importantes. A definio de normas e compromissos no plano internacional -
tambm no domstico - se d sempre com um descomo entre a lei e o real.
Mas se tudo fosse meramente formal no haveria disputa poltica, filosfica
e ideolgica para a definio de tais procedimentos. A definio destas
normas, regimes, delimitam os espaos e os limites para ao dos diversos
atores que interagem no sistema internacional. E a anlise das resolues
de Viena mostra claramente que foram criados novos referenciais para a proteo
internacional dos direitos humanos, sob um prisma global.
Afirmaes
desta ordem so encaradas como ingnuas e idealistas. E logicamente assim
seriam se tivessem como objetivo afirmar que estamos vivendo uma transio
no plano internacional para um novo sistema mais democrtico, equitativo e
de plena garantia dos direitos humanos. Mas no este o objetivo, pois se
tem claro que no h democracia nem gozo de todos os direitos humanos de
forma enftica em nenhum pas. Evidentemente, no h, tambm, democracia
nas relaes internacionais. Isto no impede, contudo, que estes dois
valores (a democracia e os direitos humanos) sejam cada vez mais universais,
constituindo-se enquanto elementos de referncia para o aperfeioamento da
prtica poltica, para a afirmao de valores democrticos e crtica
aos modelos de excluso atualmente hegemnicos
Democracia
e direitos humanos so idias-fora. Nem mesmo o mais autoritrio dos
regimes consegue negar formalmente no plano interno e externo estes dois
valores. Concordamos com os argumentos de HeIler, que desmontam
categoricamente as crticas daqueles que procuram imputar democracia e, em
ltima instncia, aos direitos humanos, um carter essencialmente
Ocidental. Sem negar que estes valores se forjaram no Ocidente, HelIer
demonstra como at hoje no se gestou em nenhuma cultura outro valor capaz
de negar e/ou superar a democracia. O centro de seu argumento de que a
noo de Ocidente se formou a partir de combinao de trs lgicas
sobrepostas: a democracia, o capitalismo e a sociedade industrial. E que
embora possam haver crticas profundas e consistentes aos valores do
capitalismo e da sociedade industrial, no existe em nenhuma outra cultura um
valor que possa se opor democracia e, consequentemente, idia de
liberdade em seu sentido mais amplo 9
E
significativo, portanto, o fato da Declarao de Viena ser o primeiro
documento das Naes Unidas que elege a democracia como forma de governo
mais adequada para a garantia dos direitos humanos e das liberdades
fundamentais:
A
democracia, o desenvolvimento e o respeito pelos direitos humanos e
liberdades fundamentais so conceitos interdependentes que se reforam
mutuamente. A democracia se baseia na vontade livremente expressa pelo povos
de determinar seus prprios sistemas polticos, econmicos, sociais e
culturais e em sua plena participao em todos os aspectos da sua vida.
Nesse contexto, a promoo e proteo dos direitos humanos e liberdades
fundamentais, em nveis nacional e internacional, devem ser universais e
incondicionais. A comunidade internacional deve apoiar o fortalecimento e a
promoo da democracia e o desenvolvimento e o respeito aos direitos humanos
e liberdades fundamentais no mundo inteiro.
Este
enunciado se completa com os pargrafos 66, 67 e 68 do Programa da Ao que
tratam da relao entre cooperao, desenvolvimento e fortalecimento dos
direitos humanos. So partes do texto onde se d nfase as medidas capazes
de estabelecer e fortalecer instituies de direitos humanos, favorecendo a
expanso de sociedades civis pluralistas. Sem dvida, trata-se de um avano
- mesmo que simblico - para a afirmao dos direitos humanos,
principalmente, considerando-se a realidade poltica interna de grande parte
dos Estados presentes em Viena, que aceitaram esta formulao.
O
consenso de Viena foi construdo a partir da superao de alguns imes
significativos que surgiram no processo preparatrio. O primeiro foi em relao
reafirmao da universalidade dos direitos humanos, que vinha sendo
questionado, pela insistncia de alguns pases que sustentavam a falcia do
relativismo cultural. Estas pretenses foram sepultadas em Viena. O texto
aprovado foi fruto de um consenso que superou a oposio destes pases que
insistiam na tese de que a Declarao Universal dos Direitos Humanos,
fonte originria dos demais instrumentos internacionais que adotam esta
formulao, no levara em considerao as particularidades religiosas,
culturais e histricas de pases que surgiram com o processo de descolonizao.
Assim, o texto aprovado reitera a universalidade dos direitos humanos
proclamando tambm sua indivisibilidade, interdependncia e inter-relao,
colocando um desafio para os pases em desenvolvimento, na medida em que
concede tratamento igual aos direitos econmicos, sociais e culturais, como
analisa Saboia . Prevaleceu a seguinte formulao:
Todos
os direitos humanos so universais, indivisveis interdependentes e
inter-relacionados. A comunidade internacional deve tratar os direitos humanos
globalmente de forma justa e equitativa, em p de igualdade e com a mesma
nfase. As particularidades nacionais e regionais devem ser levadas em
considerao, assim como os diversos contextos histricos, culturais e
religiosos, mas dever dos Estados promover e proteger todos os direitos
humanos e liberdades fundamentais, independentemente de seus sistemas
polticos, econmicos e culturais.
Observa-se,
portanto, que embora o texto atenda corretamente reivindicao de se
considerar as particularidades nacionais e regionais e os contextos histricos,
culturais e religiosos, no deixa dvidas de que estas especificidades no
podem ser aludidas como justificativa para se negar a universalidade dos
direitos humanos.
O
segundo ime superado foi em relao ao direito ao desenvolvimento
Neste caso, a resistncia se concentrava rios pases ricos, especialmente os
Estados Unidos, que no apoiaram a aprovao da Declarao sobre o
Direito ao Desenvolvimento pela Assemblia Geral da ONU, em 1986. Geralmente,
para o pases em desenvolvimento as carncias materiais, sociais e econmicas
- que tm relao com este direito - se constituem em violaes dos
direitos humanos. Por sua parte, os pases ricos e desenvolvidos procuram
quase sempre dar maior nfase aos direitos individuais, encarando os
problemas econmicos e sociais como obstculos garantia dos direitos
humanos e no como violaes. Logicamente, alm de uma posio de
natureza conceitual, esto envolvidos nesta polmica interesses ligados a
ordem econmica internacional. Dai a grande importncia que teve no contexto
da Conferncia a aprovao, de forma clara, do direito ao desenvolvimento
como reivindicavam diversos pases do Terceiro Mundo.
Em
relao a este tema que mantm intrnseca relao com o debate sobre
direitos econmicos e sociais, vale recordar que no frum paralelo de ONGs
e movimentos sociais houve uma certa perplexidade devido questo das clusulas
sociais. Apareceu em Viena, e hoje est ainda mais forte. uma divergncia
entre as ONGs. Mesmo reconhecendo o potencial de manipulao poltica pelos
pases ricos, cresce no meio da comunidade internacional de ONGs - inclusive
entre as grandes federaes e confederaes sindicais - um apoio s
chamadas clusulas sociais em questes como a do trabalho infantil e escravo
e a da garantia mnima dos direitos humanos.
2.
A IDIA DE SEGURANA HUMANA GLOBAL
O
ciclo de conferncias globais da ONU - no qual a Conferncia de Viena se
inseriu - d continuidade, em linguagem formal e diplomtica, ao problema da
segurana humana global. A partir da ONU foram constitudas, nos ltimos
anos, diversas comisses independentes formadas por polticos e expertos
para discutir e elaborar diagnsticos e propostas sobre os chamados temas
globais. Alguns destes documentos viraram referncia poltica importante e
influenciaram os debates no plano internacional. Trs comisses
independentes formadas a partir destes debates no seio da ONU elaboraram relatrios,
estabelecendo novos parmetros na discusso sobre temas globais. A
primeira foi a Comisso Brandt, constituda em 1977, que publicou um relatrio
sobre as relaes Norte-Sul e outro sobre a crise comum na comunidade
internacional. A segunda foi a Comisso Palme, estabelecida em 1980, e que
publicou, em 1982, um relatrio sobre segurana comum e desarmamento.
Completado este primeiro bloco foi formada em 1984 a Comisso Brundtland que
publicou, em 1987, relatrio que leva o mesmo nome da Comisso.13
Destes
trs primeiros textos o que obteve maior impacto foi o Relatrio
Brundtland. Em suas quase 400 pginas ele examina os temas crticos na
relao entre o meio ambiente e o desenvolvimento e prope uma agenda
global de mudanas. Entre os temas estudados pela comisso, os principais so:
populao e recursos humanos; segurana alimentar; sade e educao;
grupos vulnerveis; desenvolvimento urbano; energia; clima; resduos txicos;
ecossistemas; oceanos; espao e contaminao industrial.
Mas
o que sintetiza o Relatrio Brundtland e lhe confere importncia poltica
e terica a fixao que ele promove do conceito de desenvolvimento
sustentvel. Atualmente, embora com interpretaes polticas
diferenciadas, este conceito praticamente um consenso nos debates
internacionais. Em sntese, a caracterizao de sustentabilidade pode ser
entendida como: O desenvolvimento que satisfaz as necessidades do presente,
sem comprometer a capacidade de que as futuras geraes possam satisfazer
suas prprias necessidades.
O
conceito de desenvolvimento sustentvel funciona hoje como uma idia-fora
que pera todos os chamados temas globais e emergentes. Todos os assuntos
que foram discutidos no ciclo de conferncias mundiais da ONU se relacionam
entre si, complementando a agenda global: meio ambiente, direitos humanos,
populao, desenvolvimento social, habitao e segurana alimentar so
discutidos a partir de pressupostos globalizantes.
Outro
documento importante para esta temtica, que surgiu dentro da ONU e que
ou a ser publicado anualmente o Relatrio de Desenvolvimento Humano,
organizado pelo Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento - PNUD.
Publicado pela primeira vez em 199015, este relatrio consolidou a idia da
sustentabilidade como um parmetro global a ser considerado, introduzindo o
ndice de Desenvolvimento Humano - IDH como uma varivel nova na lgica
do desenvolvimento at ento considerada apenas por ndices de desempenho
econmico como Produto Nacional Bruto - PNB, Produto Interno Bruto - PIB e a
renda per capita.
O
mais recente estudo sobre estes temas foi lanado em 1995. Trata-se do
relatrio preparado pela Comisso de Governabilidade Global16 batizado
com o nome de Vizinhana Global ~ Esta comisso funcionou com quatro
grupos de trabalho que levantaram propostas para quatro temas globais:
valores, segurana, desenvolvimento e governabilidade. Utilizando o
conceito de globalizao como marco de anlise o relatrio procura
definir um esquema de governabilidade global capaz de constituir, ao mesmo
tempo, espao para a interveno poltica dos mltiplos atores e um
novo entendimento dos conceitos de soberania e autodeterminao.
Na
anlise sobre as diferenas entre a realidade atual e a de 50 anos atrs,
quando foi criada a ONU, o texto afirma que hoje, ao contrrio daquele perodo,
os Estados, sozinhos, no tm mais a capacidade de proteger seus cidados e
constituir um desenvolvimento mundial seguro. A concentrao poltica que
propiciou o surgimento da ONU teria cumprido pelo menos um de seus
principais objetivos que foi o de evitar um terceiro confronto mundial.
Hoje, porm, para enfrentar os problemas globais e constituir a
governabilidade possvel em nvel mundial os Estados so obrigados a
dividir este papel com outros atores.
Em
sntese, o que o relatrio assim como outros documentos prope como
requisitos para o alcance de uma segurana humana global exigiria uma mudana
radical nos instrumentos internacionais no plano poltico, legal e econmico,
reorientando drasticamente os modelos de desenvolvimento atravs da aplicao
dos pressupostos bsicos da sustentabilidade com equidade social.
3.
O QUE FAZER COM TUDO ISTO?
Bem,
parece-me que no temos dificuldades de conceito em relao aos direitos
humanos e sociais. H formulao de sobra. O problema que se coloca pra
ns a disputa poltica em relao a estes conceitos e a clara
contradio entre seus enunciados democrticos e a lgica neoliberal.
Creio ser desnecessrio reafirmar que o enfrentamento concreto desta
realidade s pode ser consequente atravs da continuidade da luta radical
por mudanas de natureza poltica econmica e social. S que esta
constatao insuficiente para criar referenciais que explicitem a contraposio
entre a lgica da excluso X a lgica da solidariedade, enfrentando a
discusso da inexorabilidade do econmico frente a destituio dos
direitos, a defesa da cidadania X apartheid social.
4.
O PROGRAMA BRASILEIRO DE DIREITOS HUMANOS
E
nossa critica tem sido modesta e desarticulada Vejamos o caso no Programa
Nacional de Direitos Humanos - PNDH, lanando ano ado pelo governo
brasileiro. Um programa que contm pontos importantes, mas que ignora os
direitos sociais, como se fosse possvel atacar a violncia sem enfrent-los.
Na prtica, aceitamos a lgica do governo que s se esfora para
solucionar problemas que atrapalham a imagem no pas no exterior e que
prejudicam a tentativa de uma nova insero internacional na economia
globalizada.
A
estratgia da diplomacia brasileira nos ltimos anos tem sido a de
reconhecer a existncia das violaes dos direitos individuais, dentro de
uma poltica definida como de transparncia. Esta poltica significa no
mais negar as violaes que ocorrem, tentando mostrar que o governo est
empenhado na apurao dos fatos. O que muitas vezes no a de pura retrica,
pois o governo se submete s alianas polticas regionais, freando as
propostas que visam trazer para o plano federal a responsabilidade de alguns
crimes contra os direitos humanos. A situao chegou a um ponto inaceitvel
e provvel que tenhamos algumas mudanas em termos de organizao da
justia e da segurana. Mas isto apenas recoloca no nosso problema a
articulao integral da luta pelos direitos humanos.
Penso
que uma questo prtica que se coloca para as diversas redes da sociedade
civil brasileira e internacional diz respeito disputa sobre a imagem que
o governo projeta no plano internacional. Ela hoje bastante favorvel ao
governo, pois este consegue ar a idia de que est emprenhado em
resolver os problemas de maior impacto na rea de direitos humanos e, de
quebra, est beneficiando a populao mais pobre atravs do Plano Real.
O
mesmo se coloca em relao necessidade de articulao no enfrentamento
dos problemas comuns do Norte e do Sul. Temos que avanar no sentido de uma
critica consistente e de impacto sobre a natureza do posicionamento de
nossos governos nos fruns internacionais. Mostrando, com indicadores , que
as intenes firmadas no campo social so , na prtica, anuladas pelos
acordos no plano econmico. Parece simples, mas no . Temos uma critica
justa lgica do apartheid, mas no plano conceitual ainda no conseguimos
desmistificar alguns consensos presentes no debate sobre desenvolvimento, nem
construir um movimento poltico forte, explorando as contradies desta lgica
dominante.
E
por isso que ainda no conseguimos mostrar claramente sociedade os
limites do PNDH, que tem propiciado alguns dividendos polticos internos e
muitos externos ao governo brasileiro. O Programa se concentra basicamente
nos direitos civis. Articula-se com base nos princpios definidos pelo Pacto
Internacional de Direitos Civis e Polticos da ONU adotado em 1966, embora
contenha tambm algumas medidas que se efetivadas podem contribuir para a
promoo dos direitos sociais. Entre elas o apoio implementao de
diversas convenes internacionais relativas aos direitos das crianas,
das mulheres e dos trabalhadores. O argumento citado no Programa que a
nfase nos direitos civis e polticos no impede a abordagem dos demais.
O fato dos direitos humanos em todas as suas trs geraes - a dos
direitos civis e polticos, a dos direitos sociais, econmicos e culturais e
a dos direitos coletivos - serem indivisveis no implica que, na
definio de polticas especficas - dos direitos civis- o Governo deixe
de contemplar de forma especfica cada uma dessas outras dimenses
Temos
aqui um primeiro e importante debate a fazer. Seria equivocado ignorar a
importncia dos direitos civis e o potencial que eles tm para impulsionar a
luta mais ampla por direitos. Um pacto entre governo e sociedade para promov-los
e garanti-los, por si s, j significativo. E o PNDH est voltado para
superar uma carncia comum nas democracias realmente existentes na Amrica
Latina, ou seja, buscar o aperfeioamento de mecanismos institucionais
capazes de garantir o Estado democrtico de direito. At agora o que se
pode observar nos pases que superaram as ditaduras militares - caso do
Brasil -, foi o enorme descomo entre as garantias formais, ofertadas pelo
reconhecimento dos direitos civis, e o funcionamento efetivo das instituies
do Estado
Porm,
fica a pergunta sobre a viabilidade de se garantir os direitos civis
clssicos em um contexto onde os direitos sociais econmicos e sociais so
negados para grandes parcelas da populao. Nossa experincia revela
claramente que no. Afinal, a principais formas de violncia em nosso pas
so praticadas contra os pobres e excludos que vem a lei no como uma
possibilidade de garantia de seus direitos, mas como mais um instrumento de
garantia de privilgios dos de cima. Tambm nas democracias
desenvolvidas o distanciamento entre os direitos civis e os direitos
econmicos e sociais tm impactos diferenciados. O Que paradoxal,
desde que considerada a violncia e o crime, que democracias julgadas consolidadas
como os Estados Unidos, que tm a pior distribuio de renda entre os
sete pases mais industrializados, tambm seja, nesse conjunto, aquele com a
mais alta taxa de homicdios. Em 1997, os Federal Centers for Disease Control
and Prevention mostraram que a taxa de morte de crianas de O a 14 anos por
armas de fogo 12 vezes maior que qualquer pas de mundo industrializado.
Estas
questes no podem ser desconsideradas em um balano global do Programa,
principalmente porque os motivos que levaram o governo a conferir maior nfase
aos direitos civis - ignorando os direitos sociais -. esto relacionados
com uma concepo dogmtica que confere primazia ao desenvolvimento econmico
e que concebe o desenvolvimento social como sub-extrato deste. A posio
do governo brasileiro a este respeito clara. Desconsidera como central as
polticas sociais. Entende que a melhor poltica social no momento est
sendo feita pelo Plano Real que teria distribudo renda e reduzido a pobreza.
E
importante, porm, registrar que o PNDH a ao largo dos compromissos
assumidos pelo Brasil na Cpula de Desenvolvimento Social de Copenhague.
Junto com outros representantes de governos da Amrica Latina, e Caribe,
reunidos em So Paulo, no ltimo ms de abril, o presidente Fernando
Henrique reiterou apoio a tese de que o crescimento econmico e controle da
inflao so os fatores determinantes da reduo da pobreza. Neste
encontro promovido para se fazer um balano da implementao dos
compromissos da Cpula Social os representantes dos governos, apoiados pela
CEPAL, apresentaram um diagnstico de dificuldades para o cumprimento de 10
compromissos bsicos assumidos nesta cpula, culpando os atrasos sociais
gerados durante a chamada dcada perdida.
Neste
aspecto persiste uma significativa diferena conceitual e de posicionamento
em relao entre ao que foi apresentado pelas ONGs durante o ciclo de
conferncias globais das Naes Unidas e o que foi contemplado no PNDH.
Em geral, as ONGs e outras foras polticas que se opem predominncia
da ditadura econmica so criticadas pelos governos pela suposta
ingenuidade e desconhecimento da importncia da base econmica produtiva
para a soluo dos problemas sociais.
Uma
crtica injusta, pois ningum em s conscincia pode negar a importncia
da estabilizao e do crescimento econmico para a garantia dos direitos
sociais e coletivos. O problema no caso do Brasil e de outros pases que
os principais imes para a garantia destes direitos se concentram mais no
plano poltico. E um tratamento integrado dos direitos humanos fundamental
para democratizar o Estado e a sociedade e para a promoo de um conflito
positivo em torno desses imes. O contedo do PNDH no contempla
plenamente - embora isto no anule sua importncia poltica - todas as
diretrizes da Conferncia de Viena. Ele ainda valoriza a concepo de gerao
de direitos que no tem mais consistncia e precisa ser superada.