2kk3f
Direitos
Humanos, Violncia e Cotidiano Escolar
Candau,
V. M.
O fenmeno da
violncia na sociedade atual, especialmente nas grandes
cidades, vem adquirindo cada vez maior visibilidade social,
particularmente a partir dos anos 80, e sendo objeto de
preocupao tanto por parte do poder pblico e dos
cientistas sociais, como da sociedade brasileira em geral.
Certamente a violncia no um fenmeno social recente.
No entanto, possvel afirmar que suas manifestaes se
multiplicam, assim como os atores nelas envolvidos. O novo
parece ser a multiplicidade de formas que assume na
atualidade, algumas especialmente graves, sua crescente incidncia
chegando a configurar o que se pode chamar de uma
"cultura da violncia", assim como o envolvimento
de pessoas cada vez mais jovens na sua teia.
Diariamente, os diferentes meios de comunicao colocam
diante de nossos olhos, mentes e coraes, numerosas cenas
onde a violncia constitui um componente central, de tal modo
que terminamos por naturalizar e banalizar sua realidade e a
consider-la como um mero dado inerente e constitutivo de um
mundo competitivo e hostil, onde a lgica das relaes
sociais, as tenses e os conflitos esto marcados fortemente
por sua presena.
neste contexto que as questes relativas s relaes
entre escola e violncia vm emergindo com especial
dramaticidade entre ns. Algumas manchetes recentes de
jornais do pais evidenciam esta realidade:
"Aluno acusa professor de agresso na escola"
"Adolescente dispara contra professor: insatisfeito por
ter sido transferido para outro colgio, jovem de 14 anos
acerta duas balas na barriga do diretor da escola"
"Escola depredada atrai o trfico"
"Uma forma de exibicionismo: a exploso de bombas nas
escolas"
"Diretora respira fundo e encara o inimigo: o fantasma da
droga assombra"
"Unidos na baguna: alunos indisciplinados e
mal-educados atormentam os professores das escolas de classe mdia"
Ainda pouco trabalhada do ponto de vista da pesquisa
educacional, a problemtica da violncia escolar vem
provocando crescente perplexidade e sendo objeto de grande
preocupao entre educadores e pais, no somente entre ns
mas em um grande nmero de pases.
Este trabalho parte de trs afirmaes fundamentais:
- primeira: no se pode dissociar a questo da violncia na
escola da problemtica da violncia presente na sociedade em
geral; misria, excluso, corrupo, desemprego, concentrao
de renda e poder, autoritarismo, desigualdade, entre outras
chagas de nossa sociedade, esto articuladas questo da
violncia atravs de uma teia ampla de relaes; violncia
social e violncia escolar esto relacionadas mas esta relao
no pode ser vista de modo mecanicista e simplista;
- segunda: sendo assim, a problemtica da violncia s pode
ser compreendida partindo-se de sua complexidade e
multicausalidade, no podendo ser reduzida s questes
relativas desigualdade e excluso social, criminalidade,
crise do Estado e das polticas pblicas, especialmente na
rea social , falta de tica, etc.; o fenmeno da violncia
apresenta uma dimenso estrutural mas tambm uma dimenso
cultural, ambas intimamente articuladas, exigindo-se
mutuamente;
- terceira: as relaes entre violncia e escola no podem
ser concebidas exclusivamente como um processo de "fora
para dentro", a violncia presente na sociedade penetra
no mbito escolar afetando-o, mas tambm como um processo
gerado no prprio interior da dinmica escolar: a escola
tambm produz violncia.
A partir destes pressupostos bsicos e tendo presentes trs
pesquisas recentemente realizadas sobre esta temtica, a Tese
de Doutorado, defendida na Puc-Rio em 1995, por Eloisa Guimares
e recentemente publicada pela Editora da Universidade Federal
do Rio de Janeiro (1998), intitulada "Escola, Galeras e
Narcotrfico", a Dissertao de Mestrado, tambm
defendida na Puc-Rio no presente ano por Maristela Gomes de
Souza Guedes, sobre "Violncia, Escola e Dilogo"
e, principalmente, o trabalho que acabamos de publicar sobre
"Escola e Violncia" (1999), abordaremos neste
trabalho trs aspectos que no pretendem abranger a
complexidade do tema e sim, unicamente, oferecer alguns
elementos para reflexo e debate de todos ns educadores: o
que se entende por violncia? , o que pensam professores e
jovens sobre sua problemtica e que caminhos esto sendo
construdos para se trabalhar esta problemtica nas escolas.
O que se
entende por violncia?
Pergunta aparentemente simples, encerra grande complexidade e
dificuldade. No fcil definir ou conceituar o que se
entende por violncia. Em geral, se oscila entre dois
extremos: a reduo dos comportamentos violentos queles
referidos criminalidade ou agresso fsica de maior ou
menor gravidade, e a ampliao da abrangncia do conceito
de tal modo que toda manifestao de agressividade, conflito
ou indisciplina considerada como violncia.
Diferentes abordagens desta temtica foram realizadas ao
longo dos ltimos anos por filsofos, psicanalistas,
cientistas sociais e polticos, telogos, entre outros
cientistas e analistas da nossa sociedade. Em geral, a opinio
pblica e os meios de comunicao social associam violncia
criminalidade e agresso fsica. Somente se preocupam com
o tema quando fatos desta natureza causam especial impacto na
vida social. Nesta perspectiva, Bottomore, no Dicionrio do
Pensamento Marxista (1988) afirma:
Por violncia entende-se a interveno fsica de um indivduo
ou grupo contra outro indivduo ou grupo (ou tambm contra
si mesmo). Para que haja violncia preciso que a interveno
fsica seja voluntria.(...) A interveno fsica, na
qual a violncia consiste, tem por finalidade destruir,
ofender e coagir(...). A violncia pode ser direta ou
indireta. direta quando atinge de maneira imediata o corpo
de quem sofre. indireta quando opera atravs de uma alterao
do ambiente fsico no qual a vtima se encontra(...) ou
atravs da destruio, da danificao ou da subtrao
dos recursos materiais. Em ambos os casos, o resultado o
mesmo; uma modificao prejudicial do estado fsico do
indivduo ou do grupo que o alvo da ao violenta
(p.1291).
Neste trabalho nos basearemos numa perspectiva mais ampla e
teremos como referncias fundamentais Jurandir Freire Costa
(1991) e Marilena Chau (1999).
Para o primeiro, psicanalista e professor da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro, violncia o emprego desejado de
agressividade com fins destrutivos. Agresses fsicas,
brigas, conflitos podem ser expresses de agressividade
humana, mas no necessariamente expresses de violncia. Na
violncia a ao traduzida como violenta pela vtima,
pelo agente ou pelo observador. A violncia ocorre quando h
desejo de destruio. (In: Fukui, 1991, p.103)
Fica claro nesta abordagem o componente subjetivo do
comportamento violento, assim como sua relao com a
intencionalidade de negao e destruio do outro.
Quanto professora de filosofia da Universidade de So
Paulo, em recente artigo, publicado na Folha de So Paulo de
14 de maro deste ano sobre o tema da violncia, contrape
tica e violncia e assim caracteriza a violncia:
1) tudo o que age usando fora para ir contra a natureza de
algum ser ( desnaturar); 2) todo o ato de fora contra a
espontaneidade, a vontade e a liberdade de algum ( coagir,
constranger, torturar, brutalizar); 3) todo ato de violao
da natureza de algum ou de alguma coisa valorizada
positivamente por uma sociedade ( violar); 4) todo ato de
transgresso contra o que algum ou uma sociedade define
como justo e como um direito. Consequentemente, violncia
um ato de brutalidade, sevcia e abuso fsico e/ou psquico
contra algum e caracteriza relaes intersubjetivas e
sociais definidas pela opresso e intimidao, pelo medo e
pelo terror. (Caderno Mais, p.3)
A violncia no pode ser reduzida ao plano fsico,
abarcando o psquico e moral. Talvez se possa afirmar que o
que especifica a violncia o desrespeito, a coisificao,
a negao do outro, a violao dos direitos humanos.
nesta perspectiva que queremos nos aproximar da trama que
enreda cotidiano escolar e violncia. Escola e violncia: o
que pensam professores e jovens
Recente estudo que realizamos de 1997 a 1998 (Candau e outros,
1999), evidenciou que a problemtica das diferentes manifestaes
da violncia no cotidiano escolar extremamente complexa e
multidimensional. Destacaremos alguns aspectos que nos parecem
especialmente significativos na perspectiva de construir
caminhos, de trabalhar na prtica pedaggica as diversas
questes que a violncia coloca, conscientes dos limites da
ao escolar, assim como das redes visveis e invisveis
que vinculam a sociedade e as diferentes formas de violncia
nela presentes ao dia-a-dia das escolas.
O primeiro dado importante a ser assinalado refere-se a como
os/as professores(as) se situam em relao a esta temtica.
Para eles(as), a violncia est aumentando nas escolas no
somente do ponto de vista quantitativo como tambm
qualitativo. Hoje, ela apresenta grande diversificao e, em
muitos casos, cresce em intensidade. Em segundo lugar, para a
grande maioria destes atores, trata-se de uma realidade que
nas suas manifestaes intra-escolares se apresenta como
reflexo da violncia social:
claro que a violncia tem que permear o nosso sistema
escolar, visto que ela est l fora e ns no somos um
castelo encantado no meio do sistema. Ento, claro que,
infelizmente, uma conseqncia natural que essa violncia
venha e se expanda aqui entre ns tambm .( depoimento de
uma professora)
Neste sentido, um fenmeno fundamentalmente derivado, cuja
dinmica se origina na sociedade e se reflete na escola, seu
dinamismo de "fora" para "dentro".
Os/as professores(as), em geral, tm dificuldade de
identificar formas de violncia geradas pela prpria escola,
no vm a cultura escolar como fonte de violncia. No
entanto, inmeras pesquisas no mbito da educao tm
mostrado que, muitas vezes, existe uma grande distncia entre
a cultura escolar e a cultura social de referncia dos alunos
e alunas, podendo este fato ser tambm fonte de violncia,
por exemplo, de violncia simblica ou daquela presente nas
prticas especificamente escolares, como nos modos de
conceber a avaliao e a disciplina.
Os tipos de violncia assinalados como estando mais presentes
no dia-a-dia da escola so as ameaas e agresses verbais
entre os alunos e alunas, e entre estes e os adultos. No
entanto, apesar de menos freqentes, tambm se do as
agresses fsicas, algumas com graves conseqncias.
Apresentaremos alguns depoimentos dos professores nesta
perspectiva:
Comeam na sala de aula: rixas, bobeiras entre
adolescentes...A reverte em se pegar l fora.
...o desrespeito entre eles, o preconceito que eles tm em
relao raa, esttica... manifestao do outro.
Eu acho que isto uma violncia muito grande e que eles no
percebem que uma violncia.
Tem a violncia do funcionrio com o aluno, aquele que pega
a criana pelo brao...puxa a criana assim...
Eu sei de casos de professores que foram ameaados por
alunos...Uma professora sofreu ameaa e ela reagiu para
acabar com o problema ali na hora: se vai me matar, mata
agora, depois no mata mais.
A violncia a gente assiste em vrios nveis. Tem a do
aluno para o prprio aluno, na agresso fsica, na verbal,
nos apelidos...Essa violncia do aluno contra o aluno a gente
encontra com muita freqncia. Tem tambm a violncia do
professor para o aluno, muito verbal. A gente encontra colegas
que dizem que o aluno no capaz, que ele incompetente,
que ele burro.
O professor que
est na frente e no est nem a para o aluno, est sendo
violento com ele, no est proporcionando o que a escola
pode dar. At eu tambm s vezes sou violento, confesso
isso. Porque voc tambm est no meio, tambm sofre violncia,
ento eu tambm sou vel disso. complicado, mas
nessa complicao ns temos de dar as mos, para fazer um
trabalho de conscientizao.
Como os sujeitos entrevistados eram professores(as) do ensino
fundamental, em relao a este contexto que os
depoimentos tm de ser situados.
Um fenmeno novo e de especial dramaticidade o assdio
das escolas pelo narcotrfico. Trata-se de uma realidade cada
vez mais presente, particularmente nas escolas pblicas
situadas em zonas perifricas das grandes cidades,
consideradas de risco do ponto de vista social. Trata-se de um
tema extremamente difcil que coloca, muitas vezes, a direo
das escolas e o corpo docente em situaes-limite, em que o
medo, o sentido de impotncia e o desnimo imperam. O
depoimento que se segue ilustra muito concretamente tal situao,
bem como os sentimentos e posturas dos professores:
Maior dor perder um aluno para o trfico:
Para a professora C. S., pior do que criar atalhos para dar
aulas nas escolas de risco ver os alunos morrendo na guerra
do trfico. "Di muito saber que aquele garoto em quem
voc tanto investiu, a quem voc dedicou dois ou trs anos,
o trfico o assassinou", emociona-se. Nos ltimos dois
anos, C. S. contabilizou seis alunos mortos. De um deles, a
professora guarda o recorte de jornal com a notcia do
assassinato...."Tinha tudo para ser um grande homem. Era
inteligente e contestador. Levei zero na prova da vida, no
venci o desafio", amargura-se.
Mas para um grupo de professores a paixo no suficiente
para superar o medo de trabalhar nas escolas sitiadas pelo trfico.
Embora o Sindicato Estadual dos Profissionais do Ensino (SEPE)
no tenha estatstica, os diretores sabem que, alm do
baixo salrio, a falta de segurana tirou os professores das
salas de aula. "Alguns exigem escolas longe dos morros e
outros se aposentam ou vo embora de vez", conta a
diretora de um colgio municipal. Seu quadro de professores,
como de quase todas as outras escolas localizadas em favelas,
est sempre com faltas. "Fsica, biologia e qumica so
matrias que nossos alunos nunca tm. Como existem poucos,
os professores destas matrias quase sempre exigem a escola
onde vo lecionar, "A, o morro fica de fora",
completa.
Guimares (1998) em sua pesquisa intitulada Escola, galeras e
narcotrfico analisa as relaes do narcotrfico e de
algumas das formas de aglutinao dos jovens com a escola. A
autora recorre pesquisa etnogrfica para fornecer ao
leitor uma viso minuciosa dos elementos que esto presentes
no cotidiano de uma escola pblica municipal de primeiro
grau, situada na zona oeste do Rio de Janeiro, regio de
periferia desta cidade, entre os anos 91/92.
Atravs das observaes sistemticas de campo, ocorridas
num perodo de 12 meses, analisou o enraizamento do narcotrfico
nas populaes onde atua, permitindo-lhe um alto nvel de
controle sobre elas. No que diz respeito escola, o narcotrfico
aparece, na figura dos donos dos morros, ora como protetor,
ora como mediador de grupos em conflito e a escola, ou
sintetizando as duas funes. No toa que a resoluo
do problema da invaso da escola em agosto de 91 se deu a
partir do acordo com o chefe do morro prximo escola, numa
clara demonstrao de sua fora. Os mecanismos de dominao
dos narcotraficantes disseminam, nos locais sob seu controle,
uma prtica que vai atingir, principalmente, os jovens e seus
movimentos.
Assim, segundo a autora,
"a idia central a ser problematizada a de que aes
como a dos grupos em questo operam uma ruptura na lgica da
instituio escolar, violando um de seus princpios
fundamentais, que faz da relativa descontinuidade entre a
escola como instituio social e o meio imediato em que se
insere uma das condies bsicas de sua eficcia. Sejam
quais forem as funes que se pretenda obter da escola, impe-se
a necessidade de sua relativa autonomia" (p.206).
A autora conclui perguntando se o Estado e a sociedade tero
capacidade de dar condies de cidadania a esta juventude,
questo em que a escola tem papel fundamental.:
"A questo fundamental, ento, se Estado e sociedade
sero capazes do esforo necessrio para alar esses
jovens s condies de cidadania compatveis com as exigncias
atuais, considerando toda a complexidade de que se reveste
esse processo em sociedades em que coexistem diferentes lgicas
sociais [...], fazendo da escola uma das instncias
fundamentais para a instaurao desse processo ou, ao contrrio,
se multiplicar-se-o as prticas sociais voltadas para a
consolidao de uma juventude cada vez mais segregada,
socializada de forma sistemtica ou intermitente por
acontecimentos e grupos sociais particulares, como as
quadrilhas, as seitas religiosas, os bailes, os DJs, cuja ao
- atravs de gincanas e, mais recentemente, de programas
televisivos - busca instituir formas de conteno e
redirecionamento das prticas de grupos que fazem do exerccio
da violncia um estilo de vida" (p.224/225).
Outro aspecto, intimamente relacionado com os anteriormente
mencionados, que permeia todos os depoimentos, a afirmao
do desenvolvimento de uma cultura da violncia, que se
alastra e favorece todo um processo de banalizao e
naturalizao de diferentes formas de violncia. Este fenmeno
segundo Peralva (1997), se constri Em torno de duas lgicas
complementares: de um lado a encenao ritual e ldica de
uma violncia verbal e fsica; de outro, engajamento pessoal
em relaes de fora, vazias de qualquer contedo preciso,
exceto o de fundar uma percepo do mundo justamente em
termos de relao de fora. Nos dois casos, o que est em
jogo a construo e a auto-reproduo de uma cultura da
violncia. (p.20)
Para esta autora, esta construo s possvel porque
ocorre margem do mundo dos adultos e traduz a debilidade do
controle exercido pelos adultos sobre o universo juvenil, sua
capacidade ... de fundar, no interior do colgio, um modelo
de ordem (p.21)
Este fenmeno tambm pode ser visto como fruto da crise do
processo civilizatrio pela qual amos, estimulado pela
mdia, especialmente por vrios programas de televiso aos
quais as crianas e adolescentes so particularmente
adeptos, e est muito presente nas grandes cidades. Tal
realidade provoca que as pessoas, includas as crianas e os
jovens, terminem por ter, como afirma uma professora, a violncia
escondida na pele, o que faz com que situaes, algumas
vezes as mais comuns, mobilizem comportamentos de grande
agressividade e distintas reaes violentas. Quanto mais a
luta pela sobrevivncia se acentua, mais esta cultura da violncia
se desenvolve. No caso brasileiro, possvel afirmar que
uma cultura marcada pela violncia acompanha toda sua histria,
multiplicando-se, ao longo do tempo, as formas de
autoritarismo, excluso, discriminao e represso. No
se trata, portanto, de uma realidade nova, mas sim da
complexificao de um componente estruturante da nossa histria.
Neste processo, as dimenses estrutural e cultural da violncia
se interpenetram cada vez com mais fora.
Outra questo muito presente na configurao da problemtica
das manifestaes da violncia no universo escolar a
violncia familiar. Esta triste realidade est muito mais
presente no cotidiano das crianas do que, em geral, se cr,
sendo fruto de muitas variveis. Um dos depoimentos dos
professores relata uma situao que, com diferentes verses,
bastante freqente:
Um aluno chegou aqui marcado de pancadas; perguntei o que era
e ele disse que foi ao baile funk...e l fizeram corredor
polons, onde se deve apanhar, sem reclamar. A me foi
chamada porque esse menino nem copiava o dever. Comentamos,
ento, sobre as marcas, e ela disse: ele nem vai a baile funk,
sou eu mesmo quem bate.
Cardia (1997) assinala, com muita propriedade, a relao
entre a violncia urbana, a violncia familiar e a vida
escolar dos(as) alunos(as). Mais uma vez, as condies de
vida moradia, sade, trabalho, etc. so uma forte
condicionante de tal problemtica, aliada ao estresse da vida
nas grandes cidades e aos conflitos da dinmica familiar.
Quanto ao tema das depredaes, pichaes, da manuteno
do ambiente fsico das escolas, da "ecologia
escolar", constitui outra dimenso que pode ser encarada
como manifestao de violncia. Muitas vezes, tais ocorrncias
associadas s agresses e ao assdio de gangues e galeras
s escolas, provocam medo, sentimento de impotncia e angstia
nos(as) educadores(as).
No contexto de outra pesquisa por ns desenvolvida de 1996 a
1998 (Candau, 1998) sobre "Cotidiano escolar e
cultura(s): desvelando o dia a dia", com o apoio do CNPq,
realizamos duas entrevistas coletivas - "encontros de
opinio"- com adolescentes de duas escolas de ensino mdio,
situados na mesma rea geogrfica, a zona sul do Rio de
Janeiro, mas que atendiam populaes claramente
diferenciadas: uma, a Escola Iracema, estabelecimento
particular de ensino freqentado por adolescentes de classe mdia
alta e classe alta, e a outra, a Escola Guarani, escola pblica
que atendia adolescentes de camadas populares ou classes mdias
baixas. Ambas entrevistas tiveram a participao de
aproximadamente 28 alunos e alunas e seguiram uma dinmica em
que se favoreceu a interao do grupo, abordando as
seguintes questes: situaes de violncia vivenciadas por
eles/as e como as viveram e a violncia na sociedade em
geral, terminando com a apresentao coletiva de algumas
propostas para diminuir a incidncia da violncia na vida
das pessoas e da sociedade.
No Colgio Guarani - escola pblica- os/as jovens comearam
por afirmar: "A violncia hoje em dia est muito
presente". Na enumerao das diversas formas de violncia
vivenciadas, as questes sociais tiveram grande destaque.
Durante a dinmica foram inmeras vezes mencionadas as ms
condies de vida das populaes pobres, a falta de um bom
policiamento e segurana, o desemprego, etc. Outro ponto
muito discutido foi o porte de armas, tanto de policiais e
soldados que abusam do poder da patente e da fora de ter uma
arma de fogo na mo, quanto da populao civil que anda
cada vez mais armada. Os/as alunos/as afirmaram repetidas
vezes a preocupao em relao tanto ao armamento civil e
falta de preparo dos policiais e militares, quanto sensao
de fragilidade e medo diante das armas. Assinalaram tambm o
poder coercitivo de um indivduo armado. Vrias vezes
eles/as disseram: "Quem est com medo est fraco."
A situao poltica tambm foi lembrada, pois no momento
de apontar sugestes para melhoria da situao em relao
violncia, sempre mencionavam a falta de iniciativa e
envolvimento do governo, a corrupo, a falta da prtica de
leis que j esto, teoricamente, asseguradas e a falta de
punio para aqueles/as que no as cumprem.
Foi interessante notar como eles/elas, geralmente, sugeriram
"sadas" onde a iniciativa pblica e a iniciativa
privada deveriam agir conjuntamente.
As dificuldades dos relacionamentos interpessoais tambm foi
outro importante ponto mencionado. As brigas em bailes funk
que se relacionam com o trfico e com os grupos rivais, bem
como as brigas promovidas por lutadores em boates e bares
cariocas foram percebidos como um grande problema que
geralmente envolve jovens.
Outra questo mencionada com fora foi o abuso de poder dos
"mais fortes", sejam estes/as os/as mais velhos/as,
os/as familiares, as autoridades da escola, etc. Por exemplo,
segundo estes jovens, embora os mais velhos no considerem os
mais jovens respeitosamente, exigem tal respeito de forma
incondicional dos mais novos. Esse fato se repete com os
outros elementos mencionados.
Tambm foram lembrados: a banalizao da violncia pelos
veculos de comunicao, principalmente a TV, a discriminao
sexual, a violncia contra a mulher e contra a criana na
famlia ou na sociedade e a agresso aos semelhantes com
palavras e atitudes, por motivos banais do cotidiano.
Os/as jovens demostraram acreditar que, embora a violncia
seja um srio problema em nossa sociedade, possvel
solucion-lo. Apresentaram inmeras e variadas iniciativas
neste sentido e afirmaram que um investimento maior por parte
do governo, das ONGs e da iniciativa privada no campo da educao
permitiria uma maior conscientizao das pessoas a respeito
da vida em sociedade, produzindo um futuro menos violento:
Formao de crianas de mentes saudveis, da formariam
adultos conscientes que no agiriam de forma violenta;
Aumento do policiamento(...); melhores condies de vida
para os policiais com preparo fsico e psicolgico para que
eles possuam recursos no tendo que partir para a
marginalidade;
(...) dar abrigo e educao para as pessoas que vivem nas
ruas, para que a violncia seja restringida;
(...) diminuir o ndice de desemprego no Brasil para que as
pessoas tenham condies de vida melhores e no tenham que
ar por necessidades e no acabem roubando.
Achamos que essencial para a diminuio da violncia no
nosso dia-a-dia, continuar campanhas como o "Rio
desarme-se" e o "Disque-Denncia.
Outra coisa importante fazer campanhas de conscientizao
popular a respeito do abuso de autoridade que as pessoas
possuem ou pensam que possuem como, por exemplo, os policiais
que usam de sua autoridade para benefcios prprios ou
realizao como "fortes" e "poderosos".
Outro exemplo forte dos traficantes de drogas, que se acham
e at se intitulam como donos do morro, e de tudo que tem
dentro dele, como as pessoas que l habitam.
Achamos que para diminuir a violncia deve haver um processo
de reeducao com as pessoas e maior competncia do governo
A violncia dos pais tambm um fator que deixa a gente
chocado; essa violncia expulsa as crianas de casa para
irem morar nas ruas.
Estas, entre outras, so dicas para acabar com a violncia,
que hoje em dia est to presente entre ns. As pessoas
usam de violncia por besteiras e se acham no direito de
agredir, estuprar, roubar, matar, etc. At o governo um
exemplo de violncia com a nao brasileira, pois entre
eles h roubo, propina, etc. No temos bons exemplos nem dos
chefes governamentais. O governo em vez de estimular o
desenvolvimento, estimula a misria do povo.
(trechos da carta feita pelo grupo - Sugestes para acabar
com a violncia)
Quanto aos alunos/as da escola Iracema- escola particular -,
no "Encontro de Opinio" sobre a violncia no
nosso dia-a-dia, os/as jovens narraram fatos de violncia que
viveram ou presenciaram no seu cotidiano, como tambm aqueles
referidos violncia social.
Em relao s situaes vividas pessoalmente, alguns/mas
relataram que foram vtimas de roubo por pivete e assalto.
Dentre os fatos que presenciaram nas ruas, citaram assalto a
banco, tiroteio entre polcia e assaltante de banco,
linchamento e ameaa de atropelamento a mendigo, por parte de
motoqueiro, noite. O suicdio foi mencionado como um tipo
de violncia que o indivduo realiza contra si prprio e
consideraram como violncia social, a fome, a misria, o
desemprego. Ao relatarem esses diferentes tipos de violncia
os/as jovens enfatizaram a desigualdade social, a omisso do
governo, a violao dos direitos humanos, a banalizao da
violncia, levantando um debate sobre a responsabilidade
social de cada indivduo na sociedade. Segundo sua opinio,
"todos ns somos vtimas, mas todo mundo tem um pouco
de culpa tambm", "a gente reclama mas no faz
nada para mudar", "as pessoas no so estruturadas
para serem solidrias", "tem que mudar a base do
sistema", "se voc se imp voc est correndo
o risco de alguma reao de outras pessoas. Isso impede que
as pessoas se exponham".
Os/as jovens destacaram que a violncia est se tornando to
constante e cada vez mais freqente no dia-a-dia, que nem se
reconhece pequenos atos como violentos, o que agrava a situao.
Na medida em que esses pequenos atos am a ser considerados
normais devido a sua freqncia, acaba-se banalizando a violncia
o que contribui para formar hbitos e atitudes que cada vez
mais so influenciados pela agresso e pelo desrespeito ao
outro. A maior violncia o conformismo com a banalidade,
afirmaram.
Apresentaram diferentes propostas para eliminar ou minimizar a
violncia, chamando a ateno para falas conhecidas sobre a
violncia, aquilo que se escuta no dia-a-dia como: estupra
mas no mata, bandido bom bandido morto, coisa de
maluco mas a polcia vai ter que prender a prpria polcia,
quando punimos algum estamos saciando nosso desejo de punir.
|