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PENA DE MORTE E VIOLNCIA c121v

Paulo Srgio Pinheiro 1v6g6l

Em consequncia das gravssimas desigualdades econmicas e sociais que caracterizam o amplssimo hiato, quase sem rupturas faz sculos, entre as classes dominantes e a maioria da populao, hoje no Brasil est vigente um regime de apartheid dos pobres. Este regime quase no necessita de leis porque est firmemente consolidado na prtica de uma sociedade hierarquizada que se manifesta por uma cultura autoritria sui generis, dissimulada por uma ideologia de conciliao. Mas alguns grupos mais do que outros nesses contingentes esto submetidos discriminao e violncia ilegal, como os negros e as mulheres, alm das crianas. 2e5t1n

justamente nesse contexto que a proposta de introduo da pena de morte na legislao penal brasileira deve ser avaliada: o estado de criminalidade e da violncia no Brasil; quem so as vtimas da violncia no Brasil; quais os remdios judiciais disponveis. A justificativa simplista apresentada pelos defensores da pena de morte, que encontra largo respaldo por parte da populao que a pena de morte seria um instrumento vlido para lutar contra a criminalidade e a violncia ilegal. Ao contrrio dessas expectativas, como aqui veremos, a pena de morte, sem solucionar nenhum dos problemas que a populao quer ver resolvidos, contribuiria para agravar ainda o arbtrio contra a populao pobre e sua insegurana.

Criminalidade e violncia 6b1u4l

Para entendermos a violncia que se abate sobre esses contingentes especficos da populao, devemos lembrar que o Brasil tem uma das mais altas taxas de homicdios do mundo. Toda vez que se discute a pena de morte ou a violncia, essa manifestao da violncia ganha relevo. Mas preciso ir alm dos clichs sobre a criminalidade violenta e examinar com mais preciso o perfil dos criminosos e das vtimas.

Se forem levados em conta os estudos sobre a criminalidade em algumas metrpoles brasileiras, como Belo Horizonte, Rio de Janeiro e So Paulo – na falta de dados oficiais e confiveis para a totalidade do pas – possvel constatar que as percepes da populao em relao ao aumento da criminalidade violenta de certa maneira parecem estar prximas dos fatos. Com efeito, a chamada “criminalidade urbana e organizada” naquelas trs cidades, tem crescido se forem considerados os ndices e trfico de drogas. A participao dos crimes violentos (assaltos, homicdios dolosos, estrupos, latrocnios, sequestros) na cidade de So Paulo, por exemplo, cresceu de 20% em 1981 para 30% em 1987. No entanto, esse crescimento menor do que o aumento demogrfico da populao.

Os autores desses delitos so recrutados de preferncia entre grupos de trabalhadores urbanos de baixos salrios. Quanto carreira da delinquncia, os dados disponveis mostram uma larga contribuio dos crimes contra o patrimnio. Desde 1983, os roubos aram a representar na cidade de So Paulo cerca de 50% do total de ocorrncias. Enfim, o perfil da populao delinquente nas grandes cidades poderia ser descrito aproximadamente como constitudo de cidados do sexo masculino, solteiros, com baixo grau de instruo, jovens, com alguma ocupao declarada. Trata-se de um perfil muito prximo do perfil das vtimas em potencial: a maioria das vtimas recrutada em grupos idnticos (sobretudo nos casos de homicdios dolosos, de modo geral as ocorrncias envolvem pessoas conhecidas ou que mantinham algum tipo de relacionamento). Esses grupos esto localizados nos contingentes da populao de mais baixa renda: as principais vtimas da violncia so exatamente os alvos preferenciais do arbtrio e da discriminao. No estamos dizendo que os pobres so as classes criminosas, mas que o sistema repressivo e judicial criminaliza preferencialmente os pobres e que as vtimas dos crimes violentos – ao contrrio das imagens das classes dominantes e mdias sob cerco do crime – so majoritariamente pobres. Essa populao pobre, de mais de cem milhes de habitantes, em consequncia da violncia e do arbtrio est relegada a um virtual “regime de exceo” onde a segurana e as garantias constitucionais inexistem.

Discriminao e violncia: negros, mulheres e crianas j81a

Alguns contingentes da populao, como os dados da criminalidade indicam, mais do que outros, so diretamente afetados pela violncia. Os mais econmicos e socialmente discriminados so os mais vitimizados. Entre esses grupos esto os negros. O mito da democracia racial ainda sobrevive no Brasil. Mas todos os indicadores sociais e econmicos – trabalho, educao, habitao, renda – demonstram que a populao negra e mestia, cem anos aps a abolio da escravido, enfrenta as mesmas dificuldades da segregao racial. Os casos de discriminao dos negros no cotidiano continuam a ser frequentes, apesar da criminalizao do racismo na Constituio de 1988. Todos os governos republicanos se omitiram e foram incapazes de colocar em prtica polticas afirmativas contra a marginalidade e a discriminao. O sistema jurdico brasileiro, apesar de no ter consagrado o apartheid, nunca consagrou para os negros o princpio da no-discriminao. E essa ausncia de garantia se faz sentir no funcionamento da justia em relao aos prprios negros – tanto como todo preferencial de represso como na falta de proteo legal. Alm das prticas discriminatrias dos aparelhos repressivos do Estado, os negros e pardos so agredidos pela polcia em porcentagens superiores sua participao na populao.

H tambm uma grande discrepncia entre a participao da mulher na populao e sua participao na economia. As mulheres brasileiras constituem 50% da populao, mas apenas 35,6% delas esto empregadas, recebendo remunerao em mdia inferior remunerao dos homens nas mesmas funes. Uma grande proporo das mulheres empregadas no tem seu trabalho legalizado: apenas 44,9% tm carteira assinada. No que diz respeito violncia, as estatsticas indicam que 70% dos casos de violncia contra mulheres ocorrem dentro de casa e em muitos desses casos o agressor o marido ou o amante. Muitos homens que cometem crimes ionais no so processados; apesar das estatsticas nacionais de homicdios no inclurem informaes por gnero, as investigaes disponveis indicam que o assassinato de esposas comum.

Hoje no Brasil h mais de 58 milhes de crianas e adolescentes com idade de at dezoito anos, ou seja, 43% da populao. H fatores especificamente sociais e econmicos a agravam as condies de existncia dessas crianas e adolescentes: a evaso escolar, a maternidade precose, a crise de habitao nas grandes cidades. Grandes contingentes dos chamados “meninos de rua” vivem literalmente nas ruas, sem lar, sem famlia, sem pais, sem escolas. Essas crianas e jovens am a viver de pequenos trabalhos informais e tendem a ser enquadrados por bandos criminais. Sua enorme fragilidade os torna ao mesmo tempo disponvel para o crime e alvos fceis para a represso, legal ou ilegal. O fracasso dos sistemas de internao para crianas carentes e de instituies para infratores contribui para agravar o problema.

Durante os ltimos dois anos a questo dos assassinatos de crianas e adolescentes ganhou grande visibilidade. Uma pesquisa do Ncleo de Estudos da Violncia, do Ibase e do Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua indicou que em 1989, 457 crianas e adolescentes foram assassinados em So Paulo, Rio de Janeiro e Recife. A metade dessas mortes teria sido de autoria de esquadres da morte e a maioria das vtimas era negra e do sexo masculino. Em So Paulo, entre setembro de 1990 e agosto de 1991, segundo o mesmo Ncleo, foram registrados pela imprensa 171 assassinatos. De janeiro a maio, uma criana ou jovem foi assassinado a cada dois dias.

Vtimas seletivas da violncia no campo e na cidade 2i62n

No h dvida que muitos homicdios podem ser explicados pelos altos nveis de criminalidade comum, pela violncia que organiza as relaes pessoais na sociedade brasileira, pelos crimes ionais ou pelos altssimos nveis de mortes no trnsito (mais de cinquenta mil em 1990). Mas um expressivo nmero de homicdios resultado de aes sistemticas de grupos organizados (contra grupos preferenciais), que at h pouco tiveram garantida a impunidade para suas aes. Desde 1988 so inmeros os registros de assassinatos e massacres de trabalhadores rurais em reas de conflito rural como a Amaznia, o sul do Par, e a Bahia, visando a expulso de posseiros, sem que na maior parte dos casos tenham havido aes judiciais. Esses homicdios seletivos tambm so praticados contra advogados de trabalhadores rurais, sacerdotes e religiosos, assessores que trabalham em apoio a sindicatos e associaes rurais. Nesses casos o aparelho policial muito lento e raramente consegue prender os criminosos. Entre os 1586 assassinatos de trabalhadores rurais, ndios, advogados, religiosos, sacerdotes e outros profissionais ligados a conflitos de terra entre 1964 e 1989, foram abertos somente dezessete processos (nove absolvies e oito condenaes).

Na periferia das grandes cidades, milhares de brasileiros pobres e miserveis, adultos, crianas e adolescentes, so sistematicamente vtimas de assassinatos e massacres. Muitas dessas mortes tm como pretexto limpar as comunidades de delinquentes. Bandos criminosos matam antigos membros como castigo ou executam rivais. Ao lado desses fatos, h uma prtica rotineira de execues que articula vrios elementos dessas mortes: so os linchamentos. O motivo aparente o desespero da populao, em face da ineficincia da justia. Na realidade, sob a espontaneidade dos linchamentos h uma estrutura dissimulada onde sempre atuam figuras de autoridade – um fazendeiro ou seu preposto, comerciantes, funcionrios pblicos, policiais – que de certa maneira organizam a multido para invadir delegacias de polcia ou prises.

Em seu conjunto essas mortes tm um sentido de “pedagogia do medo” que procura enquadrar e submeter a populao pelo terror. Para alcanar esse objetivo h uma cumplicidade efetiva entre os cidados particulares e funcionrios do Estado, policiais militares ou civis. Entre esses investigadores particulares esto os grandes proprietrios, seus empregados, os grupos de extermnio, os esquadres da morte, os justiceiros. Na cidade sua atuao frequentemente tem grande legitimidade nas comunidades pobres e at mesmo nas classes mdias, que vm com grande tolerncia os assassinatos de criminosos ou suspeitos.

Em menos de uma dcada os conflitos entre a polcia militar e os civis (supostamente delinquentes) na cidade de So Paulo provocaram a morte de 3.563 civis e 359 policiais. Durante o ano de 1992, policiais militares em So Paulo mataram 47 cidados, a taxa mais alta de morte sem conflitos com a polcia entre todos os pases com organizao democrtica. Apesar desses nmeros, os principais contingentes atingidos demonstram pouca capacidade de protesto contra essas mortes, que se caracterizam, em sua maioria, como execues extralegais toleradas pelo poder pblico.

reas de terror e pena de morte 5x531d

O sistema democrtico, em uma sociedade com tradies culturais to autoritrias, no elimina automaticamente as interaes violentas na sociedade, nem as prticas ilegais dos aparelhos estatais. Especialmente porque esses aparelhos no so estruturas neutras, mas correspondem ilegalidade das prticas generalizadas numa sociedade desigual e hierarquizada onde a regra o arbtrio. Em todos os estados do Brasil a polcia civil emprega a tortura na investigao dos crimes contra a propriedade: todos os suspeitos pobres que no disponham de recursos para um arranjo am sistematicamente pelo pau-de-arara, o afogamento e os choques eltricos – apesar de a tortura ter sido criminalizada na Constituio de 1988. Ainda que a democracia seja a forma de governo, continuam implantadas “reas de terror”, mantidas e reproduzidas contra grupos especficos de cidados.

Diante desse quadro de originalidade e violncia, a proposta de introduo da pena de morte um instrumento a mais para a manuteno dessas “reas de terror” em relao aos grandes contingentes da populao sem meios econmicos, sem o educao, cultura e, numa palavra, desprovidos de poder. Nesse quadro deve ser situada toda a argumentao contra a pena de morte, assumindo sua introduo o carter de perversa inutilidade para controlar o crime.

A pena de morte no mais eficiente em dissuadir a prtica de crimes violentos do que as longas penas. Na verdade, nos Estados Unidos, os estados que adotam a pena de morte tm quase o dobro das taxas de homicdios daqueles que no a adotam. No Brasil, o grande nmero de execues extralegais de criminosos e suspeitos no tem tido nenhum efeito sobre a criminalidade. Nada indica que a instaurao da pena de morte possa diminuir aqui a taxa de criminalidade. Mesmo que os dados estatsticos quanto relao entre pena de morte e criminalidade sejam limitados, est comprovado o fato de que a presena da pena de morte tem um efeito de brutalizao nas relaes sociais, contribuindo para que crimes violentos como o homicdio sejam estimulados ao invs de evitados. Essa brutalizao reforaria a desumanizao que j caracteriza as relaes da sociedade brasileira com os criminosos e suspeitos, vistos como bestas selvagens a serem abatidas, ao arrepio de qualquer provimento legal. A pena de morte no viria substituir mas subsidiar essas prticas. Numa sociedade to desigual como a brasileira, em termos de renda e de raa, onde a populao negra e pobre percebida como parte das “classes perigosas” capazes de cometer crimes, os negros e os pobres, alm das dramticas limitaes do judicirio na maioria do pas (especialmente naqueles estados do Norte e Nordeste onde o arbtrio maior), os discriminados tero maior probabilidade de serem executados, inocentes ou culpados.

Diante dessas extraordinrias carncias da sociedade brasileira e do altssimo nvel de violncia endmica, sistmica, a existncia da pena de morte desvia recursos que poderiam beneficiar diretamente a populao (por exemplo, em polticas de controle do crime, como aumento da fora policial, tratamento de consumidores de drogas e de doentes mentais) e salvar vidas. Os processos de pena de morte so muito dispendiosos, tornando mais cara pena de morte, mais cara at mesmo que a priso perptua.

Enfim, tendo em conta o estado de violncia no Brasil, alm de no contribuir para diminuir a insegurana, a pena de morte iria agravar a situao. E, contraditoriamente, daqueles contingentes da populao que ainda continuam demonstrando apoio proposta sairo aqueles que sero atingidos pelo cadafalso, cadeira eltrica, gs ou injeo de veneno: os sem poder no Brasil. Esse paradoxal apoio a ltima manifestao da extraordinria longevidade da cultura autoritria no Brasil, que faz com que os torturados subscrevam as propostas de seus prprios torturadores, como os escravos que beijavam respeitosamente as mos de seus senhores (e algozes).

Para que essa doce submisso comeasse a ser rompida, os senhores congressistas, representantes dos povo, dos torturados, dos assassinados, deveriam sem compelidos, pela fora dos argumentos aqui apresentados, a rechaarem de vez esse instrumento de terror, a pena de morte, recusando a proposta demaggica de plebiscito sobre a pena de morte. Para evitar que o Brasil incorra no vexame de denunciar o Pacto de San Jos da Costa Rica, a Conveno Americana de Direitos Humanos, ratificada pelo Congresso Nacional em setembro de 1992, que impede a introduo da pena de morte. Se quiserem proteger de fato seus eleitores pobres, lutar contra a violncia, aprofundar a democracia e fortalecer o estado de direito.

* As idias desenvolvidas neste artigo se fundam em reflexes que venho desenvolvendo no ltimo ano, apresentadas em um texto em vias de publicao “Democracia, Direitos e Desenvolvimento do Brasil”, apresentado no Seminrio Latinoamericano Derechos Humanos, Democracia, Desarollo Economico y Social, Santiago do Chile, 10-13/12/1991, organizado pelo Centro de Direitos Humanos da ONU, com o governo do Chile. Quanto aos dados sobre criminalidade violenta, devo a Srgio Adorno, “A Criminalidade Urbana Violenta no Brasil. O Ponto de Vista dos Cientistas Sociais”, Segunda Conferncia sobre a Segurana, as Drogas e a Preveno da Criminalidade no Meio Urbano, Grupo Europeu da Pesquisa sobre as Normatividades, GERN, Paris, 30-31/05/1991; e aos dados fornecidos por Srgio Adorno e Myriam Mesquita, do Ncleo de Estudos da Violncia, USP, aos quais sou muito grato.

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