Em consequncia das
gravssimas desigualdades econmicas e sociais que
caracterizam o amplssimo hiato, quase sem rupturas faz
sculos, entre as classes dominantes e a maioria da populao,
hoje no Brasil est vigente um regime de apartheid dos pobres.
Este regime quase no necessita de leis porque est firmemente
consolidado na prtica de uma sociedade hierarquizada que se
manifesta por uma cultura autoritria sui generis,
dissimulada por uma ideologia de conciliao. Mas alguns
grupos mais do que outros nesses contingentes esto submetidos
discriminao e violncia ilegal, como os negros e as
mulheres, alm das crianas. 2e5t1n
justamente nesse contexto
que a proposta de introduo da pena de morte na legislao
penal brasileira deve ser avaliada: o estado de criminalidade
e da violncia no Brasil; quem so as vtimas da violncia no
Brasil; quais os remdios judiciais disponveis. A
justificativa simplista apresentada pelos defensores da pena
de morte, que encontra largo respaldo por parte da populao
que a pena de morte seria um instrumento vlido para lutar
contra a criminalidade e a violncia ilegal. Ao contrrio
dessas expectativas, como aqui veremos, a pena de morte, sem
solucionar nenhum dos problemas que a populao quer ver
resolvidos, contribuiria para agravar ainda o arbtrio contra
a populao pobre e sua insegurana.
Criminalidade e
violncia 6b1u4l
Para entendermos a violncia
que se abate sobre esses contingentes especficos da
populao, devemos lembrar que o Brasil tem uma das mais altas
taxas de homicdios do mundo. Toda vez que se discute a pena
de morte ou a violncia, essa manifestao da violncia ganha
relevo. Mas preciso ir alm dos clichs sobre a
criminalidade violenta e examinar com mais preciso o perfil
dos criminosos e das vtimas.
Se forem levados em conta os
estudos sobre a criminalidade em algumas metrpoles
brasileiras, como Belo Horizonte, Rio de Janeiro e So Paulo –
na falta de dados oficiais e confiveis para a totalidade do
pas – possvel constatar que as percepes da populao em
relao ao aumento da criminalidade violenta de certa maneira
parecem estar prximas dos fatos. Com efeito, a chamada
“criminalidade urbana e organizada” naquelas trs cidades, tem
crescido se forem considerados os ndices e trfico de drogas.
A participao dos crimes violentos (assaltos, homicdios
dolosos, estrupos, latrocnios, sequestros) na cidade de So
Paulo, por exemplo, cresceu de 20% em 1981 para 30% em 1987.
No entanto, esse crescimento menor do que o aumento
demogrfico da populao.
Os autores desses delitos so
recrutados de preferncia entre grupos de trabalhadores
urbanos de baixos salrios. Quanto carreira da
delinquncia,
os dados disponveis mostram uma larga contribuio dos crimes
contra o patrimnio. Desde 1983, os roubos aram a
representar na cidade de So Paulo cerca de 50% do total de
ocorrncias. Enfim, o perfil da populao delinquente nas
grandes cidades poderia ser descrito aproximadamente como
constitudo de cidados do sexo masculino, solteiros, com
baixo grau de instruo, jovens, com alguma ocupao
declarada. Trata-se de um perfil muito prximo do perfil das
vtimas em potencial: a maioria das vtimas recrutada em
grupos idnticos (sobretudo nos casos de homicdios dolosos,
de modo geral as ocorrncias envolvem pessoas conhecidas ou
que mantinham algum tipo de relacionamento). Esses grupos
esto localizados nos contingentes da populao de mais baixa
renda: as principais vtimas da violncia so exatamente os
alvos preferenciais do arbtrio e da discriminao. No
estamos dizendo que os pobres so as classes criminosas, mas
que o sistema repressivo e judicial criminaliza
preferencialmente os pobres e que as vtimas dos crimes
violentos – ao contrrio das imagens das classes dominantes e
mdias sob cerco do crime – so majoritariamente pobres. Essa
populao pobre, de mais de cem milhes de habitantes, em
consequncia da violncia e do arbtrio est relegada a um
virtual “regime de exceo” onde a segurana e as garantias
constitucionais inexistem.
Discriminao e
violncia: negros, mulheres e crianas j81a
Alguns contingentes da
populao, como os dados da criminalidade indicam, mais do que
outros, so diretamente afetados pela violncia. Os mais
econmicos e socialmente discriminados so os mais
vitimizados. Entre esses grupos esto os negros. O mito da
democracia racial ainda sobrevive no Brasil. Mas todos os
indicadores sociais e econmicos – trabalho, educao,
habitao, renda – demonstram que a populao negra e mestia,
cem anos aps a abolio da escravido, enfrenta as mesmas
dificuldades da segregao racial. Os casos de discriminao
dos negros no cotidiano continuam a ser frequentes, apesar da
criminalizao do racismo na Constituio de 1988. Todos os
governos republicanos se omitiram e foram incapazes de colocar
em prtica polticas afirmativas contra a marginalidade e a
discriminao. O sistema jurdico brasileiro, apesar de no
ter consagrado o apartheid, nunca consagrou para os negros o
princpio da no-discriminao. E essa ausncia de garantia se
faz sentir no funcionamento da justia em relao aos prprios
negros – tanto como todo preferencial de represso como na
falta de proteo legal. Alm das prticas discriminatrias
dos aparelhos repressivos do Estado, os negros e pardos so
agredidos pela polcia em porcentagens superiores sua
participao na populao.
H tambm uma grande
discrepncia entre a participao da mulher na populao e sua
participao na economia. As mulheres brasileiras constituem
50% da populao, mas apenas 35,6% delas esto empregadas,
recebendo remunerao em mdia inferior remunerao dos
homens nas mesmas funes. Uma grande proporo das mulheres
empregadas no tem seu trabalho legalizado: apenas 44,9% tm
carteira assinada. No que diz respeito violncia, as
estatsticas indicam que 70% dos casos de violncia contra
mulheres ocorrem dentro de casa e em muitos desses casos o
agressor o marido ou o amante. Muitos homens que cometem
crimes ionais no so processados; apesar das estatsticas
nacionais de homicdios no inclurem informaes por gnero,
as investigaes disponveis indicam que o assassinato de
esposas comum.
Hoje no Brasil h mais de 58
milhes de crianas e adolescentes com idade de at dezoito
anos, ou seja, 43% da populao. H fatores especificamente
sociais e econmicos a agravam as condies de existncia
dessas crianas e adolescentes: a evaso escolar, a
maternidade precose, a crise de habitao nas grandes cidades.
Grandes contingentes dos chamados “meninos de rua” vivem
literalmente nas ruas, sem lar, sem famlia, sem pais, sem
escolas. Essas crianas e jovens am a viver de pequenos
trabalhos informais e tendem a ser enquadrados por bandos
criminais. Sua enorme fragilidade os torna ao mesmo tempo
disponvel para o crime e alvos fceis para a represso, legal
ou ilegal. O fracasso dos sistemas de internao para crianas
carentes e de instituies para infratores contribui para
agravar o problema.
Durante os ltimos dois anos a
questo dos assassinatos de crianas e adolescentes ganhou
grande visibilidade. Uma pesquisa do Ncleo de Estudos da
Violncia, do Ibase e do Movimento Nacional de Meninos e
Meninas de Rua indicou que em 1989, 457 crianas e
adolescentes foram assassinados em So Paulo, Rio de Janeiro e
Recife. A metade dessas mortes teria sido de autoria de
esquadres da morte e a maioria das vtimas era negra e do
sexo masculino. Em So Paulo, entre setembro de 1990 e agosto
de 1991, segundo o mesmo Ncleo, foram registrados pela
imprensa 171 assassinatos. De janeiro a maio, uma criana ou
jovem foi assassinado a cada dois dias.
Vtimas seletivas da
violncia no campo e na cidade 2i62n
No h dvida que muitos
homicdios podem ser explicados pelos altos nveis de
criminalidade comum, pela violncia que organiza as relaes
pessoais na sociedade brasileira, pelos crimes ionais ou
pelos altssimos nveis de mortes no trnsito (mais de
cinquenta mil em 1990). Mas um expressivo nmero de homicdios
resultado de aes sistemticas de grupos organizados
(contra grupos preferenciais), que at h pouco tiveram
garantida a impunidade para suas aes. Desde 1988 so
inmeros os registros de assassinatos e massacres de
trabalhadores rurais em reas de conflito rural como a
Amaznia, o sul do Par, e a Bahia, visando a expulso de
posseiros, sem que na maior parte dos casos tenham havido
aes judiciais. Esses homicdios seletivos tambm so
praticados contra advogados de trabalhadores rurais,
sacerdotes e religiosos, assessores que trabalham em apoio a
sindicatos e associaes rurais. Nesses casos o aparelho
policial muito lento e raramente consegue prender os
criminosos. Entre os 1586 assassinatos de trabalhadores
rurais, ndios, advogados, religiosos, sacerdotes e outros
profissionais ligados a conflitos de terra entre 1964 e 1989,
foram abertos somente dezessete processos (nove absolvies e
oito condenaes).
Na periferia das grandes
cidades, milhares de brasileiros pobres e miserveis, adultos,
crianas e adolescentes, so sistematicamente vtimas de
assassinatos e massacres. Muitas dessas mortes tm como
pretexto limpar as
comunidades de delinquentes. Bandos criminosos matam antigos
membros como castigo ou executam rivais. Ao lado desses fatos,
h uma prtica rotineira de execues que articula vrios
elementos dessas mortes: so os linchamentos. O motivo
aparente o desespero da populao, em face da ineficincia
da justia. Na realidade, sob a espontaneidade dos
linchamentos h uma estrutura dissimulada onde sempre atuam
figuras de autoridade – um fazendeiro ou seu preposto,
comerciantes, funcionrios pblicos, policiais – que de certa
maneira organizam a multido para invadir delegacias de
polcia ou prises.
Em seu conjunto essas mortes
tm um sentido de “pedagogia do medo” que procura enquadrar e
submeter a populao pelo terror. Para alcanar esse objetivo
h uma cumplicidade efetiva entre os cidados particulares e
funcionrios do Estado, policiais militares ou civis. Entre
esses investigadores particulares esto os grandes
proprietrios, seus empregados, os grupos de extermnio, os
esquadres da morte, os justiceiros. Na cidade sua atuao
frequentemente tem grande legitimidade nas comunidades pobres
e at mesmo nas classes mdias, que vm com grande tolerncia
os assassinatos de criminosos ou suspeitos.
Em menos de uma dcada os
conflitos entre a polcia militar e os civis (supostamente
delinquentes) na cidade de So Paulo provocaram a morte de
3.563 civis e 359 policiais. Durante o ano de 1992, policiais
militares em So Paulo mataram 47 cidados, a taxa mais alta
de morte sem conflitos com a polcia entre todos os pases com
organizao democrtica. Apesar desses nmeros, os principais
contingentes atingidos demonstram pouca capacidade de protesto
contra essas mortes, que se caracterizam, em sua maioria, como
execues extralegais toleradas pelo poder pblico.
reas de terror e
pena de morte 5x531d
O sistema democrtico, em uma
sociedade com tradies culturais to autoritrias, no
elimina automaticamente as interaes violentas na sociedade,
nem as prticas ilegais dos aparelhos estatais. Especialmente
porque esses aparelhos no so estruturas neutras, mas
correspondem ilegalidade das prticas generalizadas numa
sociedade desigual e hierarquizada onde a regra o arbtrio.
Em todos os estados do Brasil a polcia civil emprega a
tortura na investigao dos crimes contra a propriedade: todos
os suspeitos pobres que no disponham de recursos para um
arranjo am sistematicamente pelo pau-de-arara, o
afogamento e os choques eltricos – apesar de a tortura ter
sido criminalizada na Constituio de 1988. Ainda que a
democracia seja a forma de governo, continuam implantadas
“reas de terror”, mantidas e reproduzidas contra grupos
especficos de cidados.
Diante desse quadro de
originalidade e violncia, a proposta de introduo da pena de
morte um instrumento a mais para a manuteno dessas “reas
de terror” em relao aos grandes contingentes da populao
sem meios econmicos, sem o educao, cultura e, numa
palavra, desprovidos de poder. Nesse quadro deve ser situada
toda a argumentao contra a pena de morte, assumindo sua
introduo o carter de perversa inutilidade para controlar o
crime.
A pena de morte no mais
eficiente em dissuadir a prtica de crimes violentos do que as
longas penas. Na verdade, nos Estados Unidos, os estados que
adotam a pena de morte tm quase o dobro das taxas de
homicdios daqueles que no a adotam. No Brasil, o grande
nmero de execues extralegais de criminosos e suspeitos no
tem tido nenhum efeito sobre a criminalidade. Nada indica que
a instaurao da pena de morte possa diminuir aqui a taxa de
criminalidade. Mesmo que os dados estatsticos quanto
relao entre pena de morte e criminalidade sejam limitados,
est comprovado o fato de que a presena da pena de morte tem
um efeito de brutalizao nas relaes sociais, contribuindo
para que crimes violentos como o homicdio sejam estimulados
ao invs de evitados. Essa brutalizao reforaria a
desumanizao que j caracteriza as relaes da sociedade
brasileira com os criminosos e suspeitos, vistos como bestas
selvagens a serem abatidas, ao arrepio de qualquer provimento
legal. A pena de morte no viria substituir mas subsidiar
essas prticas. Numa sociedade to desigual como a brasileira,
em termos de renda e de raa, onde a populao negra e pobre
percebida como parte das “classes perigosas” capazes de
cometer crimes, os negros e os pobres, alm das dramticas
limitaes do judicirio na maioria do pas (especialmente
naqueles estados do Norte e Nordeste onde o arbtrio maior),
os discriminados tero maior probabilidade de serem
executados, inocentes ou culpados.
Diante dessas extraordinrias
carncias da sociedade brasileira e do altssimo nvel de
violncia endmica, sistmica, a existncia da pena de morte
desvia recursos que poderiam beneficiar diretamente a
populao (por exemplo, em polticas de controle do crime,
como aumento da fora policial, tratamento de consumidores de
drogas e de doentes mentais) e salvar vidas. Os processos de
pena de morte so muito dispendiosos, tornando mais cara pena
de morte, mais cara at mesmo que a priso
perptua.
Enfim, tendo em conta o estado
de violncia no Brasil, alm de no contribuir para diminuir a
insegurana, a pena de morte iria agravar a situao. E,
contraditoriamente, daqueles contingentes da populao que
ainda continuam demonstrando apoio proposta sairo aqueles
que sero atingidos pelo cadafalso, cadeira eltrica, gs ou
injeo de veneno: os sem poder no Brasil. Esse paradoxal
apoio a ltima manifestao da extraordinria longevidade da
cultura autoritria no Brasil, que faz com que os torturados
subscrevam as propostas de seus prprios torturadores, como os
escravos que beijavam respeitosamente as mos de seus senhores
(e algozes).
Para que essa doce submisso
comeasse a ser rompida, os senhores congressistas,
representantes dos povo, dos torturados, dos assassinados,
deveriam sem compelidos, pela fora dos argumentos aqui
apresentados, a rechaarem de vez esse instrumento de terror,
a pena de morte, recusando a proposta demaggica de plebiscito
sobre a pena de morte. Para evitar que o Brasil incorra no
vexame de denunciar o Pacto de San Jos da Costa Rica, a
Conveno Americana de Direitos Humanos, ratificada pelo
Congresso Nacional em setembro de 1992, que impede a
introduo da pena de morte. Se quiserem proteger de fato seus
eleitores pobres, lutar contra a violncia, aprofundar a
democracia e fortalecer o estado de direito.
*
As idias desenvolvidas neste artigo se fundam em reflexes
que venho desenvolvendo no ltimo ano, apresentadas em um
texto em vias de publicao “Democracia, Direitos e
Desenvolvimento do Brasil”, apresentado no Seminrio
Latinoamericano Derechos Humanos, Democracia, Desarollo
Economico y Social, Santiago do Chile, 10-13/12/1991,
organizado pelo Centro de Direitos Humanos da ONU, com o
governo do Chile. Quanto aos dados sobre criminalidade
violenta, devo a Srgio Adorno, “A Criminalidade Urbana
Violenta no Brasil. O Ponto de Vista dos Cientistas Sociais”,
Segunda Conferncia sobre a Segurana, as Drogas e a Preveno
da Criminalidade no Meio Urbano, Grupo Europeu da Pesquisa
sobre as Normatividades, GERN, Paris, 30-31/05/1991; e aos
dados fornecidos por Srgio Adorno e Myriam Mesquita, do
Ncleo de Estudos da Violncia, USP, aos quais sou muito
grato.