No
porque o diga Bin Laden
6h222m
Gema
Martn Muoz
Professora
de Sociologia do Mundo rabe e Islmico
da
Universidade Autnoma de Madri.
Artigo
publicado no Correio Braziliense de 10 de outubro de 2001
No
domingo tarde comearam os ataques contra o Afeganisto e,
horas mais tarde, a rede de televiso por satlite Al-jazira
divulgava uma mensagem de Osama Bin Laden, cuja anlise no
devemos esconder pelo fato de vir de um personagem detestado por
sua inaceitvel ao terrorista. Como se tem dito sem parar
esses dias, a luta contra o terrorismo muito complexa e, acima
de tudo, muito difcil. No existe um remdio evidente, mas,
junto s estratgias policiais e de fora, deve-se tambm
lutar contra suas causas, e ai que a poltica entra
decididamente em jogo. E no Oriente Mdio se acumulou um grande nmero
de problemas, conflitos e lamentveis situaes humanas cujas
razes so profundamente polticas. Nenhum movimento
clandestino pode operar sem apoio popular e sem ajuda externa
para prover recrutamentos, propaganda e apoio econmico. Alm
disso, os movimentos buscam ganhar popularidade e cometem seus
atentados no momento em que cr que existam condies para
conseguir adeses sua causa. Esse tambm o caso do
turbulento e obscuro grupo de Bin Laden. A prova est no contedo
completamente poltico de sua mensagem.
Bin
Laden fez uma declarao que, longe de representar simplesmente
o louco de Al que quase todos esperavam no mundo ocidental
-
reduzindo-se
a maldies culturais, fanatismo irracional e menes
ultra-religiosas -,
colocou
o dedo na chaga dos conflitos e tragdias humanas que assolam a
regio e que esto diariamente presentes no sentimento das
populaes muulmanas.
No
porque o diz em Laden, deixa de ser realidade que, desde a partilha
colonial aps a Primeira Guerra Mundial, o Oriente Mdio vive
uma desgraa atrs da outra, em boa parte consequncia da
interveno e dos interesses externos: a diviso artificial
de Estados a servio das potncias estrangeiras, a manipulao,
por parte dessas potncias, das minorias crists orientais,
gerando conflitos religiosos, a instalao de elites governantes
a servio das mesmas potncias para desgraa de suas populaes,
a criao de Israel e o abandono dos direitos palestinos, a
derrocada de governos nacionalistas a favor de ditaduras (como fez
a istrao Eisenhower em 1953 no Ir contra Mosaddeq a
favor do posterior regime do X), o apoio e consolidao de strapas
como Saddam Hussein, que, antes de ser, em 1991, o Hitler do
Oriente Mdio, foi durante uma dcada o homem do Ocidente frente
ao Ir de Khomeini (como ocorreu com o prprio Bin Laden no
modelo afego)...
Tampouco
porque o diga Bin Laden, deixa de ser uma realidade que a dependncia
da Arbia Saudita por proteo militar externa a tenha levado
a cair em contradio ao permitir que se instalem bases
norte-americanas em um territrio que os prprios sauditas
transformaram intensamente em smbolo sagrado do islamismo, se
bem que a servio de sua prpria legitimidade para manter um
regime desptico e tribal que no tem capacidade para levantar a
voz e defender as injustias que castigam as populaes do
mundo muulmano, a que pretende representar com exclusividade.
E
no porque o diga Bin Laden, deixa de ser certo que existe um silncio
culpvel diante da morte e sofrimento das crianas iraquianas
submetidas a um embargo injusto e letal, cujos objetivos polticos
de derrubada do regime iraquiano foram comprovadamente ineficazes,
e que existe uma inaceitvel insensibilidade diante da violncia
diria que sofrem os palestinos porque o apoio incondicional dos
EUA a Israel prevaleceu sobre o direito internacional e o
sofrimento humano.
A poltica
norte-americana no levou em conta o ser humano nessa parte do
mundo (e no s ali), e Bin Laden faz do acmulo histrico de
sofrimento e humilhao que padecem as populaes muulmanas
o principal elemento de mobilizao a seu favor.
A
manipulao e o oportunismo de Bin Laden sobre esse sofrimento
em beneficio de sua falsa causa no
o tomam
irreal. Existe e a raiz do problema, e, enquanto no se
resolverem esses problemas com uma mudana da poltica
internacional nessa regio, no poderemos lutar verdadeiramente
contra o terrorismo que representa esse personagem. Essa poltica
internacional principalmente liderada pelos LUA, dai que, na
declarao de Bin Laden, seja este o objetivo substancial de
suas ameaas e no o mundo ocidental em geral. E no se odeia
os EUA por sua cultura, e sim por sua poltica externa, e isso
algo que tambm fica claro na mensagem. No se trata de uma luta
entre civilizaes e culturas, o contedo basicamente poltico
da declarao de Bin Laden mostra isso amplamente, porque, se
considerasse que essa era a chave para mobilizar o mundo muulmano
a seu favor, no haveria dvida de que recorreria a ele com o
mesmo oportunismo. Isso de grande importncia para todos
aqueles que, tambm de maneira oportunista, querem reduzir a
complexidade do que est acontecendo a uma luta contra os valores
ocidentais, para no ter que enfrentar a soluo poltica
dos problemas. Portanto, se querem acabar com os Bin Laden, alm
de persegui-los e julg-los em tribunais internacionais por seus
crimes, os LUA e seus aliados tero de modificar sua poltica no
Oriente Mdio, e isso significa muito mais que s acrescentar em
cada discurso que no se trata de uma guerra contra o islamismo e
o mundo muulmano, muito mais que limitar-se a gerar mais dio
com escaladas militares que produzem mais sofrimento humano, como
o caso da populao afeg atualmente (e tampouco cair no
cinismo de primeiro bombardear para depois jogar comida e
medicamentos). Da humilhao e dor certo que Bin Laden tambm
tirar proveito.
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