Promotoras Legais Populares 643yq

Um projeto de cidadania
com sexo, raa/etnia, orientao sexual e classe social
Apresentao
Apresentamos aqui nosso trabalho: Promotoras Legais
Populares: Um Projeto de Cidadania com Sexo, Raa/Etnia, Orientao
Sexual e Classe Social.
fruto de um esforo conjunto do Instituto
Brasileiro de Advocacia Pblica - IBAP e da Unio de Mulheres
de So Paulo para desenvolver a cidadania e a igualdade de
direitos.
A neutralidade da justia algo abstrato,
incompatvel com a realidade econmica, social e poltica. As
relaes de poder refletem uma situao cuja hegemonia
androcntrica, branca, adulta, heterossexual e de grande concentrao
do capital. E tudo isso se encontra to acomodado no interior da
justia que se confunde com sua prpria atuao.
O o cidadania e suas conseqncias
prticas exigem a incorporao de novos conceitos de igualdade e
respeito onde as mulheres tenham tanta importncia quanto os homens no
seu valor humano, social, poltico e econmico.
O nome Promotoras Legais Populares, adotado em nosso
projeto e usado em diferentes pases, significa mulheres que trabalham
a favor dos segmentos populares com legitimidade e justia no combate
dirio discriminao. So aquelas que podem orientar, dar um
conselho e promoverem a funo instrumental do Direito na vida do dia
a dia das mulheres.
A proposta motora deste projeto so os cursos.
Outras aes fazem parte do trabalho: acompanhamento de casos e da
atuao prtica das promotoras legais populares, seminrios, debates
complementares e o fortalecimento da campanha contra a impunidade.
um projeto que traz no seu bojo traos dos ideais
de justia, democracia e dignidade, a defesa dos direitos humanos e a
construo de relaes igualitrias e justas. Tem possibilitado a
criao de novos espaos de unio e articulao que abrem caminhos
e rompem barreiras contra a discriminao e a opresso.
Dada sua importncia e a constante busca de
informaes a seu respeito que decidimos compartilhar com todas e
todos as experincias acumuladas nestes quatro anos de trabalho.
Como surgiu a idia do Projeto das Promotoras Legais
Populares?
Em maio de 1992, a Unio de Mulheres de So Paulo
participou de um seminrio sobre os direitos da mulher promovido pelo
CLADEM - Comit Latino Americano de Defesa dos Direitos da Mulher.
Foi nessa ocasio, que pela primeira vez ouvimos
falar dos cursos de "capacitao legal" das mulheres. Estes
cursos j vinham se desenvolvendo h pelo menos uma dcada em alguns
pases da Amrica Latina, como Peru, Argentina e Chile.
Gostamos da proposta. Isto porque ns militantes do
movimento de mulheres j tnhamos participado das lutas por conquistas
de leis, particularmente no processo constituinte. Chegava, ento, o
momento de promover o conhecimento das leis e dos mecanismos jurdicos
possveis de ar e viabilizar. Ouvindo os relatos de advogadas e
ativistas que istravam estes cursos, vimos ser possvel capacitar
as mulheres para a defesa dos seus direitos a partir do seu cotidiano e
da sua comunidade.
Conversamos, ento, com o Grupo THMIS (RS), que
tambm participou do Seminrio, para concretizar essa idia no
Brasil. Logo em seguida, as advogadas do THMIS comearam a
implantao deste trabalho em Porto Alegre. Neste mesmo ano de 92, foi
aprovada no 1o. Encontro Nacional de Entidades Populares
Contra a Violncia, a campanha "A Impunidade Cmplice da
Violncia". Levantamos a bandeira da impunidade por termos vrios
casos de crimes contra as mulheres onde os criminosos esto impunes. Em
vrias oportunidades, buscamos debater sobre os mecanismos jurdicos
para entender como funciona a justia. E pudemos compreender o quanto
ela est submetida a um esteretipo de vtima e ru (r) que
corresponde a uma ideologia patriarcal, onde os crimes contra a mulher
so banalizados e considerados menores. No prprio desenvolvimento da
campanha, ns , as ativistas, sentimos necessidade de conhecer os
mecanismos de funcionamento do judicirio e da segurana pblica e de
como acionar a aplicabilidade das leis e do Direito.
Em 1994, articulamos com o Centro de Estudos da
Procuradoria do Estado de So Paulo e o Grupo THMIS para viabilizar a
primeira experincia que se deu por meio de um seminrio denominado
"Introduo ao Curso de Promotoras Legais Populares" de 60
horas de durao. Nessa oportunidade, os(as) professores(as)
vinculados quele Centro de Estudos puderam trabalhar com 35
lideranas populares de entidades feministas e sindicatos.
Durante o segundo semestre de 94, formulamos ainda
junto com o Centro de Estudos da Procuradoria do Estado de SP, uma
proposta para que fosse realizado o primeiro curso de capacitao de
promotoras legais populares. Mas quando, em 1995, houve mudanas
polticas, com a posse do novo governo, no foi mais possvel
viabilizar o acordo com aquele Centro de Estudos.
Felizmente encontramos, de imediato, o pleno apoio do
Instituo Brasileiro de Advocacia Pblica que por sua vez
mobilizou o Movimento do Ministrio Pblico Democrtico e a Associao
dos Juzes Para a Democracia. Pudemos, ento realizar trs cursos
anuais e as demais atividades correlatas. Estamos, neste momento,
promovendo o 4 curso.
Nos dois primeiros, 50 mulheres se formaram
promotoras legais populares com aulas tericas aos sbados e estgios
e visitas s instituies durante a semana.
EDUCAR, EDUCANDO E SENDO EDUCADA(O)
O trabalho educativo parte da idia de que o
processo de desenvolvimento do curso deve consolidar e fortalecer os
grupos de mulheres autnomas ou de sindicatos, forjar uma opinio
pblica, traduzir em aes concretas os caminhos para que o movimento
de mulheres seja o protagonista de suas aes e da histria.
Visa tambm efetivar os direitos das mulheres ,
muitos deles j transformados em lei mas que no foram implantados.
A capacitao no s deve transmitir
conhecimentos tericos e prticos sobre as leis , o direito e o
aparato da justia como tambm desenvolver uma conscincia crtica
dos contedos reacionrios, classistas e patriarcais. Da a
necessidade de que o processo educacional se desenvolva de modo a
interferir nos conhecimentos e atitudes de todas e todos participantes,
sejam alunas, professoras e professores. preciso tambm garantir a
transmisso e a aquisio de conhecimentos incorporando nova
concepo das desigualdades de gnero e do Direito.
Objetivos de nosso trabalho
Os objetivos de nosso trabalho so os seguintes:
1 - Criar nas mulheres uma conscincia a respeito de
seus direitos como pessoas e como mulheres de modo a transform-las em
sujeitos de direito.
2 - Desenvolver uma conscincia crtica a respeito
da legislao existente e dos mecanismos disponveis para aplic-la
de maneira a combater o sexismo e o elitismo.
3 - Promover um processo de democratizao do
conhecimento jurdico e legal em particular o que pertinente
condio feminina e s relaes de gnero.
4 - Capacitar para o reconhecimento de direitos
juridicamente assegurados, situaes em que ocorram violaes e dos
mecanismos jurdicos de reparao.
5 - Criar condies para que as participantes
possam orientar outras mulheres em defesa de seus direitos.
6 - Estimular as participantes para que multipliquem
os conhecimentos conjuntamente produzidos, nos movimentos em que atuem.
7 -Possibilitar aos(as) educadores(as) que reflitam o
ensino do direito sob uma perspectiva de gnero e de uma educao
popular transformadora.
8 - Capacitar as participantes para que atuem na
promoo e defesa de seus direitos junto ao Executivo, propondo e
fiscalizando polticas pblicas voltadas para equidade de gnero e de
combate ao racismo.
O contedo abrange a organizao do Estado , da
Justia, introduo ao estudo do Direito, o conhecimento das normas e
polticas de direitos humanos, o sistema de proteo internacional,
direitos constitucionais, direitos reprodutivos, aborto e sade,
direito de famlia, trabalho, previdencirio, penal, discriminao
racial ( lei 8.081/90 ). Oferece ainda conhecimentos sobre a Conveno
de Belm do Par para prevenir , combater e erradicar a violncia
contra a mulher e uma reflexo sobre a Declarao e Programa de
Ao de Beijing e sua implementao via as polticas pblicas.
O processo educativo visa suscitar problemas onde
educadoras e educadores no so aquelas(es) que apenas educam mas que,
enquanto educam so educadas(os) por meio de dilogos e outras
tcnicas que permitem o crescimento de alunas e professoras(es).
A este contedo so acrescentados outros
temas conforme o interesse do grupo de alunas, como direitos do
consumidor (a), direitos da criana e do adolescente, direito terra,
direitos das(os) portadoras(es) do vrus HIV (AIDS).
A Metodologia
As aulas so ministradas por profissionais de
direito e em alguns temas acompanhados das reas da sade, social,
comunicao e dos movimentos feminista e popular.
Tm uma dinmica estimuladora para que todas as
participantes e professoras(es) construam atividades que favoream a
aquisio de conhecimentos das leis, do direito e das polticas e
servios pblicos e possam mudar suas atitudes frente s situaes
do cotidiano.
Para isso so usados recursos educacionais como
oficinas , apostilas, vdeos e debates.
Aps o curso, as participantes devero ter um
acompanhamento supervisionado pelos profissionais e atividades de
reciclagem para serem informadas das possveis mudanas nas leis ou
nos servios.
Avaliando e Incrementando
No primeiro curso, em 1995, o interesse dos
profissionais foi to grande que a cada aula apareciam muitos deles
para falar sobre o mesmo tema. Sem dvida, isto causou uma sobrecarga
ao grupo. Mas teve tambm seu lado positivo. Trouxe polmica e criou
um ambiente propcio para discusses acaloradas que favoreceram o
amadurecimento do projeto. No fim da primeira etapa foi feito um
encontro para avaliar publicamente a experincia onde participaram
outras entidades especialmente, o Themis e o Cfemea. Foram feitas
crticas que tiveram como resultado o aprimoramento do curso. Foram
colocadas as dificuldades de funcionar em horrio integral nos
sbados. As alunas sentiram falta de um tratamento dos assuntos de
maneira prtica que favorecessem mais diretamente na sua lida
cotidiana.
Nem todas e todos professoras(es) envolvidas (os) no
processo possuam uma viso crtica do Direito e alguns no davam a
nfase necessria s questes jurdicas relevantes dos direitos das
mulheres.
Muitos destes problemas apresentados foram resolvidos
no 2o. curso, neste ano de 96.
As principais modificaes foram as seguintes:
introduzir como primeira atividade do curso, um seminrio sobre
"Justia, Leis e Relaes de Gnero" para todos(as)
participantes. A organizao de cada aula terica est constituda
de quatro partes: reviso da matria anterior, exerccios de
reflexo e problematizao, uma oficina ou uma exposio sobre o
tema do dia e a avaliao.
Os estgios e visitas ocorrem de preferncia
durante o curso terico para que as dvidas possam ser dirimidas com
as coordenadoras no prprio desenvolvimento das atividades.
O que pensam os que participam ou participaram do
projeto?
As alunas e os/as professores/as preencheram ao final
de cada curso um questionrio de avaliao. Eis aqui uma sntese de
suas respostas.
As alunas:
Gostei muito. Me deu segurana e novas informaes de como
prosseguir na luta contra a impunidade. Recuperei minhas foras e
minha confiana no movimento e na sociedade.
- Bom porque ficamos informadas dos nossos direitos jurdicos e de
como acion-los para defender nossa cidadania.
- Formidvel porque pude conhecer a Constituio Federal e a
importncia que ela tem sobre nossos direitos e garantias.
- Me ajudou a entender e conhecer as leis, a criar uma nova
conscincia sobre os direitos das mulheres e conhecer e lidar com
pessoas da rea da justia.
- Importante porque nos deu uma noo de como agir nos momentos em
que nossos direitos esto sendo violados.
- timo porque oferece conhecimentos bsicos da cidadania e dos
lugares(rgos governamentais e no governamentais) certos para
defender nossos direitos.
- Estou usando os novos conhecimentos adquiridos no local do meu
trabalho e na faculdade onde estudo.
- Estou orientando as pessoas em reunies da comunidade, na creche
onde trabalho e com as mes que moram no mesmo prdio onde moro,
explicando sobre algumas leis e encaminhando para os servios.
- Estou orientando mulheres da 3a. idade num centro de
convivncia e colocando em prtica os conhecimentos adquiridos em
todas as oportunidades.
- Estou atendendo mulheres envolvidas em situao de violncia
domstica
- Estou orientando por telefone na entidade onde trabalho.
- Tenho notado que as pessoas que eu oriento , comeam a ver com um
olhar mais crtico sobre seus direitos.
- Todos os temas estudados foram importantes porque foram
apresentados de maneira ampla, diversificada e ao mesmo tempo foram
apresentados de forma interligados.
- Direito de Famlia foi o que mais me ajudou no meu trabalho
prtico.
- Direitos Humanos, Questo de Gnero e o Feminismo so os temas
que mais despertaram o meu interesse.
- Direitos Reprodutivos, a Histria dos Direitos das Mulheres so
os assuntos que me mostraram o quanto a humanidade ainda precisa
evoluir.
- Direito terra porque pela minha vivncia j pude perceber que
a maioria das pessoas tem problemas com a moradia ou com a
documentao legal de posse.
- As(os) professoras(es) se esforaram por ser simples e bem
prximas (os) de ns.
- Usaram uma linguagem vel , atuaram de forma crtica e se
mostraram bastante interessadas (os).
- Elas (e Eles) tambm aprenderam bastante conosco.
- Achei muito importante , porque alguns direitos que achvamos j
possuir, no sabamos como defend-los, como exigir que fossem
cumpridos, e aprendemos muitos outros que sequer conhecamos; isso
permite que no dia a dia possamos exercer nossa cidadania e ajudar
outras pessoas a serem cidads.
Os / as professores / as
A cada ano que participo tenho um ganho talvez maior do que eu
consiga dar s alunas tanto ao tomar ou retomar conhecimento de uma
situao, quanto pelo carinho com que sou tratado.
- o curso me proporcionou uma troca muito interessante. Ao falar do
Direito para leigos e tentar responder as suas perguntas,
descobrimos ou melhor aprendemos muito a respeito de como o
Direito, de fato, vivido e entendido. No curso deste ano, por
exemplo, eu pude entender como os Juizados de Pequenas Causas
Criminais podem se transformar num tapete para baixo do qual a
Justia vai varrer os casos de violncia domstica
- Poucas vezes desde o meu ingresso na carreira do Ministrio
Pblico, pude sentir-me til como nas ocasies em que participei
do curso. Poucas vezes aprendi tanto a respeito da face mais
concreta do Direito
DEPOIMENTOS
Maria de Ftima Miranda, 40 anos, nascida em
Gonzaga, no norte de Minas e moradora da Favela Boa Esperana, na
regio de Campo Limpo, foi uma das 29 mulheres que concluiu o 1o.
curso. Ela falou assim sobre o projeto: "O curso me esclareceu
muito e me fez conhecer pessoas que antes eu achava que era um bicho de
7 cabeas com juzes, promotores, procuradores e advogados. O
importante do curso aprender a ir ao lugar certo, seja na polcia ou
no judicirio, falar com a pessoa certa. Conhecer o que devem fazer
juzes, promotores, delegados. Saber requisitar o documento adequado
para cada situao. "
Maria Ceclia dos Santos, estagiria da Unio de
Mulheres de So Paulo e estudante de doutorado no Departamento de
Sociologia da Universidade da Califrnia em Berkeley, Estados Unidos
fez uma breve avaliao: "Considero-o extremamente importante
no s para a formao de "promotoras legais populares",
como tambm para a formao de promotores , juzes e procuradores. A
meu ver, o curso inovador por seu potencial de transformar a
sociedade e o Estado ao mesmo tempo. Transforma lideranas
comunitrias, facilita-lhes o o ao conhecimento do Direito e dos
profissionais que operam o Direito. Transforma igualmente tais
operadores do Direito ao coloc-los em contato direto com lideranas
que os foram a conhecer a falta de o justia por parte das
comunidades populares."
Marcos Ribeiro de Barros, procurador do Estado
de So Paulo e um dos professores do curso : "O curso, dirigido a
mulheres que exercem o papel de lideranas comunitrias, teve como
principal objetivo transmitir noes de direito em suas diversas
reas(famlia, trabalho, crime, consumidor, tributos, sindicalismo,
habitao etc.). Assim essas lideranas podem atuar com mais firmeza
em defesa de direitos junto ao Poder Judicirio e servios pblicos
correlatos. Outro objetivo do curso o de criar condies para que
as participantes possam disseminar os conhecimentos em suas respectivas
comunidades , orientando outras mulheres atravs de conversas informais
ou de cursos em sociedades de amigos de bairro e associaes. Se do
lado dos homens de gravata as leis e a linguagem jurdica so
instrumentos de manuteno de poder, do lado de quem visto to s
como jurisdicionado, assistido, contribuinte , consumidor, istrado
e outros rtulos impessoais, as leis , complexas e quase
ininteligveis, so bicho-papo, coisa de meter medo. Levar o direito
ao cidado, tornando-o simples como deve ser, nada mais do que fazer
com que o direito cumpra sua verdadeira funo: tornar a vida das
pessoas mais justa."
Zuleika Alambert a paraninfa do curso deste
ano, destacou: "Gostaria, no entanto, de acrescentar que , nossa
meta de feministas prev, de um lado, a curto prazo a defesa imediata
da mulher em todos os momentos em que seus direitos forem infligidos, em
que sua cidadania estiver em jogo, mas de outro lado, a longo prazo,
sonhamos em chegar a uma "Declarao dos Direitos Humanos" a
partir de uma perspectiva de gnero. Todas vocs sabem que, tanto os
instrumentos jurdicos nacionais como internacionais, geralmente,
conceituam o homem como paradigma da humanidade. E que quando falamos em
direitos humanos temos como referncia a parte masculina da
populao, acrescida dos seguintes adjetivos: ocidental, heterossexual
e de situao econmica independente. Sabemos que o paradigma
masculino envolve questes importantes como a hegemonia patriarcal na
linguagem oral, nas idias, nos valores, costumes e hbitos. E isto
significa para ns a invisibilidade nos documentos internacionais em
companhia de outros segmentos ou grupos sociais: indgenas, negras e
negros, meninas e meninos, homossexuais e lsbicas, as/os bissexuais,
as/os deficientes, as velhas e os velhos e assim por diante. Ora
considerando que lutamos para que um dia se chegue ao conceito de
humanidade como sntese de toda a populao mundial e de todos os
excludos, temos em nosso caso de levar luta pelos direitos humanos
nossa experincia de vida, incluindo nossos direitos especficos que
possumos pelo fato de sentir, pensar, lutar, viver e sobreviver como
mulher. Apoiada nestes princpios , vocs na qualidade de promotoras
legais populares, podero sentir melhor a profundidade da violao
dos direitos da mulher no cotidiano. Ainda hoje, neste final de sculo
e s portas do 3o. milnio, a guerra contra as mulheres
continua. Quotidianamente, as mulheres so desrespeitadas em suas
diferenas que, sendo fsicas, transformam-se por fora da
discriminao em diferenas sociais e culturais. E neste ponto que
vocs, minhas afilhadas, entram em ao: no apenas para denunciar
uma arbitrariedade cometida mas, tambm, para conscientizar as mulheres
sobre as leis que as beneficiam e encontrar os caminhos para defesa de
seus direitos."
DESDOBRAMENTOS
O projeto tem tido a vitalidade de criar novas
propostas a partir de seu prprio desenvolvimento. Uma delas a
assessoria jurdica e acompanhamento das promotoras legais populares.
Temos colhido, registrado e selecionado casos e situaes que merecem
um estudo especial dos profissionais de direito. O Instituto
Brasileiro de Advocacia Pblica e as demais entidades que atuam
junto neste projeto, tm oferecido seus prstimos para tratar dessa
assessoria. A atuao prtica das promotoras legais populares exige
conhecimentos de leis , locais, pessoas e tambm determinados
procedimentos que no so possveis de serem transmitidos apenas
durante as atividades do curso. E a forma que encontramos de suprir essa
falta recorrendo equipe de professoras(es) que felizmente se
colocaram disposio.
Outra ao que surgiu em decorrncia deste
trabalho a possibilidade de rever casos de impunidade aos assassinos
de mulheres de maneira a garantir um canal de protesto contra a
injustia. Escolhemos trs casos que esto minuciosamente estudados
por uma comisso coordenada pela Procuradora do Estado Flvia
Piovesan.
Com as mudanas radicais que vem sofrendo o Estado
brasileiro, que afetam diretamente as polticas e servios pblicos e
que implicam em conseqncias na rea da Justia, torna-se
necessrio um constante processo de reciclagem de conhecimentos.
Com tantas reformas istrativas, legislativas e
polticas anunciadas ou efetivadas por meio de mudanas da
Constituio ou por medidas provisrias, impe-se aos profissionais
de direito quanto s promotoras legais populares um estudo freqente
capaz de reciclar informaes e procedimentos. Da a importncia de
novos cursos, seminrios e debates sobre o direito e as polticas
pblicas.
Entidades de mulheres de Campinas/SP j implantaram
implantar este projeto em suas cidades, contando com a coordenao
tcnica do Instituto Brasileiro de Advocacia Pblica.
Articulaes esto se desenvolvendo para a implantao do curso
tambm em So Jos dos Campos/SP e Santos/SP.
Algumas experincias recentes...
1 - Visita ao Supremo Tribunal Federal
(Braslia/DF).
No dia 16 de outubro de 1996, 11 promotoras legais
populares e mais duas mulheres de Braslia, Josira e Clara, fizeram uma
visita ao Supremo Tribunal Federal e ao Cfemea ( Centro Feminista de
Estudos e Assessoria). A idia de visitar o Tribunal foi sugerida por
Marcos Ribeiro, procurador do Estado de So Paulo e um dos professores
do curso.
O Supremo Tribunal Federal um rgo do Poder
Judicirio com sede na Capital Federal e jurisdio em todo o
territrio nacional. Compe-se de onze ministros, "de notvel
saber jurdico e reputao ilibada". (art.101 da Constituio
Federal).
Sua competncia, dentre outras, de processar e
julgar a ao direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo
federal ou estadual, o habeas corpus e mandado de segurana.
Com essas informaes, as mulheres seguiram para
Braslia a fim de visitar este rgo. Ao chegar a Capital Federal,
tiveram uma recepo breve mais cheia de calor humano na casa de Maria
Leda, amiga de Josira, irm de Maria Helena, uma das promotoras legais
populares. L tomaram o banho e trocaram suas roupas. Almoaram e em
seguida chegaram ao Supremo Tribunal Federal. E l tomaram conhecimento
de que mulher no pode entrar l se tiver vestida com cala comprida.
Metade do grupo estava de cala comprida. Com a ajuda de Clara , uma
das anfitris, procuraram a direo istrativa que nada pde
fazer uma vez que tal ordem vinha de um regimento interno.
Falaram, ento, com o assessor do Presidente (
Ministro Seplveda Pertence) que ouviu os apelos e decidiu quebrar o
protocolo. Foi pela primeira vez, num espao de 18 anos que mulheres
trajando cala comprida entraram no plenrio de uma sesso daquele
rgo.
Ficaram por pouco tempo no plenrio devido ao
impacto causado pelo uso das camisetas das promotoras legais populares.
Os ministros se intimidaram com as camisetas j que os temas da pauta
j sugeriam protestos: desapropriao de terras para fazer a reforma
agrria e um mandado de segurana de iniciativa da UNE - Unio
Nacional dos Estudantes - contra a exigncia do "provo"
para aqueles que concluram determinados cursos.
No caso das promotoras legais populares foi
importante conhecer a fachada , o clima do plenrio, os ministros e
at mesmo o absurdo da manuteno de proibies to extemporneas
no regimento interno como a de no permitir a entrada de mulheres de
cala comprida. Tal fato despertou ainda mais a conscincia crtica
das mulheres que o viram como uma incapacidade daquele tribunal de
reconhecer a realidade e portanto julgar luz das contradies
sociais, econmicas e culturais de nossos dias, o que favorece a
excluso de raa/etnia, de gnero e de classe social.
As mulheres foram tambm ao CFemea onde foram
recebidas de maneira carinhosa por toda a equipe e de maneira especial
por Guacira, Marlene e Iris. Para aquelas 13 mulheres foi uma visita
inesquecvel. que reafirmou o seu engajamento no processo de reconhecer
e defender espaos e direitos.
2 - Centro Maria Miguel - um espao de reconstruo da identidade
ferida
Em meados de setembro do ano de 1996 foi criado o
Centro Maria Miguel de Atendimento Mulher por iniciativa da
Associao de Mulheres da Zona Leste e da Coordenao de Mulheres.
Localizado na Vila Jacu, em So Miguel Paulista, o centro tem como
objetivo atender as mulheres em situao de violncia e promover a
cidadania.
O centro recebeu este nome, Maria Miguel, para fazer
uma homenagem a uma militante da regio de 78 anos de idade, negra,
valente e combativa que sempre lutou para conseguir justia, esperana
e "tudo de bom que o povo merece" como ela prpria afirma.
Mas o que queremos resgatar aqui de como nasceu a
idia de criar este centro. Nasceu durante a realizao do 1 e 2
cursos de promotoras legais populares. Enquanto discutiam com os
profissionais de direito, elas tomaram conscincia de que era possvel
elas prprias fazerem um atendimento s mulheres. Onoris e Carime, que
tambm se tornaram promotoras legais populares, disseram que o curso
deu o "impulso necessrio para desenvolver a idia de fazer algo
concreto."
A parceria com os profissionais da rea da justia
e do direito tornou-se vivel quando, durante o curso, foram
apresentados os instrumentos jurdicos para defender a cidadania das
mulheres.
Essa iniciativa torna-se ainda mais valiosa pelo fato
de ser na zona leste. uma regio grande com mulheres muito pobres ou
de baixo poder aquisitivo. tambm uma regio carente de servios
que atendam populao. So dois milhes e meio de habitantes que
vivem em So Miguel Paulista, Itaim , Ermelino Matarazzo e Guaianazes.
No Itaim Paulista , por exemplo, no existe sequer um Frum. A PAJ -
Procuradoria de Assistncia Judiciria, de So Miguel s atende as
pessoas que j foram triadas na Liberdade (bairro localizado no centro
de So Paulo e est a uma distncia de mais ou menos 30 km). Essa
situao constrangedora. Pior ainda para as mulheres. Os
agressores, via de regra, continuam morando sob o mesmo teto. E mesmo
quando as famlias so chefiadas pelas mulheres, o que no caso da Zona
Leste, representa 30% das famlias, a violncia sexual e domstica
praticada por homens, na grande maioria das vezes.
A atuao das promotoras legais populares tem sido
de triar e orientar as mulheres para defender sua cidadania. Elas
incentivam as mulheres em situao de violncia a ir a luta em busca
dos direitos e propiciam condies para que elas recuperem sua
estrutura socio-emocional sob a tica de gnero.
Este trabalho est sendo possvel graas a um
convnio da Procuradoria Geral do Estado de So Paulo com a
Associao de Mulheres da Zona Leste que efetiva o ree de uma
verba mensal.
POR QUE INSISTIR NA QUESTO DE GNERO?
Quando falamos de gnero, queremos dizer que os
homens e as mulheres tm sido impostos papis culturais e econmicos
que os colocam em desigualdade nas relaes entre ambos e na
participao social e poltica.
Um conjunto de prticas, normas e valores morais e
ideolgicos, historicamente elaborados, destinados a moldar os
comportamentos masculino e feminino tm tido como resultado a
discriminao das mulheres. Enquanto aos homens, so oferecidas
condies para desenvolver tarefas de prestigio, criatividade e
revestidas de poder, s mulheres so conferidas tarefas pouco
reconhecidas socialmente como as de donas de casa, me, esposa. E mesmo
nas atividades extra-domsticas, acabam exercendo, na maioria das
vezes, profisses que nada mais so do que a extenso de suas
atividades domsticas: professora, enfermeira, secretria, etc.
Essa discriminao construda ao longo de sculos
repercute em todas as reas da vida humana: nas cincias, nas artes,
no trabalho, na famlia, nas instituies do Estado sejam o
legislativo, o executivo e o judicirio.
Tem sido reforada pelos preconceitos e
esteretipos contra as mulheres que se culpabilizam sempre, mesmo
quando no esto formalmente sendo julgadas.
O direito e a justia, no caso das mulheres, via de
regra, so freqentemente violados. quando os assassinos de mulheres
so julgados comum ouvir-se comentrios a respeito do comportamento
sexual da vtima. Ainda existe uma forte idia de que a honra de um
homem estar gravemente ferida e ameaada por um suposto adultrio
feminino.
No Relatrio da America's Watch, "A Injustia
Criminal x A violncia Contra a Mulher no Brasil", pgina 21,
um advogado criminal, entrevistado em abril de 1991, diz que "se a
lei aceita a legtima defesa da integridade fsica, pode-se entender
tambm que o homem tem o direito de defender sua vida interior, embora
isso no esteja legalmente previsto... Mesmo assim, se algum rouba a
sua razo de viver (honra), isso vale mais do que a prpria
vida." uma maneira de pensar que vem sendo construda h
sculos e que se manifesta ainda na justia durante o julgamento de
agressores e assassinos de mulheres.
No Brasil, a lei colonial, em 1822, autorizava o
marido a matar a mulher acusada de adultrio. O mesmo no era
permitido para a mulher trada. Ainda hoje o adultrio considerado
crime no Cdigo Penal. E, nos dias atuais, milhares de mulheres so
assassinadas anualmente sob a acusao de adultrio.
As mulheres eram consideradas incapazes no primeiro
Cdigo Civil, em 1914. Em 1932, conseguiram o direito de voto. Em 1962,
conquistaram o direito de trabalhar fora sem permisso do marido. A
Constituio Federal de 1988 consagrou, finalmente, a igualdade de
direitos, embora ainda no tenham sido reformados os Cdigos Civil e
Penal.
Implementar polticas pblicas que viabilizem a
igualdade de direitos um assunto urgente. Impe-se mobilizar os
diferentes setores do Estado e da sociedade para combater as
desigualdades de gnero.
Se, por um lado, temos criado um espao para que as
mulheres em a conhecer o direito, as leis e a justia - ainda que
muitos considerem estes assuntos de alcance apenas para especialistas -
por outro lado, buscamos um dilogo com os profissionais de direito.
Com isso queremos que as mulheres possam ser ouvidas
em suas queixas onde a violncia, a impunidade e o autoritarismo marcam
seu cotidiano.
A proposta transformar essa situao em
relaes de dignidade, justia e igualdade.
Entidades que participam do Projeto Promotoras Legais
Populares
Coordenao Geral:
Instituto Brasileiro de Advocacia Pblica
Unio de Mulheres de So Paulo
Apoio:
- AMZOL Associao de Mulheres da Zona Leste
- Associao de Moradores do Jardim Boa Esperana
- Associao Juizes para a Democracia
- Associao de Moradores do Parque Veredas
- Casa de Cultura da Mulher Negra
- CECF/SP Conselho Estadual da Condio Feminina
- CLADEM Comit Latino-Americano dos Direitos da Mulher
- Central de Movimentos Populares
- Geleds Instituto da Mulher Negra
- Movimento do Ministrio Pblico Democrtico
- Movimento Nacional dos Direitos Humanos
- Rede Nacional Feminista Contra a Violncia Sexual Domstica
e Racial
- Servio Mulher Marginalizada
- SINDSEP - Sindicato dos Servidores Pblicos do Municpio de
So Paulo
- Sindicato dos Metrovirios de So Paulo
- Sindicato dos Qumicos de So Paulo
- SOF Sempre Viva Organizao Feminista
- SOS Ao Mulher de Campinas
- SOS Mulher de So Jos dos Campos
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