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A proteo aos direitos intelectuais coletivos das comunidades indgenas brasileiras 4h1067

Juliana Santilli

1 INTRODUO

Antes de entrar na abordagem jurdica do tema, quero destacar alguns dados que dimensionam as possibilidades estratgicas de explorao do patrimnio biogentico brasileiro.

O Brasil um dos pases da chamada megadiversidade, abrigando formaes naturais como cerrado, pantanal, caatinga, campos e mais de 3,5 milhes de km2 de florestas tropicais (30% do mundo), na Amaznia e na Mata Atlntica, onde esto concentradas mais de 50% das espcies.

Associada sua rica biodiversidade, est o seu extenso patrimnio sociocultural: uma das populaes mais diversificadas do mundo: povos indgenas, descendentes de quilombos, colonos, caiaras, ribeirinhos, extrativistas, populaes rurais e urbanas de diferentes origens tnicas e culturais. (Dados extrados do folder institucional do Instituto Socioambiental** ).

Existem no territrio brasileiro 206 povos indgenas, e a sua maior parte formada por microssociedades. Desses povos, 71 (34%) tm uma populao de at 200 indivduos. Parte da populao indgena, 60%, vive no Centro Oeste e Norte do pas (Amaznia e cerrado) tem formalmente direito a 98% da extenso das terras indgenas. (Dados extrados do texto A Sociodiversidade Nativa Contempornea no Brasil, do antroplogo Carlos Alberto Ricardo, publicado em Povos Indgenas no Brasil - 1991/1995, ISA.

2 Tanto a bio quanto a sociodiversidade brasileiras esto protegidas constitucionalmente. O art. 225, 1, II, determina a preservao da diversidade e da integridade do patrimnio gentico do pas. J o art. 215, 1, da Constituio brasileira protege as manifestaes das culturas populares, indgenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatrio nacional. O "patrimnio cultural" brasileiro, composto de bens portadores de referncia identidade, ao e memria dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira tambm protegido no art. 216.

Os direitos bio e sociodiversidade brasileira, bem como ao patrimnio cultural, so coletivos, e pertencem cidadania. Conforme salienta o jurista Carlos Frederico Mars, em artigo intitulado "Propriedade Intelectual e Direitos Coletivos" (ainda no-publicado), os direitos coletivos no so uma mera soma de direitos subjetivos individuais, mas somente aqueles pertencentes a um grupo de pessoas, cuja titularidade difusa porque no pertence a ningum em especial, mas cada um pode promover sua defesa que beneficia sempre a todos.

Assim sendo, os cidados brasileiros esto legitimados a agir em juzo em defesa desses direitos coletivos, tendo o Direito brasileiro criado, inclusive, instrumentos processuais prprios para a defesa do meio ambiente, patrimnio cultural, consumidores e outros direitos coletivos (ao civil pblica e ao popular, principalmente).

Entre os direitos coletivos de minorias tnicas, destacam-se os das comunidades negras, remanescentes de quilombos, propriedade definitiva das terras que estejam ocupando (art.68 das DCT) e ao tombamento de todos os documentos e stios detentores de reminiscncias histricas dos antigos quilombos (art.216, 5).

Com regulamentao mais extensa, esto os direitos dos povos indgenas, sobre as terras que tradicionalmente ocupam, seus recursos naturais, sua organizao social, costumes, lnguas, crenas e tradies (arts. 231 e 232), entre outros. Sobre a natureza jurdica sui generis dos direitos coletivos de povos indgenas, falar-se- mais adiante.

3. O Brasil signatrio da Conveno sobre a Diversidade Biolgica (CDB), que entrou em vigncia no pas a partir de sua ratificao pelo Congresso Nacional, em maio de 1994. Portanto, esse o principal instrumento legal para a proteo da biodiversidade no pas. (Embora, de forma indireta, seja tambm resguardada pelas leis de proteo fauna, flora, unidades de conservao de uso direto e indireto, e pelas leis ambientais em geral, que impem condies e restries ambientais a atividades econmicas lesivas e criam espaos ambientais especialmente protegidos).

A execuo e implementao prticas da CDB, entretanto, ainda dependem de regulamentao, e a principal iniciativa nessa direo o Projeto de Lei n 306/95, de autoria da Senadora Marina Silva (eleita pelo Partido dos Trabalhadores, do Estado do Acre, na Amaznia).

Esse projeto foi amplamente debatido com cientistas e representantes de ONGs, e contou com considervel participao democrtica.

Com a aprovao da Lei n 9.279, em maio de 1996, que regulamentou a propriedade industrial no pas, sentiram-se derrotados os setores mobilizados principalmente no "Frum pela Liberdade do Uso do Conhecimento", que congregou ONGs, cientistas e associaes profissionais de farmacuticos, qumicos e outras categorias.

A Lei n. 9.279/96 dispe em seu art.10, IX, que, para efeito de patenteamento, no se considera inveno nem modelo de utilidade, o todo ou parte de seres vivos naturais e materiais biolgicos encontrados na natureza, ou ainda que dela isolados, inclusive o genoma ou germoplasma de qualquer ser vivo natural e os processos biolgicos naturais. J em seu art. 18, III, dispe que no so patenteveis: o todo ou parte dos seres vivos, exceto os microorganismos transgnicos que atendam aos trs requisitos de patenteabilidade - novidade, atividade inventiva e aplicao industrial - previstos no art.8, e que no sejam mera descoberta. O pargrafo nico desse artigo define "microorganismos transgnicos" como organismos, exceto o todo ou parte de plantas ou de animais, que expressem, mediante interveno humana direta em sua composio gentica, uma caracterstica normalmente no alcanvel pela espcie em condies naturais.

Sentindo-se derrotados, porm, esses vrios setores da sociedade civil decidiram empenhar seus esforos na aprovao de uma lei de o biodiversidade satisfatria.

O projeto de lei da Senadora Marina Silva pretende regulamentar os "instrumentos de controle do o a recursos genticos no pas", e encontra-se atualmente com o Senador Osmar Dias, a quem foi distribuda a relatoria do mesmo. Vrias audincias pblicas foram realizadas visando discutir o projeto e o Senador Osmar Dias pretende apresentar, em data ainda no determinada, um substitutivo ao mesmo.

4 Uma das questes centrais na regulamentao do o aos recursos genticos existentes no territrio brasileiro o regime de propriedade sobre os mesmos.

sabido que a Conveno sobre Diversidade Biolgica consagra a soberania dos Estados sobre os recursos genticos, o que tem implicaes sobre quaisquer mecanismos de reconhecimento dos direitos intelectuais indgenas associados biodiversidade e de compensao por sua utilizao.

A titularidade dos direitos incidentes sobre os recursos genticos, quando localizados em reas indgenas ou associados a conhecimentos tradicionais indgenas, parece questo ainda no resolvida de forma satisfatria aos interesses indgenas, nem mesmo no mbito da Conveno sobre Diversidade Biolgica (CDB) ou da Deciso Andina sobre Proteo e o a Recursos Genticos.

A CDB estabelece serem os Estados nacionais titulares de direitos soberanos sobre os seus recursos biolgicos, sem regular precisamente os direitos especiais das comunidades indgenas que vivem nas reas onde esto localizados. Em relao a isso, reconhece (em seu prembulo) a estreita e tradicional dependncia de recursos biolgicos de muitas comunidades locais e populaes indgenas com estilos de vida tradicionais, bem como a necessidade de "repartio equitativa" dos benefcios derivados da utilizao de conhecimentos tradicionais, inovaes e prticas relevantes conservao da diversidade biolgica. (art.8) No vai alm de regras genricas.

Considerando-se o fato de que a CDB um instrumento de direito internacional, negociado e assinado por representantes de Estados, parece lgica a ausncia de uma regulamentao mais precisa das relaes internas entre os Estados e as comunidades indgenas que vivem em seus territrios, naquilo que diz respeito titularidade de direitos incidentes sobre os recursos da diversidade biolgica. A CDB recomenda a repartio de benefcios entre os Estados solicitantes e provedores de o, mas no estabelece regras mais especficas quanto s compensaes s comunidades indgenas. Portanto, a legislao nacional deve regular estas relaes.

Muito embora o princpio da soberania dos Estados sobre seus recursos genticos tenha sido festejada pelos pases ricos em biodiversidade (em geral do Terceiro Mundo), por representar um avano em relao ao conceito anterior de "patrimnio da humanidade", ele pode representar perdas para as comunidades indgenas, se for interpretado de forma contrria aos seus direitos e interesses.

Vejamos o caso brasileiro. A nossa Constituio Federal estabelece um regime jurdico muito peculiar para as terras indgenas: so de propriedade da Unio (art.20, XI), mas de posse permanente das comunidades indgenas que nelas vivem, cabendo-lhes ainda o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes (art. 231, 3). A CF reconhece ainda a natureza "originria" (art. 231, caput) dos direitos indgenas sobre as suas terras: isto , o prprio Estado reconhece que os direitos indgenas so anteriores sua prpria criao.

O "usufruto exclusivo" sobre os recursos naturais de suas terras, assegurado constitucionalmente s comunidades indgenas, significa que essas so tambm "usufruturias exclusivas" dos recursos genticos existentes em seus territrios estando ou no associados a conhecimentos tradicionais. Ou seja: a simples ocorrncia de um determinado recurso gentico em uma rea indgena d comunidade a condio de "usufruturia exclusiva" do mesmo, e o o a esse depender do seu prvio e informado consentimento, em termos mutuamente acordados.

As nicas excees ao usufruto exclusivo que as comunidades indgenas tm sobre os recursos naturais existentes em suas terras so estabelecidas na prpria Constituio: 1) o aproveitamento de recursos hdricos (includos os potenciais energticos) e 2) a minerao, que s podem ser efetivados com autorizao do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades indgenas afetadas e ficando-lhes assegurada participao nos resultados da lavra (art. 231, 3).

V-se que a hiptese de o de terceiros a recursos genticos no est entre as excees ao usufruto exclusivo dos ndios sobre os recursos naturais de suas terras. Foroso concluir, portanto, que as comunidades indgenas so as "usufruturias exclusivas" dos recursos genticos existentes em suas terras tradicionais. Saliente-se, entretanto, que o direito de usufruto exclusivo no significa que as comunidades indgenas no possam autorizar o o de terceiros aos recursos genticos de que so usufruturias. No significa que s as comunidades indgenas possam empreg-los, com as suas prprias mos. Elas podem autorizar o seu o a terceiros, desde que isso atenda aos seus interesses, e se faa de forma que no viole a sua integridade cultural.

O reconhecimento de que as comunidades indgenas so usufruturias dos recursos genticos existentes em suas terras tem implicaes diretas em relao aos mecanismos de compensao s comunidades indgenas. Vejamos a seguir.

As comunidades indgenas devero ser parte de qualquer contrato de o a recurso gentico situado em seu territrio devero participar das negociaes, estabelecer condies e restries, exigir garantias prprias e a devida compensao mediante a cobrana de uma determinada taxa de prospeco (para a simples coleta), e de um percentual fixo sobre quaisquer lucros gerados com processos ou produtos desenvolvidos com base em recursos genticos coletados em seus territrios, mediante a utilizao de seus conhecimentos tradicionais.

Ser parte no contrato de o substancialmente diferente de ser apenas "consultada" ou "informada", como consta de projetos de lei j apresentados anteriormente. Saliente-se que a comunidade indgena titular dos direitos de posse permanente e usufruto sobre determinado territrio deve ser parte no contrato de o a recurso gentico no apenas quando esse envolva o chamado "componente intangvel" (ou seja, conhecimentos tradicionais associados aos recursos genticos). O simples o a um recurso gentico localizado dentro de uma rea indgena d comunidade a condio de usufruturia, e, portanto, de parte no contrato de o, que dever ser tripartite: Estado (proprietrio), comunidade indgena (usufruturia) e pessoa fsica ou jurdica interessada.

As conseqncias da soberania estatal sobre os recursos genticos em relao s comunidades indgenas j vem sendo objeto de preocupao em outros pases. No Equador, por exemplo, foi aprovada (em setembro de 96) uma "mini-lei", com a seguinte redao:

art.1 - O Estado equatoriano o titular dos direitos de propriedade sobre as espcies que integram a biodiversidade no pas, que se consideram como bens nacionais e de uso pblico.

Sua explorao comercial se sujeitar regulamentao especial que determinar o Presidente da Repblica, garantindo os direitos ancestrais das comunidades indgenas sobre os conhecimentos e os componentes intangveis da biodiversidade e dos recursos genticos e o controle sobre eles.

Segundo Elizabeth Bravo, da Accion Ecolgica do Equador, a soberania do Estado equivalente propriedade do Estado (o que, alis, est muito claro na lei transcrita acima: o Estado simplesmente o proprietrio da biodiversidade nacional). O subsolo equatoriano, por exemplo, est sob a soberania do Estado e de sua propriedade, segundo Bravo. Se a biodiversidade recebe esse tratamento, as comunidades indgenas e locais perderiam o direito sobre o solo tambm. (Tal como ocorre com os direitos minerrios, conclui Bravo, em artigo intitulado Derechos Intelectuales Comunitrios sobre la Biodiversidade: el caso del Ecuador).

O mesmo acontece no Brasil: segundo o art. 231, 3 da CF, a explorao mineral em terras indgenas depende de autorizao do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas e ficando-lhes assegurada participao nos resultados da lavra. Os direitos em relao ao solo se distinguem em relao aos direitos minerrios, do subsolo. Subtrair os recursos genticos do usufruto exclusivo das comunidades indgenas representaria mais uma perda.

No obstante o avano que representa a lei do Equador, na tentativa de proteger o patrimnio gentico do pas contra a biopirataria internacional, a caracterizao dos recursos genticos como "bens de uso pblico" seria, no regime constitucional brasileiro, uma afronta aos direitos indgenas de usufruto exclusivo sobre os recursos naturais existentes em suas terras. Logicamente, os recursos genticos no podem ser "bens de uso privado", mesmo quando localizados em reas de propriedade particular, mas, nos territrios indgenas, devem ter o seu uso regulamentado de maneira especial.

A preocupao em resguardar os direitos especiais das comunidades indgenas, no tocante concesso de o a recursos genticos em terras indgenas, associados ou no a conhecimentos tradicionais, j foi expressa pelo Instituto Socioambiental em audincias pblicas realizadas em SP e em BSB com o objetivo de discutir o projeto de lei apresentado pela senadora Marina Silva.

A verso original do projeto deixa ambigidades com relao participao das comunidades indgenas nas decises relativas ao o de terceiros aos recursos genticos existentes em suas terras. O art.1 estabelece o princpio da sua "participao" em tais decises. J o art. 6, pargrafo nico, estabelece que as solicitaes de o a recursos genticos em terras indgenas seguiro regulamento a ser expedido no prazo de 180 dias, assegurada, em qualquer caso, a audincia das populaes interessadas e a participao de pelo menos um membro da comunidade nos trabalhos desenvolvidos.

J o art. 20 estabelece que fica assegurado s comunidades locais o direito de no permitir a coleta de recursos biolgicos e genticos e o o ao conhecimento tradicional em seus territrios, assim como o de exigir restries a essas atividades fora de seus territrios, quando se demonstre que essas atividades ameacem a integridade de seu patrimnio natural ou cultural.

J a ltima verso do projeto a que tivemos o (de19/08/96) prev a participao da comunidade no contrato de o apenas quando h o componente intangvel. A regulamentao do o a recursos genticos em terras indgenas, no prazo de 180 dias, suprimida da ltima verso do projeto, sem que fique claro qual o mecanismo substituto.

Conforme j dito anteriormente, fundamental que a comunidade indgena seja parte no contrato de o a recursos genticos situados em suas terras, independentemente de envolver ou no o componente intangvel. O consentimento informado prvio das comunidades indgenas deve se manifestar no contrato de o, em que parte, onde sero fixadas as condies e restries.

A lei, por sua vez, deve estabelecer os patamares mnimos a serem observados nos contratos de o, a fim de proteger os interesses indgenas de eventuais tentativas de manipulao. Conforme salienta Gurdial Singh Nijar, da organizao Third World Network, da Malsia, a vantagem dos contratos que mais fcil execut-los fora dos pases de origem, cumpridas certas formalidades, porque muitos pases tm acordos de reciprocidade, enquanto a legislao de um determinado pas no tem nenhum efeito extraterritorial (in Towards a Legal Framework for Protecting Biological Diversity and Community Intellectual Rights - a Third World Perspective). Assim, uma vez obtida uma deciso judicial acerca do descumprimento de um contrato, ser mais fcil execut-la em outro pas.

Quando se fala em contratos, sempre bom pensar naquilo que se pode fazer em caso de descumprimento por uma das partes e, nesse particular, Nijar salienta que, nos pases em que no h acordo de reciprocidade para cumprimento das decises judiciais, seria bom que a lei exigisse que a pessoa ou empresa interessada no o ao recurso gentico fizesse um depsito de uma quantia destinada a assegurar eventuais danos causados pelo no-cumprimento do acordo. Outra hiptese a lei estabelecer a necessidade de o coletor obter do seu pas o compromisso de indenizar o pas de origem (dos recursos) por quaisquer perdas derivadas da violao do acordo, e de apresentar os resultados de qualquer relatrio de estudos ou experincias feitos com a espcie coletada.

Entre as formas de compensao s comunidades indgenas, devem ser assegurados no s o direito de serem informadas sobre todos os resultados da pesquisa, como tambm de participarem, se quiserem, das atividades de pesquisa e desenvolvimento. O to falado "o tecnologia" para melhor aproveitamento dos recursos genticos deve-se estender tambm s comunidades indgenas. Logicamente, a transferncia de tecnologia deve-se dar na forma de intercmbio e respeitar a integridade cultural das comunidades indgenas.

Para o o ao recurso gentico localizado em um territrio indgena, deve ser exigida, alm de uma contrapartida imediata, uma percentagem fixa de qualquer renda derivada do fornecimento do germoplasma para organizaes comerciais. Outra percentagem deve ser paga pelos resultados econmicos a serem auferidos com a criao de um produto ou processo. A prpria lei deve estabelecer um percentual mnimo, bem como determinar que esse seja obedecido nos contratos, sob pena de nulidade. A contrapartida imediata, a denominada taxa de prospeco, pode ser tanto uma quantia em dinheiro como em bens ou vantagens de outra natureza.

Deve ser sempre ressaltada a natureza coletiva de qualquer mecanismo de compensao por conhecimentos tradicionais indgenas, e ser expressamente proibida qualquer apropriao individual dos benefcios oriundos de sua utilizao para fins comerciais.

Em relao ao o a conhecimentos tradicionais associados aos recursos genticos, deve ser feita uma distino entre os conhecimentos de que so detentoras exclusivas certas comunidades indgenas (j foi citado anteriormente, pelo Grupo de Trabalho de Socio-Biodiversidade do Frum de ONGs, o exemplo do Tiki Uba, um veneno anti-coagulante usado e manipulado somente pelos Uru-Eu-Uau-Uau, de Rondnia) e aqueles que so divididos por vrias comunidades indgenas, geralmente de uma mesma regio geogrfica, e que dificilmente tm sua origem precisada no tempo.

Em relao ao 1 caso (conhecimento exclusivo) parece no haver maiores dificuldades para a concretizao da compensao a ser estabelecida por meio de contrato de o negociado e assinado diretamente com a comunidade. O contrato dever estipular que a comunidade far jus no apenas taxa de prospeco e participao sobre rendimentos auferidos com a comercializao de germoplasma, como tambm a uma percentagem sobre quaisquer lucros auferidos com a comercializao de produtos desenvolvidos com base, direta ou indiretamente, em conhecimentos tradicionais indgenas.

Mais complexos, entretanto, parecem ser os mecanismos de compensao quando se trata de conhecimentos divididos por vrias comunidades indgenas. Uma soluo seria o estabelecimento da co-titularidade de direitos e obrigaes entre as vrias comunidades, que deveriam ser, ento, todas, partes no contrato de o. Essa a soluo adotada pela proposta equatoriana.

Quando for possvel precisar certas e determinadas comunidades indgenas como detentoras do conhecimento tradicional, a co-titularidade parece o sistema mais lgico. Entretanto, ele no soluciona as situaes em que a titularidade do conhecimento mais difusa, e no se pode precisar quais seriam as suas detentoras originrias. Nesse caso, parece necessria a criao de um fundo especfico, a que seriam destinados os recursos levantados com o pagamento de taxas de prospeco/royalties sobre recursos genticos/conhecimentos tradicionais coletivos associados biodiversidade.

Esse fundo deve ser especfico para as comunidades indgenas, e no pode, sob pena de desvirtuamento total de sua finalidade, se confundir com outros fundos j existentes (como o Fundo Nacional do Meio Ambiente, que consta do projeto de lei apresentado pela Senadora Marina Silva). Deve haver um fundo especfico para gesto dos recursos indgenas, que tambm no podem se confundir com os recursos destinados a outras comunidades locais, dada a sua especificidade. As comunidades indgenas, alm de j terem alcanado um estgio mais avanado de reconhecimento formal dos seus direitos por parte do Estado brasileiro, possuem identidade cultural/tnica que as distingue com mais obviedade da sociedade envolvente.

Esse fundo deve ser gerido por um conselho composto de representantes dos rgos estatais com atribuies relacionadas temtica indgena e ambiental, do Ministrio Pblico Federal (dada a sua incumbncia constitucional de promover a defesa dos direitos indgenas), de organizaes de apoio aos ndios, organizaes indgenas e representantes de comunidades indgenas das diferentes regies geogrficas do pas. O conselho deve gerir os recursos de acordo com os objetivos j indicados na prpria lei, e sempre em projetos em reas indgenas (visando a conservao do meio ambiente, da biodiversidade e dos recursos biolgicos in situ, o desenvolvimento sustentvel das comunidades indgenas, bem como sua sade e educao, conforme proposta j feita pelo Grupo de Trabalho de Scio-Biodiversidade do Frum de ONGs). Deve ser criado um mecanismo pelo qual as prprias comunidades indgenas possam apresentar projetos de desenvolvimento sustentvel em suas terras a serem financiados com recursos do fundo.

tambm fundamental a criao de uma instncia tcnica que assessore as comunidades indgenas na de contratos de o, informando-as sobre seus direitos, bem como a criao de um registro especial das inovaes indgenas.

Algumas propostas concretas tm sido elaboradas em outros pases visando a criao de mecanismos de compensao s comunidades indgenas pelo o a recursos genticos e pela utilizao de conhecimentos tradicionais.

Na proposta equatoriana, quando. uma empresa deseja ter o a um recurso gentico, deve pagar comunidade pelo o, devendo o regulamento estabelecer os montantes. Alm disso, qualquer pessoa ou organizao que use uma inovao com propsitos comerciais deve pagar comunidade local, dona da inovao, uma importncia que represente a porcentagem de, pelo menos, 15% sobre os lucros obtidos com quaisquer produtos ou processos que tenham incorporado tal inovao.

A proposta equatoriana prev ainda a criao de um "fundo de fideicomisso", visando beneficiar esses recursos as geraes futuras da comunidade local, dona da inovao. A istrao do "fundo de fideicomisso" dever ainda ser regulamentado, e esse poder ser utilizado tanto na conservao, desenvolvimento e manuteno da biodiversidade como em programas propostos pelas comunidades. Prev ainda que nenhuma inovao indgena poder ser objeto de patentes, e que o consentimento informado prvio das comunidades para o o inclui a possibilidade de que levantem objeo cultural, quando no desejem que sua inovao seja utilizada com propsitos comerciais.

Em relao distribuio de benefcios, a proposta equatoriana prev que, se o recurso for de propriedade de uma comunidade local, o pagamento se far a tal comunidade ou organizao que a representa; em qualquer outro caso, ao governo e, neste caso, o dinheiro dever ser aplicado na conservao e manuteno dos recursos biolgicos.

A proposta equatoriana prev ainda a criao, pelo Estado, de uma instituio tcnica, que registre as permisses de o, o desenvolvimento e a comercializao promovidos a partir de inovaes comunitrias feitas por qualquer pessoa ou organizao, e prev que essa instituio deva ter um percentual mnimo de membros de comunidades indgenas nomeados por suas organizaes.

J a proposta colombiana, elaborada pelo Grupo ad-hoc de Biodiversidade da Colmbia, estabelece dois regimes diferentes para a tramitao das solicitaes de o aos recursos genticos: 1) regime especial de o, pelo qual tramitam as solicitaes e se definem as condies de o a recursos associados ao conhecimento tradicional. Esse regime est associado ao sistema sui generis de propriedade intelectual, cuja caracterstica evitar a apropriao individual dos direitos sobre o conhecimento coletivo. 2) regime geral de o, pelo qual tramitam as solicitaes de o a recursos que no envolvam conhecimento tradicional. Esse regime est associado a sistemas individuais de propriedade intelectual (patentes e direitos do obtentor vegetal).

Entre as solicitaes sujeitas ao regime especial de o, esto aquelas apresentadas por comunidades locais para investigar ou fazer inventrios sobre recursos de seus territrios, solicitaes de o a recursos situados em territrios indgenas ou de comunidades negras ou as destinadas a investigar aqueles que tenham um conhecimento coletivo associado.

Prev a regulamentao do regime especial de o no prazo de um ano, bem como, dentro do mesmo prazo, do "sistema sui-generis de direitos coletivos de propriedade intelectual", mediante um processo de consulta que dever contar com a ampla participao das comunidades locais, devendo o governo nacional garantir os recursos financeiros e o apoio logstico requerido para esse propsito.

De acordo com o regime especial (alm dos requisitos estabelecidos pelo regime geral), deve haver, no mnimo, a identificao das partes (O Estado e o solicitante do o, bem como a identificao da pessoa ou comunidade que prov o recurso, anexando o consentimento dessa para permitir a disponibilidade do bem, assim como a identificao dos mecanismos que garantam a proteo da integridade cultural e do conhecimento da comunidade envolvida), as obrigaes gerais do receptor e dos provedores (pas e comunidades), inclusive o dever de inform-los sobre futuros usos e a proibio de transferncia a terceiros, a aceitao de que o contrato se rege pelo sistema de direitos coletivos de propriedade intelectual, distribuio de benefcios entre o receptor e o provedor pelo o ao recurso, como tambm pelos benefcios que possam ser gerados posteriormente, bem como o direito das comunidades de restringir o o quando surjam motivos que fundamentem a objeo cultural.

No captulo IX, que trata da proteo do conhecimento, o governo nacional reconhece e se compromete a promover e defender os direitos das comunidades locais para que essas se beneficiem coletivamente de suas tradies e a para que sejam compensadas pela sua constante tarefa de conservar e criar materiais biolgicos teis. Nesse contexto reconhece e se compromete a defender os direitos dessas comunidades de proteger seu conhecimento tradicional e coletivo, seja mediante direitos de propriedade intelectual ou mediante outros mecanismos.

A proposta de lei da Malsia (o Community Intellectual Rights Act), elaborada pela organizao Third World Network, parte dos seguintes conceitos bsicos: 1) as comunidades locais e indgenas so os custodians (ou stewards) legais e de forma perptua da inovao; 2) quaisquer direitos de monoplio exclusivo em relao inovao sero nulos; 3) o intercmbio entre as comunidades deve ser livre, desde que no tenha finalidade comercial; 4) qualquer pessoa, rgo, organizao ou empresa que pretenda fazer uso comercial da inovao ou parte dela deve: obter o consentimento escrito da comunidade local e pagar comunidade local, que a custodian ou steward de tal inovao, uma quantia que represente uma percentagem mnima sobre as vendas brutas de qualquer produto ou processo que incorpore tal inovao. Qualquer comunidade indgena pode optar pelo pagamento de uma compensao no-monetria, de acordo com seus usos, costumes e tradies; 5) fica proibida a concesso de exclusividade da utilizao comercial a uma pessoa ou empresa; 6) o pagamento deve ser feito a uma organizao registrada como representante da comunidade local, ou para o Estado, quando essa organizao no exista e at que seja registrada (ficando o Estado na condio de trustee). Em relao a uma inovao em que no seja possvel identificar o inovador, para o Estado, que dever aplicar o dinheiro na proteo, desenvolvimento, manuteno dos recursos genticos (desde que, quando seja possvel identificar o inovador, o pagamento seja feito a ele); 7) todo dinheiro ou o equivalente recebido pela comunidade local, ou pelo Estado como seu trustee, dever ser usado de acordo com a deciso a ser tomada pela comunidade, que pode incluir mas no est limitada proteo, desenvolvimento e manuteno de recurso gentico.

(No Direito brasileiro, est previsto no Estatuto das Sociedades Indgenas, ainda em tramitao no Congresso Nacional, que as comunidades indgenas tm personalidade jurdica, e, portanto, no h necessidade de registro da comunidade indgena para que adquira personalidade jurdica.)

Est prevista na proposta da Malsia tambm o registro de invenes. Segundo este, a comunidade poder fazer o registro de sua inovao, desde que a ausncia de registro no prejudique os seus direitos intelectuais coletivos, e o nus da prova cabe a quem contestar os direitos intelectuais indgenas. Tambm devem ser nomeadas, pelo Estado, e com o consentimento das comunidades, instituies tcnicas para identificar e caracterizar as inovaes indgenas.

Quando mais de uma comunidade detm o conhecimento, todas elas tero direitos e obrigaes iguais, e qualquer pagamento ser repartido igualmente. Se uma comunidade recebe qualquer remunerao por uma inovao comum, ela ficar como trustee da quantia que cabe outra. Para facilitar a prova do conhecimento tradicional, bastar uma declarao de membros da comunidade, ou qualquer outro meio de prova produzido de acordo com usos, costumes e tradies indgenas, e o nus da prova em contrrio dever caber pessoa ou empresa que esteja fazendo uso ilegal do conhecimento. Entre os requisitos para algum obter uma autorizao para coletar recursos genticos em reas indgenas deve estar, no contrato, a obrigao de respeitar os direitos intelectuais coletivos.

Finalmente, importante reiterar crtica geral ao projeto j formulada anteriormente pelo Instituto Socioambiental. Refere-se ao fato de o mesmo atribuir apenas ao Poder Pblico a incumbncia de "preservar a diversidade biolgica" do pas, e no a toda a sociedade. Todo o projeto parece estar imbudo desse esprito, que no prev mecanismos concretos de participao da cidadania no controle sobre o o e a utilizao dos recursos genticos nacionais.

Nesse particular, parece salutar a incluso, na proposta de lei elaborada pelo Grupo ad hoc de Biodiversidade da Colmbia, entre os seus princpios gerais:

1 artigo: A Nao exerce direitos soberanos e inalienveis sobre a diversidade biolgica e os recursos genticos existentes no territrio nacional; em consonncia com os princpios constitucionais, o exerccio dessa soberania compartilhado com a sociedade civil. Portanto, dever e direito de todos os cidados e do Estado proteger conjuntamente a diversidade tnica e cultural, o patrimnio natural da nao e a integridade do ambiente.

Prev ainda que Corresponde ao Estado prover os mecanismos que garantam uma participao cidad justa, equitativa e efetiva para a proteo de seus direitos e interesses coletivos e individuais naquelas decises que afetem o patrimnio gentico e cultural.

A lei brasileira deveria incorporar princpio semelhante, de parceria entre o Estado e a sociedade civil na defesa do patrimnio gentico e cultural do pas, prevendo mecanismos concretos para tanto: por exemplo, deve atribuir legitimidade no apenas s comunidades indgenas para que possam defender judicialmente o seu patrimnio gentico e cultural, mas tambm ao Ministrio Pblico Federal e s organizaes da sociedade civil, tal como ocorre na lei que regula a ao civil pblica (Lei n. 7.347/85), que atribui legitimidade no apenas ao Ministrio Pblico, mas tambm s associaes para promover a defesa do meio ambiente, do patrimnio histrico e cultural e do patrimnio pblico e social em geral. O importante que, quando haja benefcios econmicos, esses sejam atribudos s comunidades indgenas detentoras dos conhecimentos tradicionais, e que essas tenham prioridade nas iniciativas que sejam de seu interesse mais imediato.

O mesmo deve-se dar em relao s organizaes indgenas e aos membros das comunidades indgenas enquanto tais. Embora os direitos intelectuais das comunidades indgenas sejam coletivos, e no possa ser reivindicada a sua titularidade em nvel individual, todos os membros da comunidade, bem como suas organizaes, devem tomar iniciativas visando proteg-la. Afinal, essa justamente a principal caracterstica do direito. coletivo: o fato de qualquer titular poder tomar iniciativa para defend-lo, ainda que s beneficie o todo.

Juliana Santilli assessora jurdica do Instituto Socioambiental

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