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DIREITO INTERNACIONAL E GLOBALIZAO
FACE S QUESTES DE DIREITOS HUMANOS

Sumrio: A - Introduo: 1- Conceito de globalizao. 2- Os efeitos da globalizao sobre o Direito Internacional Pblico. 3- O espao pblico internacional em formao; B Os Direitos Humanos e a "Globalizao da Justia": 1- Marcos histricos dos Direitos Humanos. 2- A Conveno de Viena e a consagrao dos princpios da indivisibilidade, interdependncia e universalidade. 3- O quadro normativo existente e a poltica brasileira de Direitos Humanos.; C- Concluses: o futuro do Direito Internacional Pblico; D-Notas ; E.- Bibliografia


A- Introduo

A globalizao, se entendida como um fenmeno tridimensional formado pela intensificao de fluxos diversos(1) (econmicos, financeiros, comunicacionais, religiosos); pela perda de controle do Estado sobre esses fluxos e sobre outros atores da cena internacional (Badie, 1999; Frangi e Schulz, 1995(2)) e pela diminuio de distncias espaciais e temporais (Ladi, 1994; Badie, 1999), cria expectativas de inovaes poltico-jurdicas. Com efeito, esse fenmeno conduz ao questionamento do princpio da soberania, organizador das relaes entre Estados (Canado Trindade, 1999a; Smouts, 1998), e, conseqentemente, da manuteno da ordem pblica internacional. nesse contexto de mutaes aceleradas que as questes de direitos humanos esto sendo tratadas atualmente. Neste artigo, sero analisadas as conseqncias da globalizao no mbito da proteo internacional dos Direitos Humanos.

A . 1 - Conceito de "Globalizao"

Considerando o primeiro e o terceiro nveis acima mencionados (intensificao de fluxos diversos e diminuio das distncias), a to propalada "globalizao" constitui, na verdade, processo antigo. Teve seu incio logo no perodo dos grandes descobrimentos, no sculo XV. Com efeito, as expedies lideradas pelo navegante genovs Cristvo Colombo e financiadas pelo Reino de Castilla y Aragn romperam, em 1492, o isolamento entre o "Velho" e o "Novo Mundo" e implicaram crescente contato entre os pases ento existentes.

Sabe-se que, j no sculo XIX, a Revoluo Industrial, com as inovaes tcnicas e tecnolgicas nas indstrias e nos transportes, permitiu maior integrao do mundo por meio da intensificao das trocas mercantis e do incremento de investimentos no estrangeiro. Seguiu-se, sem surpresa, a expanso acelerada das empresas multinacionais e conglomerados financeiros(3).

O fato que, em geral, associa-se o fenmeno "globalizao" a aspectos econmicos e financeiros atinentes ao ado recente. Sucede, contudo, que no so esses os nicos fatores a serem levados em considerao (Brunsvick e Danzin, 1999). bem verdade que as ltimas dcadas tm testemunhado um aumento vertiginoso dos fluxos comerciais e financeiros, mas tambm se pode verificar um crescimento substancial dos contatos nos mbitos cultural, social e at mesmo jurdico.

guisa de melhor sistemtica, podem ser destacados os seguintes aspectos daquele primeiro nvel de internacionalizao: a) comercial homogeneizao das estruturas de demanda e oferta por empresas que estabelecem contratos de terceirizao com produtores locais e comercializam os produtos sob suas prprias marcas (ex: Nike, Nestl, Benetton, Carrefour); b) produtivo fenmeno da produo internacional de um bem para o qual concorrem diversas economias com diferentes insumos; c) financeiro aumento do fluxo de capitais, decorrente da automao bancria; d) sociocultural os mesmos instrumentos que permitem o aumento do fluxo de capitais (redes eletrnicas, televiso, satlites) constituem o atual sistema de comunicao, o que contribui para uma relativa homogeneizao da cultura e dos padres de comportamento nas sociedades; e) tecnolgico incremento quantitativo e qualitativo das redes mundiais de comunicao e informao (Internet).

De um modo genrico, enfim, pode-se utilizar o termo para designar a crescente e acelerada transnacionalizao das relaes econmicas, financeiras, comerciais, tecnolgicas, culturais e sociais que vem ocorrendo especialmente nos ltimos vinte anos.

Sucede que tambm se pode conferir um carter crescentemente "global" ao campo do Direito, haja vista o teor cada vez mais candente das discusses tericas, polticas e jurdicas no que se refere relatividade da noo clssica de soberania, com o fito de se redimensionar a questo da aplicao das normas de Direito das Gentes.

De fato, torna-se cada vez mais enftica e cristalina a idia segundo a qual a proteo dos direitos humanos no mais matria de competncia exclusiva das soberanias nacionais, nem pode ser esquivada sob o manto do relativismo cultural(4). Se antes as questes de direito internacional interessavam apenas aos Estados soberanos, agora elas so criadoras de uma imensa lacuna relativa s relaes dos Estados com outros atores, como diversas organizaes (notadamente as ONG's), empresas multinacionais, indivduos, minorias e grupos de interesse.

Certo que tal intensificao de contato entre diversos atores trouxe consigo novas demandas de regulao das relaes internacionais e a opinio pblica de vrios pases tende a se unir - como porta-voz da Humanidade - para exigir respostas multilaterais contra Estados soberanos julgados culpados (Vdrine, 2000)(5). Tal foi o caso no Iraque, Ruanda, Haiti, Bsnia, Kosovo, Timor Leste e Chechnia(6). Nota-se que a presso da opinio pblica na Unio Europia tem aumentado consideravelmente na dcada de 90, levando certos polticos idia de diplomacia de interveno (nas questes econmicas), como mostraram exemplos ses e nrdicos.

A . 2 - Direito Internacional Pblico e Globalizao

Herdou-se o direito internacional do sculo XVIII, quando os filsofos europeus comearam a afirmar seus princpios, e os soberanos a colocar-lhes em prtica (Duflo, 1999). Kant, por exemplo, j acreditava que a ordem internacional deveria ser construda por relaes jurdicas e no por relaes de poder ente os Estados soberanos - o que ele bem explicou nas suas obras Doctrine du droit e Projet de paix perptuelle. Sua obra foi construda a partir da preocupao de garantir a propriedade individual (direito privado), a fim de garantir a paz universal (direito pblico) e chegar ao "direito cosmopolita" (dever de cada Estado de estabelecer relaes jurdicas com os demais para defender seus interesses legtimos). Ainda que esse esquema seja discutvel, muito importante assinalar o esboo do direito internacional cujas esferas nacional, internacional, pblica e privada esto interligadas.

O Direito Internacional, de uma maneira geral, e os Direitos Humanos, em particular, localizam-se no cenrio descrito na medida em que se esboa continuamente uma idia de "globalizao da justia". Com efeito, pode-se afirmar que o tema da defesa internacional dos direitos fundamentais do ser humano tem assumido uma configurao cada vez mais "global", eis que se exige dos Estados nacionais o cumprimento dos instrumentos jurdicos internacionais firmados que regulam a matria. Exemplos recentes so as cobranas feitas pela Unio Europia Turquia (que almeja integrar o seleto grupo dos Quinze), ou de ONG's que denunciam a represso poltica em pases como a China. Cabe assinalar, ainda, as diversas querelas entre Estados duvidosamente democrticos e as ONG's, tais como "Amnesty International"(7) e "Human Rights Watch".

O primeiro efeito da globalizao, do ponto de vista da relao entre Estados soberanos, a crescente demanda legtima por uma melhor regulao internacional. Contudo, as fontes dessa demanda causam tambm problema, porque no so apenas os Estados, mas todos os atores internacionais que conseguirem participar dos mecanismos decisrios. Por exemplo, quando ONG's se unem para exigir o fim do trabalho escravo no mundo. Sucede que a necessidade dessa construo jurdica acelerada ao mesmo tempo que a "fratura social"(8) entre Estados ricos e pobres tem se agravado(9). A ordem internacional tende a ser reformada pelos Estados mais poderosos (ou politicamente organizados), que defendem suas prioridades e interesses, mas acabam comprometendo todos os outros(10).

Porm, o principal efeito da globalizao a intensificao de conflitos entre normas e sujeitos de direito internacional pblico, levando ao questionamento sobre a operacionalidade dos referenciais de regulao. Em outros termos, o direito internacional destinado unicamente aos Estados soberanos e s organizaes internacionais est sendo submetido a uma leitura mais exigente da observncia das normas internacionais. Ademais, verifica-se que mecanismos jurdicos de sanes, antes impensveis face pretensa soberania absoluta, aparecem lentamente nos debates multilaterais. Enfim, os Estados comeam a prestar contas a outros atores e a opinies pblicas cujas nacionalidades se somam e se misturam. Ento, o ponto interessante a sublinhar a irrupo desses atores na cena internacional e a sua atuao como juzes da ao poltica do Estado (soberano). Este o incio do debate sobre a formao do "espao pblico internacional" que ser desenvolvido adiante.

Nesse contexto de construo jurdica marcado pela desigualdade internacional, outra fonte de contendas a fragilidade do princpio de universalidade do direito e dos valores que ele defende (Vdrine, 2000)(11). Quando se fala em direitos humanos, as questes mais abordadas na Unio Europia so as minorias tnicas, as vtimas de guerras (prisoneiros, refugiados, imigrantes) e a proteo do cidado contra o abuso de poder pblico (ou seja, o o a tribunais internacionais ou supranacionais). No Brasil, por outro lado, os valores so os mesmos, mas as questes pertinentes so a proteo da infncia, o estatuto dos ndios e a vida carcerria. Ora, o direito internacional espelha as preocupaes ocidentais de manter uma ordem internacional estvel e pacfica, pois foi codificado principalmente por Estados-nao dominantes da cena internacional a partir da era das grandes navegaes. Em razo dessa fragilidade inerente a toda construo multilateral, o direito internacional avana lentamente e depende das concesses feitas pelos Estados. Assim, Chartouni-Dubarry e al Rachid (1999) asseveram que o princpio de universalidade uma grande falcia jurdica, e por isso os textos internacionais so muitas vezes simples declaraes de compromisso sem poder cogente.

Quanto aos Estados, de bom alvitre ressaltar que cada um age em funo de interesses prprios, que so definidos como seus interesses nacionais, mas nem sempre expressos de maneira clara e transparente. Conseqentemente, a definio de termos jurdicos bem como sua interpretao no so jamais neutras, qualquer que seja a questo. Dessa divergncia legtima de interpretaes, de percepes e de interesses surge o conflito de legitimidades (Badie e Smouts, 1999) e o contedo de direito internacional torna-se a pedra de toque de atores internacionais que consomem esse direito(12). Com efeito, tal conflito resultado lgico da diversidade de atores, e, portanto, no constitui, por si s, novidade.

No entanto, para evitar o obstculo da divergncia de interesses ou o desafio do reconhecimento da heterogeneidade, acreditou-se que era possvel criar um modelo ideal, justo e adequado para todos os atores internacionais, ou melhor, aproveitar a oportunidade para impor internacionalmente um modelo nacional. Nesse sentido, a ao da OTAN no Kosovo demonstrou que primeiramente alguns Estados decidiram agir, para depois legalizarem as operaes militares pelo recurso aos instrumentos onusianos. Essa ilustrao pode ser tomada como prova da vontade dos decisionmakers mais poderosos(13) de manter a segurana mundial e o respeito dos direitos humanos, enquanto os outros no interferiram de maneira significativa no processo decisrio (Gounelle, 1998).

Porm, em termos estritamente jurdicos, foi a comunidade internacional que puniu um agressor em nome do bem-estar da humanidade. Cabe aqui observar que esse conceito de "comunidade" distingue-se do conceito de "sistema internacional" usado pela corrente realista das relaes internacionais que privilegia o papel do Estado. "Comunidade" traduz o interesse de mostrar a diversidade de atores internacionais, sem que estes cheguem a formar uma verdadeira "sociedade civil internacional", como supe Wapner (1996). Alm disso, como defendeu Kant e seus sucessores, no h sociedade internacional (no sentido forte do termo) sem que haja um direito que regule as relaes dentro dela. Portanto, se o debate terico sobre a existncia de uma sociedade ou comunidade internacional parece interminvel, inissvel que os dois termos sejam utilizados como sinnimos.

Depois que a comunidade internacional condenou o Iraque, em 1991, esse fenmeno tem crescido porque ela se sente garantidora do bem-estar da humanidade. Enfim, a construo jurdica para estabelecer as "regras do jogo" e assegurar certa previsibilidade do cenrio internacional influenciada por lutas polticas. Alm disso, os contenciosos transfronteirios tendem a aumentar na mesma medida em que a globalizao tende a se espargir (Mercadante e Magalhes, 1998).

Por conseguinte, do ponto de vista das relaes entre Estados e diversos atores, o direito sofre concorrncia de uma ordem jurdica internacional que aspira a uma nova ordem normativa alm da simples coordenao das relaes de poder entre Estados soberanos(14). Este seria, com efeito, o terceiro grande impacto do fenmeno da globalizao no campo jurdico. Em outros termos, existe uma comunidade de atores internacionais - geralmente denominada "comunidade internacional" - que demanda reconhecimento jurdico para poder agir legalmente, e por isso milita para transformar o direito internacional dos soberanos em direito internacional das relaes entre todos os atores legtimos. Dessarte, parece incontestvel o dcalage entre a ordem normativa que o direito internacional oferece atualmente e as aspiraes de outros atores internacionais, como as empresas multinacionais e as ONG's.

De fato, o papel e a natureza do Estado so contestados no cenrio internacional por atores que uma leitura estrita do direito internacional no reconhece (Frangi e Schulz, 1995). O exemplo das crescentes interaes entre atores pblicos e privados pertinente no s porque reflete a complexidade do contexto, mas tambm porque levanta a questo sobre que tipo de regulao jurdica internacional seria adequada realidade atual. Outrossim, o direito de agir dentro do cenrio internacional faz parte da agenda das ONG's e da opinio pblica e constitui o "paradigma da dignidade da pessoa humana" (Ndia de Arajo) (15). Nesse sentido, a grande questo atual como assegurar aos indivduos o o aos tribunais internacionais de direitos humanos. O exemplo da Corte Europia dos Direitos Humanos , por enquanto, nico no mundo.

Nesse sentido, o questionamento da validade de conceitos tradicionais seria o quarto efeito da globalizao sobre o direito internacional pblico. Exemplos de conceitos colocados prova da realidade atual so: soberania nacional (Byers, 1991; Litfin, 1997, 1998; Badie, 1999; Krasner, 1999), ingerncia (Zorgbibe, 1994; Moreau-Defarges, 1997), comunidade internacional (Frangi e Schulz, 1995; Lefebvre, 1997), opinio pblica internacional (Favre, 1994), humanidade como destinatria do direito internacional (Ost e Gutwirth, 1996) etc. Nesse contexto de incurso de atores exteriores dentro do domnio reservado dos Estados, surge a seguinte questo: em que medida o espao pblico internacional em plena formao poderia atenuar esse duplo desequilbrio entre direito das relaes entre Estados e direito das relaes entre Estados e outros atores?

A .3 - O espao pblico internacional em formao

A crescente participao de atores internacionais diversos nas questes internacionais fenmeno irrefragvel em questes relativas proteo internacional dos direitos humanos. O termo "espao pblico internacional" traduz, segundo o Professor Bertrand Badie(16), essa abertura poltico-jurdica. O conceito de espao pblico utilizado habermasiano, definindo um espao onde diferentes componentes de uma sociedade se exprimem e se estabelecem atravs da comunicao entre eles.

A grande magia da era da globalizao clara: a informao circula no Planeta e nigum tem o poder de "engavetar um processo" sem prestar contas a uma opinio pblica cada vez mais militante. Comprova-se, certamente, o paradigma de relaes internacionais segundo o qual os Estados no so - e talvez nunca tenham sido - atores exclusivos das relaes internacionais, haja vista que a literatura mais recente chega mesmo a questionar ou a relativizar o significado do conceito de soberania(17). O Estado parece estar, por isso, intimado a redefinir seu papel (Badie e Smouts, 1999) para a satisfao da humanidade em termos globais de justia.

Contudo, aborda-se a era da globalizao ps-Guerra Fria no como uma situao de crise de governana global, mas como o nicio de sua formao. Essa governana, descrita por James Rosenau e citada por Smouts(18), supe a "existncia de regras, a qualquer nvel de atividade humana, da famlia at as organizaes internacionais, cujas finalidades, que so controladas, tm incidncias internacionais". Essa abordagem objetiva demonstrar como indivduos e instituies procuram resolver, por meio de processos interativos de deciso, problemas comuns, tais como os fenmenos transnacionais de migraes, criminalidade, poluio e trficos (de entorpecentes, de mercadorias ou de dinheiro). Nesse sentido, a institucionalizao gradativa das relaes internacionais por meio de instrumentos jurdicos uma das condies de possibilidade dessa governana global.

Em conseqncia, o direito internacional pode ser considerado um regime relativo (Lefebvre, 1997). Em primeiro lugar, por questo de contedo, pois os textos internacionais no so universais nem hierarquizados, e seu poder de coero depende da vontade poltica de atores interessados. Em segundo lugar, porque existem diferentes percepes polticas e jurdicas oriundas da multiplicidade de valores de cada sociedade. Por exemplo, os Estados ocidentais liberais e a Amrica Latina valorizam os direitos polticos e civis porque acreditam que eles asseguram a pluralidade poltica e a democracia liberal. Mas os socialistas, inspirados no marxismo, distinguiam direitos formais dos direitos reais, sendo apenas os ltimos garantidos pela sociedade socialista igualitria, como o direito ao trabalho. E certos Estados da frica e da sia, para limitar o liberalismo poltico, escolheram a inspirao marxista, facilmente identificada em textos de 1981, tais como a Carta Africana de Direitos Humanos e dos Povos e a Declarao Islmica Universal de Direitos Humanos.

Em terceiro lugar, por sua natureza, o direito internacional tambm relativo, pois entra em conflito com o princpio de soberania e as nicas solues para a aplicao do texto jurdico contra um Estado so as presses diplomticas (e econmicas) e a mobilizao da opinio pblica internacional. Em quarto lugar, a relatividade tambm se explica pelo espao territorial, porque os dois textos mais avanados em matria de direitos humanos so a Carta da Unio Europia e a Carta da OEA. As outras regies do mundo apresentam nveis muito dspares de controle jurdico. Em termos de responsabilidade penal internacional, aquelas Cartas representam casos de exceo, porque os crimes de guerra so e sero sancionados por solues ad hoc (clusula 124 dos acordos da Corte Penal de Justia). Enquanto os crimes contra os direitos humanos so de competncia dos Estados, esperando que a J funcione sistematicamente.


B - Direitos Humanos e a "Globalizao da Justia"

Antes de tudo, convm analisar a evoluo do direito internacional antes e aps a II Grande Guerra. Antes de 1945, o direito internacional ou em silncio pelas questes de direitos humanos, tratando apenas de questes restritas escravido e ao trabalho forado. As questes humanitrias entravam na agenda internacional quando ocorria uma guerra, mas logo mencionava-se o problema da ingerncia contra um Estado soberano e a discusso morria lentamente. Temas como o respeito s minorias dentro de territrios nacionais e direitos de expresso poltica no eram abordados para no ferirem o ento inconstestvel e absoluto princpio de soberania (Lefebvre, 1997:115-7).

Aps a Segunda Guerra, o tema "Direitos Humanos" ou a ser tratado como verdadeira revoluo, na medida em que teria colocado o ser humano individualmente considerado no primeiro plano do Direito Internacional Pblico em um domnio outrora reservado aos Estados nacionais. Paradoxalmente, o direito internacional feito por Estados e para os Estados comeou a tratar da proteo internacional dos direitos humanos contra o Estado, nico responsvel reconhecido juridicamente. Esse novo elemento significaria uma mudana qualitativa para a comunidade internacional, pois no se cingiria mais a interesse nacional particular(19). O cidado, antes vinculado a sua nao, torna-se lenta e progressivamente "cidado do mundo"(20).

A multiplicao dos instrumentos internacionais aps o final dessa guerra, como a Declarao Universal de 1948 e os dois Pactos de 1966, levaram a uma nova evoluo da proteo internacional dos direitos humanos. Por essa razo, o que se verifica na atualidade uma espcie de busca por uma "justia globalizada", a qual poderia ser institucionalizada por meio de um tribunal verdadeiramente supra-nacional, permanente e livremente constitudo pela comunidade internacional.

A propsito, alguns estudiosos aventam a urgncia de se "constitucionalizar" as relaes internacionais(21) para sob a gide do paradigma grociano enfatizar a sociabilidade existente para tornar possvel elaborar regras que garantam uma convivncia internacional harmoniosa. Essa "constitucionalizao" exigiria o estabelecimento de um verdadeiro e nico tribunal internacional e evitaria o que se verifica na atualidade: a proliferao fcil de tribunais ad hoc - o que constitui fator altamente pernicioso para a construo de um sistema jurdico internacional equilibrado, eficiente e justo.

bem verdade que essa idia no se coaduna com a realidade (em sentido hobbesiano) das relaes internacionais, sempre assimtricas e marcadas pelo diferencial de poder entre os atores. Seria ingnuo supor, por exemplo, que uma grande potncia fosse acatar sentenas e decises contrrias a seus interesses. De qualquer sorte, entende-se que o sistema multilateral ainda o melhor mecanismo para resolver questes jurdicas apresentadas constantemente no cenrio internacional. preciso estimular o dilogo baseado no respeito ao Direito Internacional, resoluo pacfica de controvrsias e aos princpios reconhecidos como bsicos no mbito do Direitos Humanos.

A relativizao da soberania a questo central da temtica referente aplicao atual de mecanismos de proteo dos Direitos Humanos. sobejamente sabido que o primeiro grande precedente que rompeu com a idia de um domnio reservado dos Estados em Direitos Humanos foi o "Grupo de Trabalho Especial sobre a Situao dos Direitos Humanos no Chile", do regime de Pinochet. Sucede, contudo, que o "Tribunal" ad hoc criado refletiu a fora poltica momentnea em detrimento do fortalecimento dos mecanismos do Direito Internacional Pblico. Trata-se de evidente mecanismo que contribui mais para resolver questes especficas, ao sabor das circunstncias polticas e da fora da opinio pblica, do que para instaurar mecanismos permanentes e firmes de controle do Direito.

B.1 - Marcos histricos dos Direitos Humanos

Na prpria Bblia, est estatudo, no Gnesis, que "Deus criou o homem sua imagem", como querendo ensinar que o homem assinala o ponto culminante da criao. Nesse sentido, observa Hannah Arendt que "... a prpria vida sagrada, mais sagrada que tudo mais no mundo; e o homem o ser supremo sobre a terra"(22). Assim, entende-se que todo homem nico e quem suprime sua existncia como se destrusse o mundo por completo.

Analisando as idias apresentadas pelos grandes pensadores da teoria poltica moderna, verifica-se que os indivduos, at mesmo para Hobbes, tm o direito inalienvel vida(23). Esses e outros direitos fundamentais correspondem ao que Jean-Marie Dupuy qualificou de "noyau dur" dos direitos humanos. Eles remetem-nos s obrigaes erga omnes da Corte Internacional de Justia e referem-se ao princpio de jus cogens evocado na conveno de Viena sobre Tratados Internacionais (Lefebvre, 1997: 123).

Ademais, pode-se dizer que h certa relao entre a teoria de Locke - para quem o Estado e o Direito so uma espcie de meio-termo entre a liberdade vigente no "estado de natureza" (onde tudo permitido) e as exigncias da vida em sociedade e os princpios que inspiraram a proteo dos direitos fundamentais do ser humano. De fato, importante aqui ressaltar que a agem do Estado absolutista para o Estado de Direito (Rule of Law) transita pela preocupao do individualismo em estabelecer limites ao abuso de poder do todo em relao ao indivduo.

Esses limites encontrariam guarida na idia de diviso dos poderes, que, preconizada por Montesquieu, quedou estatuda no art. 16 da Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado: "Toute socit dans laquelle la garantie des droits nest pas assure, ni la sparation des pouvoirs dtermine, na point de Constitution".

Ainda que se observe que os principais marcos histricos da temtica esto na Revoluo Parlamentar Inglesa, na Independncia dos EUA e na Revoluo sa, com suas respectivas Declaraes, a incluso da observncia dos Direitos Humanos entre os princpios da Carta da ONU (1945) e a proclamao da Declarao Universal dos Direitos Humanos (1948) representaram mudana qualitativa das relaes internacionais.

Com efeito, a Carta de So Francisco, consoante Pierre Dupuy, fez dos Direitos Humanos um dos axiomas da organizao, conferindo-lhes uma estatura constitucional no Direito das Gentes.(24)

Certo que o tema "Direitos Humanos" constitui um dos itens mais importantes da agenda internacional contempornea. Para analis-lo de maneira mais sistemtica, convm agora abordar trs pontos: a Conveno de Viena; o quadro normativo existente no plano internacional; e a poltica brasileira na matria.

B.2 - A Conferncia de Viena e a consagrao dos princpios da indivisibilidade, da interdependncia e da universalidade.

Aps um quarto de sculo da realizao da I Conferncia Mundial de Direitos Humanos, realizada em Teer, a II. Conferncia (Viena, 1993) consagrou os Direitos Humanos como tema global(25).

A Conferncia de Viena conferiu abrangncia indita aos Direitos Humanos ("DH"), ao reafirmar sua universalidade, indivisibilidade e interdependncia. Ademais, afastou a objeo de que o tema estaria no mbito da competncia exclusiva da soberania dos Estados.

Quanto universalidade, foi uma das conquistas mais difceis da Declarao de Viena. De fato, s ao final se conseguiu consenso sobre o carter universal dos DH e se compreendeu que a diversidade cultural no pode ser invocada para justificar sua violao. Assim, ainda que as diversas particularidades histricas, culturais, tnicas e religiosas devam ser levadas em conta, dever dos Estados promover e proteger os DH, independentemente dos respectivos sistemas. A observncia dos DH no pode ser questionada com base no relativismo cultural. Entendeu-se que a universalidade , na verdade, enriquecida pela diversidade cultural, que no pode ser invocada para justificar a violao dos direitos humanos.

Cuida-se, aqui, de um processo de amadurecimento das idias relacionadas dignidade humana mnima e universalidade do ser humano individualmente considerado, acima de quaisquer particularismos. Os Direitos Humanos am, ento, a ser encarados como sinal de progresso moral(26).

O que se superou foi a resistncia derivada do suposto "conflito de civilizaes", aceitando-se a unidade do gnero humano no pluralismo mesmo das particularidades das naes e de seus antecedentes culturais, religiosos e histricos.

Tanto sob o ponto de vista da diplomacia, como sob o ponto de vista do Direito, o avano foi extraordinrio. Contudo, no se pode afirmar que, no campo operativo, o universalismo tenha realmente suplantado o relativismo(27). Com efeito, os instrumentos jurdicos sobre a matria tm mais carter declaratrio do que impositivo.

De qualquer sorte, a Declarao de Viena tambm estatuiu que a proteo dos DH no pode ser questionada com base na soberania. Com efeito, o reconhecimento da legitimidade da preocupao internacional com a proteo dos DH foi outra conquista conceitual da Declarao. Confirmou-se a idia de que os DH extrapolam o domnio reservado dos Estados, invalidando o recurso abusivo ao conceito de soberania para encobrir violaes. Os DH no so mais matria de competncia exclusiva das jurisdies nacionais. No se levanta mais a exceo do "domnio reservado dos Estados", em benefcio ltimo do ser humano.

importante sublinhar que a prpria Carta da ONU consagra, em seu texto(28), o princpio da no-ingerncia em assuntos de competncia interna dos Estados, o que deu ensejo a diversas interpretaes no que tange legitimidade de uma ao da ONU nesse campo. Sucede que o chamado "direito de ingerncia" um dos conceitos abusivos que mais tm prejudicado o trabalho da ONU em favor dos Direitos Humanos. No contexto do direito humanitrio, "sua origem remonta ao final dos anos 80, quando os "Mdecins sans Frontires" encontraram obstculos governamentais para fornecer auxlio mdico e alimentar a populaes africanas e asiticas em reas conflagradas"(29).

A idia de "competncia nacional exclusiva" encontra-se, agora, superada pela atuao dos rgos de superviso internacionais na proteo dos direitos humanos. De fato, no h noo mais alheia proteo internacional dos Direitos Humanos que a da soberania"(30). Por isso mesmo acredita-se que esse princpio deva ser redefinido em funo das aspiraes dos componentes do espao pblico internacional em plena fase de consolidao.

Ao firmar um Tratado qualquer, os Estados abdicam de uma parcela de sua soberania e se obrigam a reconhecer como legtimo o direito da comunidade internacional de observar sua ao interna sobre o assunto de que cuida o instrumento jurdico negociado e livremente aceito. Ademais, o Professor Canado Trindade (1999) atribui proteo internacional dos direitos humanos um carter especial, haja vista que estes prescrevem obrigaes visando a garantir o interesse geral, independementement dos interesses individuais das partes contratantes. Sendo assim, os direitos humanos consagrados em instrumentos internacionais no devem ser limitados, salvo esteja explcito em texto jurdico.

No que tange indivisibilidade, est superada a dicotomia entre "categorias de direitos"(civis e polticos, de um lado; econmicos, sociais e culturais, de outro). Verificou-se que a teoria das "geraes de direitos" historicamente incorreta e juridicamente infundada, porque no h hierarquia quanto a esses direitos e porque os argumentos em favor dessa diviso so ultraados. Com efeito, os direitos humanos devem ser considerados de maneira eqitativa, em p de igualdade e com a mesma nfase.

Dado novo, desde o incio defendido pelo Brasil, a interdependncia entre democracia, desenvolvimento e DH. O reconhecimento do direito ao desenvolvimento como direito humano universal foi o maior xito para os pases em desenvolvimento. A Declarao de Viena prope medidas concretas para a realizao do direito ao desenvolvimento, por meio da cooperao internacional, tais como: alvio da dvida externa e luta para acabar com a pobreza absoluta.

Em resumo, certo que o sistema internacional de proteo do DH saiu fortalecido da Conferncia de Viena, eis que quedaram estatudos princpios fundamentais no caminho da "globalizao" dos mecanismos concretos de proteo dos Direitos Humanos.

B.3 - O quadro normativo existente e a poltica brasileira de Direitos Humanos.

Para expor o arcabouo jurdico existente, convm ressaltar, de incio, que a Declarao Universal dos Direitos Humanos (1948), proclamada pela Assemblia Geral da ONU, definiu, pela primeira vez, como "padro comum de realizao para todos os povos e naes" os DH e liberdades fundamentais.

Previu-se, em seguida, a adoo de dois Pactos para a implementao da Declarao. Sucede que, devido a controvrsias Leste-Oeste e Norte-Sul, a elaborao levou 20 anos e outros 10 foram necessrios para a entrada em vigor. Por fim, foram adotados, em 1976, o Pacto de Direitos Econmicos, Sociais e Culturais; e o Pacto de Direitos Civis e Polticos.(31)

Desde a Declarao Universal de 48 at hoje, a ONU adotou mais de 60 Declaraes e Convenes sobre DH. Convm ressaltar que as Convenes constituem hoje importante arcabouo jurdico das Naes Unidas. Formam o que se denomina "the United Nations Human Rights System", cujo poder de influncia na matria tem sido crescente. O Brasil parte de todas as mais significativas:

a) "Conveno Internacional para a Eliminao de Todas as Formas de Discriminao Racial", adotada em 1965, em vigor desde 1969 e ratificada pelo Brasil em 1968;

b) "Conveno para a Eliminao de Discriminao contra a Mulher", adotada em 1979, vigente em 1981 e ratificada pelo Brasil em 1984. Reuniu o maior nmero de reservas. O Brasil tambm expressou reservas devido ao Cdigo Civil. Mas, com a Constituio de 1988, foram elas revistas pelo Governo brasileiro, por no mais se coadunarem ao tetxo constitucional;

c) "Conveno contra a Tortura e outros Tratamentos e Punies Cruis, Desumanos e Degradantes", adotada em 1984, vigente em 1987 e ratificada pelo Brasil em 1989. Embora a Constituio de 1988 tenha qualificado a tortura como crime inafianvel e insuscetvel de graa ou anistia, o crime ainda no foi tipificado;

d) "Conveno sobre os Direitos da Criana", adotada em 1989, vigente em 1990 e ratificada pelo Brasil em 1990. Tendo sido ratificada por 191 dos 193 pases-membros(32), tida por "virtualmente universal". Ressalte-se que o "Estatuto da Criana e do Adolescente" do Brasil reflete suas disposies, as quais foram adaptadas ao caso brasileiro.

Quanto ao quadro normativo interamericano, o Brasil ratificou, em 1989, a "Conveno Interamericana para Prevenir e Punir Tortura" e, em 1992, a "Conveno Interamericana sobre Direitos Humanos" (Pacto de San Jos).

No que tange poltica brasileira de DH, o Brasil conheceu quatro momentos de evoluo de sua atuao na Comisso de Direitos Humanos da ONU. O primeiro vai de 1964 a 1977. Esse perodo, caracterizado pelo auge do regime ditatorial, pautava-se pela ausncia de dilogo da parte do Brasil sobre a temtica. As manifestaes oficiais eram espordicas e sempre marcadas por elevado grau de confidencialidade.

O segundo de 1977 (quando o Chanceler Azeredo da Silveira abordou o tema, pela primeira vez, de maneira abrangente e cautelosa) at 1984. Foi um perodo de posies conservadoras e defensivas. De qualquer forma, o Brasil decidiu abri o dilogo com a apresentao de candidatura oficial Comisso de Direitos Humanos.

O terceiro vai de 1985, com o comeo da redemocratizao (quando o Presidente Sarney anuncia nossa adeso aos Pactos de Direitos Civis e Polticos e de Direitos Econmicos, Sociais e Culturais), at 1990. Foi um perodo de reconhecimento relativamente tmido da legitimidade das iniciativas multilaterais de controle das violaes de DH. Registre-se que, em 1988, a Constituio Federal estabeleceu, no art. 4, que a prevalncia dos DH um dos princpios que regem as relaes internacionais do Brasil.

O quarto vai de 1991 at hoje, em que os mecanismos internacionais no configuram atentado ao princpio de no-interveno. H reconhecimento pleno da legitimidade dos mecanismos internacionais de proteo. A poltica brasileira de DH mudou, de fato, com a consolidao das instituies democrticas.

Atualmente, a poltica brasileira de DH se caracteriza pelos seguintes fatores: a) atuao pautada pela transparncia e disposio para o dilogo com rgos internacionais, autoridades estrangeiras e ONGs(33); b) adeso a todos os Pactos e Convenes relevantes na matria; c) valorizao dos foros e mecanismos multilaterais; d) valorizao da cooperao internacional; e) exigncia de atuao internacional para as causas estruturais da violncia social.

O Brasil ite a existncia de problemas e manifesta o desejo de resolv-los. Mas, ao expor comunidade internacional a prpria situao interna, procura ressaltar a dimenso socioeconmica da questo. No esconde seus problemas (haja vista a cobrana de ONGs quanto aos episdios de Candelria, Vigrio Geral, Carandiru, ndios ianommi etc), mas procura mostrar a vinculao com a questo do desenvolvimento. Em outras palavras, procura mostrar a relao entre pobreza, criminalidade, violncia e violao dos DH, o que significa que h causas estruturais a serem consideradas e que as violaes de DH no ocorrem com a conivncia do Estado.

O Brasil de hoje no se caracteriza mais pela arbitrariedade de um regime autoritrio mas pelas dificuldades de um pas democrtico em assegurar a proteo dos DH, dentro do quadro constitucional e em consonncia com seu nvel de desenvolvimento.

Deve ser enfatizado que a poltica do Brasil de avaliar e expor a prpria situao no para solicitar a indulgncia internacional, mas para chamar ateno para a difcil situao socioeconmica de uma pas em busca de efetivo respeito dos DH e de reconhecimento de seus esforos.


C - Concluses

Poder-se-ia elencar trs novas caractersticas do direito internacional em construo (Weiss, apud. Aubertin e Vivien, 1998:2-15). A primeira, decorrente das lacunas entre as relaes de Estados e de outros atores, a interseco das esferas do direito pblico e do privado, tanto no mbito nacional como no internacional. Segundo exemplo da Professora Ndia Arajo(34), tudo o que for codificado no mbito da Organizao Mundial do Comrcio (OMC) ter conseqncias importantes para contratos privados.

A segunda caracterstica a crescente utilizao de instrumentos legais no-cogentes ou voluntrios, sob a forma de declaraes de intenes ou de atos unilaterais. Como se a comunidade internacional pudesse de facto julgar a ao poltica dos Estados que se comportam mal. Na Cpula da Francofonia de 1999 no Canad, por exemplo, este pas props sanes aos Chefes de governo que violassem os direitos humanos, mas essa "comunidade internacional" restrita se contentou em adotar a proposta do Presidente francs Jacques Chirac de criar um "Observatrio dos Direitos Humanos", sem nenhum efeito cogente.

Cabe ressaltar que a sociedade internacional ainda descentralizada e assim ser muito provavelmente por longo tempo. Ademais, no h, no sistema internacional, nem autoridade superior, supranacional, nem mesmo milcia permanente, que possa tornar obrigatrio, sob via de fora, o cumprimento das normas. Decorre, portanto, que os Estados sofrem presses difusas e confusas, mas ainda so os principais responsveis pela construo do direito internacional e dos direitos humanos, em particular.

Sucede, contudo, que o direito internacional nunca foi to solicitado no mundo e to ampliado a questes diversas (Lefebvre, 1997). Nesse sentindo, os primeiros os do Tribunal Internacional Penal confirmam a retomada do ideal de justia internacional: para Canado Trindade (1999), o monitoramento mundial do respeito aos direitos humanos e a incluso dessa dimenso nos programas das Naes Unidas so etapas importantes para a realizao desse ideal.

A terceira a integrao do direito nacional e do direito internacional medida que os textos internacionais exigem uma harmonizao de outras legislaes domsticas. Considerando que os instrumentos internacionais ratificados pelos governos de cada Estado-parte prevalecem sobre as legislaes nacionais (ou, ao menos, a ela se equivalem, em igualdade hierrquica), essa evoluo parece bvia. Contudo, a questo do status normativo das fontes internacionais frente s nacionais no ser desenvolvida.

Constata-se, em suma, que o processo cunhado de "globalizao" tem surtido efeitos impressionantes na esfera jurdica, haja vista a necessidade de regulao internacional mais consentnea com as demandas atuais da comunidade internacional. Apesar da natural diversidade de interesses dos Estados, a idia de "constitucionalizao" das regras de conduta dessa comunidade no que se refere proteo dos direitos humanos cada vez mais premente, o que implica reforar a relatividade do conceito de soberania.


D -NOTAS

1. Para uma definio detalhada de "globalizao multidimensional", ver Viola (1996).

2. O Estado tem direito soberano de controlar mensagens que entram no seu territrio, segundo a Resoluo 37-92 da ONU datada de 10.12.1982.

3. O nmero de transnacionais em 1970 situava-se em torno de 7.000; j em 1992, estimava-se em 37.000.

4. Para uma verso onusiana do tema, ver a entrevista de K. Annan, The Economist, 18.09.1999.

5. Debate realizado entre o Ministro francs das Relaes Exteriores, Hubert Vdrine, e 80 estudantes no Quai d'Orsay, Paris, junho de 2000. Foi um exemplo chocante de como a juventude sa exigiu de seu ministro polticas severas contra todos que violam os direitos humanos (denunciados pela imprensa), principalmente Beijing e Moscou.

6. Cada caso merecedor de ateno especial. Na Chechnia, por exemplo, a guerra ainda no acabou, e a comunidade internacional fez presso diplomtica, sem influenciar a poltica de "extermnio de terroristas" de Vladimir Poutine.

7. Esta ONG denunciou, em relatrio publicado dia 29 de maro de 2000, no s as violaes aos direitos humanos no Reino da Arbia Saudita, como sendo o "pior sistema judicirio do mundo", mas tambm a indiferena da comunidade internacional. Jornal Libration, 30.03.2000, p.14.

8. Termo utilizado pelo Presidente J. Chirac para descrever esse fenmeno de disparidades mltiplas dentro da sociedade sa.

9. Segundo dados comparativos dos relatrios do PNUD dos ltimos 30 anos.

10. Sobre a desigualdade de poder no cenrio internacional, ver Hurrel, A. e Woods, N. Inequality, Globalization and World Politics, 1999.

11. Ver nota 5.

12. Chartouni-Dubarry e al Rachid, "Droit et mondialisation", 1999.

13. O conceito de poder objeto de querelas interminveis na teoria de relaes internacionais. Ele traduz aqui a capacidade de agir na cena internacional (Gounelle, 1998; Lefebvre, 1997), de atores coletivos como G-8 e OTAN, UE ou individuais, como os EUA.

14. Chartouni-Dubarry e al Rachid, op. cit.

15. Entrevista realizada dia 23 de maio de 2000. Ver Boucault e Araujo (1999).

16. Professor de Relaes Internacionais no Instituto de Estudos Polticos de Paris. Entrevista realizada dia 09.03.2000, em Paris.

17. Ver Krasner, S. Sovereignity: Organized Hipocrisy, 1999. Ver tambm Badie, B. La fin des souverainets, 1999.

18. Smouts, M.-C. "Du bon usage de la gouvernance en relations internationales", Revue Internationale des Sciences Sociales, n 155, mars 1998, p. 85-94.

19. Cf. Drinan, R. Cry of the oppressed: the human rights revolution. So Francisco: Row Pub,1987.

20. Nota-se a aproximao do ideal de jurisdio planetria com a criao de tribunais internacionais, como o Tribunal Penal Internacional.

21. Cf. Lafer, Comrcio, Desarmamento e Direitos Humanos. Paz e Terra, 1999, p.141.

22. Arendt, Hannah. Entre o ado e o Futuro. So Paulo, Perspectiva, 1972, p.83.

23. Hobbes, T. Leviathan. Harmondsworth, Penguin Books, 1979, pp.189-201.

24. Dupuy, P. La protection internationale des droits de lhomme, p.404, 1980.

25. Ressalte-se que ao Brasil coube, por indicao, presidir o Comit de Redao.

26. Bobbio, L et dei diritti, Torino: Einaudi, 1990, pp.143-155

27. Cf. exemplos in: Lindgren Alves, J. Os Direitos Humanos Como Tema Global, 1994, p.140.

28. Art. 2, # 7.

29. Lindgren Alves, J . op. cit., p. 38.

30. Trindade (Cf. apresentao ao livro de Lindgren Alves, J. Os Direitos Humanos como Tema Global, 1994)

31. Desde 1992, o Brasil parte dos dois intrumentos.

32. Com as excees dos Estados Unidos da Amrica e da Somlia.

33. Ressalte-se a crescente aproximao do Governo com as organizaes no-governamentais, como expresso legtima de organizao da sociedade civil.

34. Entrevista realizada dia 23 de maio de 2000.


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Ancelmo Csar Lins de Gis
bacharel em Direito e em Relaes Exteriores pela Universidade de Braslia (UnB),
diplomata de carreira,
professor de Cincia Poltica na Faculdade de Direito do UniCEUB

Ana Flvia Barros-Platiau
consultora internacional e bolsista da CAPES,
bacharel em Relaes Internacionais pela Universidade de Braslia,
DEA em Relaes Internacionais na Universidade Sorbonne Panthon (Paris 1),
doutoranda em Direito na mesma universidade

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