6o2v4u
DIREITOS HUMANOS,
DIREITOS "HUMANIZANTES"
Giuseppe Tosi*
- O PARADOXO ATUAL DOS DIREITOS HUMANOS
impossvel no
reconhecer como uma das caractersticas marcantes da nossa poca a
existncia de um grande movimento terico e prtico pela promoo
dos direitos humanos, que no se limita s declaraes das Naes
Unidas e dos outros organismos internacionais mas que repercute nas
disposies constitucionais de grande parte dos Estados, constituindo
assim, pela primeira vez na historia da humanidade, um conjunto de princpios
norteadores do direito internacional que alguns juristas definem como
"cdigo universal dos direitos humanos", "direito
pan-umano" ou "super-constituio" mundial, distinta e
superior ao Direito Internacional.
Aparentemente estaria se
realizando a esperana kantiana de um progresso moral da humanidade
cujo "signum prognosticum et rememorativum" seria justamente a
existncia deste corpus de direitos universais que realizariam o ponto
de vista cosmopolita (weltbrgerlich) auspiciado e preconizado pelo
grande filosofo iluminista alemo. Como afirma Norberto Bobbio:
" fato hoje inquestionvel
que a Declarao Universal dos Direitos do Homem, de 10 de dezembro
de 1948, colocou as premissas para transformar os indivduos
singulares e no apenas os Estados, em sujeitos jurdicos de
direito internacional, tendo assim, por conseguinte, iniciado
a agem para uma nova fase do direito internacional, a que
torna esse direito no apenas o direito de todas as gentes,
mas o direito de todos os indivduos. Essa nova fase do direito
internacional no poderia se chamar, em nome de Kant, de direito
cosmopolita?"
A doutrina dos direitos
humanos constituiria assim a expresso da mais alta "conscincia
moral" que a humanidade jamais alcanou no seu longo processo histrico.
Ao mesmo tempo se faz
necessrio reconhecer que as violaes sistemticas e macias dos
direitos humanos aumentam com a mesma velocidade da dos
tratados e so to universais quanto as declaraes que os
proclamam, como denunciam quotidianamente os relatrios das Naes
Unidas e das Organizaes No Governamentais e como podemos constatar
quotidianamente no nosso Pas.
Poderamos interpretar
este fenmeno como um efeito da prpria declarao universal: violaes
aos direitos humanos sempre existiram na historia da humanidade em todas
as pocas e civilizaes, porm somente agora aparecem como tais,
porque somente agora temos um critrio e um parmetro que nos permite
medi-las, verifica-las e denunci-las.
Efetivamente um tal
argumento "minimalista" tem as suas razes de ser mas no
pode ser uma resposta satisfatria para a enorme e crescente frustrao
frente ao abismo sempre maior entre as declaraes de princpios e a
realidade, abismo que arrisca de tornar os direitos humanos uma retrica
vazia.
Frente a esta situao,
acreditamos que preciso no somente se engajar no grande movimento
pratico para a efetivao dos direitos, mas tambm avanar no
aprofundamento terico das questes e dos pressupostos. No podemos
deixar de nos perguntar porque a sociedade moderna, que provocou um
desenvolvimento histrico das foras produtivas indito e que teve o
mrito de colocar a centralidade dos direitos do homem no foi capaz
de cumprir as promessas solenemente feitas?
Como afirma , com muita
eficcia, Henrique Cludio de Lima Vaz:
" O paradoxo
da contemporaneidade o paradoxo de uma sociedade obsessivamente
preocupada em definir e proclamar uma lista crescente de direitos
humanos, e impotente para fazer descer do plano de um formalismo
abstrato e inoperante esses direitos e lev-los a uma efetivao
concreta nas instituies e nas prticas sociais" .
Para encontrar uma
resposta a este paradoxo, nos parece crucial enfrentar o problema da
relao que se estabelece, na modernidade, entre os direitos civis e
polticos (ou direitos de liberdade) e os direitos econmico-sociais
(ou direitos crditos). A tese que queremos apresentar que, apesar
de uma aparente complementareidade, entre estas duas classes de direitos
existe uma real contraditoriedade, dificilmente reconcilivel.
- UM BREVE HISTRICO.
Na constituio da
doutrina dos direitos do homem, assim como ns a conhecemos hoje,
confluem as contribuies de vrias correntes de pensamento e de ao,
entre as quais as principais nos parecem ser o liberalismo, o socialismo
e o cristianismo social.
O liberalismo: libert.
O pensamento liberal
moderno considerado o principal artfice da elaborao terica e
da realizao prtica dos direitos do homem. A doutrina jurdica que
funda os direitos humanos o jusnaturalismo, isto teoria dos
direitos naturais, que rompe com a tradio do direito natural antigo
e medieval, sobretudo a partir de Thomas Hobbes, no Sec. XVII.
As caractersticas
principais do que Norberto Bobbio define como "modelo
jusnaturalista ou Hobbesiano" so as seguintes:
- Individualismo: "existem"
(ora como dado histrico, ora como hiptese de razo) indivduos
que vivem num estado de natureza anterior criao do Estado
e que gozam de direitos inerentes e intrnsecos, tais como
o direito vida, propriedade, liberdade, segurana
e igualdade frente necessidade e morte.
- O Estado de natureza. um pressuposto comum
a todos os pensadores deste perodo, ainda que eles o caracterizem
de modo divergente: ora como um estado de guerra (Hobbes),
ora como um estado de paz instvel (Locke) ora como primitivo
estado de liberdade plena (Rousseau).
- O Contrato Social entendido como um pacto
artificial (no importa se histrico ou ideal) entre os indivduos
livres para a formao da sociedade civil que, desta maneira,
supera o estado de natureza; pacto atravs do qual todos os
indivduos se tornam cidados renunciando prpria liberdade
in parte ou in toto para consigna-la nas mos do prncipe
absolutista de Hobbes ou do monarca constitucional de Locke
ou da Assemblia Geral de Rousseau que representa diretamente
a vontade geral. Apesar destas diferenas, o que h em comum
entre os autores o carter voluntrio e "artificial"
do pacto ou do contrato que serve para garantir os direitos
fundamentais do homem no estado de natureza que eram continuamente
postos em perigo pela falta de uma lei e de um Estado que
tivesse a fora de faze-la respeitar.
- O Estado nasce para proteger
e garantir a efetiva realizao deste direitos naturais inerentes
aos indivduos, que no so criados pelo Estado mas a ele
precedentes e que o Estado tem a obrigao de proteger. Para
Hobbes trata-se sobretudo do direito vida, para Locke do
direito de propriedade, para Kant do nico e verdadeiro direito
natural que inclui todos os outros que a liberdade.
Estas idias surgiram
nos sculos XVII e XVIII no perodo em que a classe burguesa estava
reivindicando uma maior liberdade de ao e de representao poltica
frente classe dos nobres e do clero e forneciam uma justificativa
ideolgica consistente aos movimentos revolucionrios que,
inspirado-se nas doutrina jusnaturalistas, levaram progressivamente
dissoluo do mundo feudal e constituio do mundo moderno. O
jusnaturalismo, sobretudo atravs da obra dos iluministas, teve uma
importante influncia sobre as grande revolues liberais do sec.
XVII e XVIII. Entre os textos fundamentais deste perodo assinalamos:
- A Declarao de Direitos (Bill of Rights)
da assim chamada Revoluo Gloriosa que aconteceu na Inglaterra
em 1668 e levou formao de uma monarquia constitucional;
- A Declarao dos direitos (Bill of Rights)
do Estado da Virgnia de 1777, que foi a base da declarao
da Independncia dos Estados Unidos de Amrica (em particular
os primeiros 10 emendamentos de 1791);
- A Declarao dos direitos do
homem e do cidado da Revoluo sa de 1789 que derrubou
o antigo regime (Ancien Rgime) e proclamou a Repblica.
importante sublinhar
que os direitos do pensamento liberal tem o seu ncleo central nos
assim chamadas "direitos de liberdade" que so
fundamentalmente os direitos do indivduo (burgus) liberdade,
propriedade, segurana. O Estado limita-se a garantia dos direitos
individuais atravs da lei sem intervir ativamente na sua promoo.
Por isto estes direitos so chamados de direitos de liberdade negativa,
porque tem como objetivo a no interveno do estado na esfera dos
direitos individuais.
oportuno tambm
lembrar que, apesar da afirmao de que "os homens nascem e so
livres e iguais", uma grande parte da humanidade permanecia excluda
dos direitos: a Declarao de Direitos do Estado da Virgnia no
considerava os escravos como titulares de direitos iguais aos homens
livres; a Declarao dos direitos do homem e do cidado da Revoluo
sa no considerava as crianas e as mulheres como sujeitos de
direitos iguais aos dos homens. Em geral, em todas estas sociedades, s
podiam votar os homens adultos e ricos; as mulheres, os pobres e os
analfabetos no podiam participar da vida poltica. Devemos tambm
lembrar que estes direitos no valiam nas relaes internacionais.
Com efeito, neste perodo na Europa, ao mesmo tempo em que
proclamavam-se os direitos universais do homem, tomava um novo impulso o
grande movimento de colonizao e de explorao dos povos
extra-europeus. Assim a grande parte da humanidade ficava excluda do
gozo dos direitos.
O Socialismo: egalit.
A tradio liberal dos
dieitos do homem domina o perodo que vai do Sec. XVII at o comeo
do Sec. XIX, quando acaba o grande perodo das revolues burguesas.
Nesta poca entra em cena o socialismo, que encontra suas razes
naqueles movimentos mais radicais da Revoluo sa que queriam no
somente a realizao da liberdade, mas tambm da igualdade e no
somente da igualdade frente a lei, mas da igualdade econmica e social.
O socialismo, sobretudo a
partir dos movimentos revolucionrios de 1848 (ano em que foi publicado
o Manifesto da Partido Comunista de Marx e Engels) reivindica uma srie
de direitos novos e diversos daqueles da tradio liberal. A Egalit
da Revoluo sa era somente (e parcialmente) a igualdade dos
cidados frente lei, mas o capitalismo estava criando grandes
desigualdades econmicas e sociais e o Estado no intervinha para pr
remdio a esta situao.
Os movimentos revolucionrios
de 1848 constituem um acontecimento chave na histria dos direitos
humanos, porque conseguem que, pela primeira vez, seja acolhido na
Constituio sa, ainda que de forma incipiente e ambgua, o
conceito de "direitos sociais". Estava assim aberto o longo e
tortuoso caminho que levaria progressivamente incluso de uma serie
de direitos novos e estranhos tradio liberal: educao, ao
trabalho, segurana social, sade, etc. que modificam a relao
do indivduo com o Estado. O liberalismo olhava o Estado com intrnseca
desconfiana: a questo central era a garantia das liberdades
individuais contra a interveno do Estado nos assuntos particulares.
Agora tratava-se de obrigar o Estado a fornecer um certo nmero de
servios para diminuir as desigualdades econmicas e sociais e
permitir a efetiva participao de todos os cidados a vida e ao
"bem estar" social. Por isto estes direitos so as vezes
chamados de direitos crditos, porque se entende que cada cidado
nasce com um "credito" de direitos que cabe ao Estado
fornecer-lhe durante a sua vida.
Este movimento tomar um
grande impulso com as revolues socialistas do Sec. XX e com as
experincias socialdemocrticas e laboristas europias. De fato,
atravs de muitas lutas, de avanos e recuos, os direitos sociais,
sobretudo aps a Segunda Guerra Mundial, comeam a ser colocados nas
Cartas Constitucionais e postos em pratica criando assim o chamado
Estado Social (Welfare State) nos pases capitalistas (sobretudo
europeus) e garantindo uma srie de conquistas sociais nos pases
socialistas.
oportuno assinalar que
o processo no foi to linear e simples como parece nesta sumria
exposio; na verdade, nunca foi fcil colocar em prtica, ao mesmo
tempo, os direitos de liberdade (civis e polticos) e os direitos de
igualdade (econmicos sociais). Em particular, nos pases de regime
socialista, a garantia dos direitos econmico-sociais foi acompanhada
por uma brutal restrio, ou at eliminao, dos direitos civis e
polticos individuais.
bom sempre lembrar que
deste avano dos direitos sociais ficaram, em grande parte, excludos
os pases submetidos dominao colonial ou neo-colonial que
representavam a grande parte da humanidade.
A doutrina social da
Igreja: fraternit.
Mas, antes de chegar
contemporaneidade, preciso dizer algo a respeito de um outro ator
social que desenvolveu um papel importante, isto o cristianismo
social, ainda que me limitarei a alguns poucos acenos doutrina social
da Igreja Catlica.
A mensagem bblica e
especialmente a evanglica contm um forte chamamento fraternidade
universal: o homem foi criado por Deus a sua imagem e semelhana e
todos os homens so irmos porque tem Deus como Pai. O homem tem um
lugar especial no Universo e possui uma sua intrnseca dignidade. A
doutrina dos direitos naturais que os pensadores cristo elaboraram a
partir de uma sntese entre a filosofia grega e a mensagem bblica
valoriza a dignidade do homem e considera como naturais alguns direitos
e deveres fundamentais que Deus colocou no corao de todos os homens.
Porm, o envolvimento e
a identificao sempre maior da Igreja com as estruturas de poder da
sociedade antiga e medieval fez com que os idias da natural igualdade
e fraternidade humana que ela proclamava no fossem, de fato,
respeitados e colocados em prtica. Com o advento dos tempos modernos a
Igreja Catlica foi fortemente atingida pelas grandes reformas
religiosas, sociais e polticas do tempo e foi perdendo
progressivamente o poder temporal e uma grande parte do poder econmico
que se fundava na propriedade da terra. Este talvez foi um dos motivos
principais da hostilidade da Igreja s doutrinas e s praticas dos
direitos humanos na modernidade: a Igreja ficou defendendo o Antigo
Regime do qual era uma parte fundamental com todos os seus privilgios.
No Sc. XIX, por
exemplo, o Papa Pio VI, em um dos numerosos documentos contra-revolucionrios,
afirma que o direito de liberdade de imprensa e de pensamento um
"direito monstruoso" deduzido da idia de "igualdade e
liberdade humana" e comenta: "No se pode imaginar nada de
mais insensato que estabelecer tal igualdade e uma tal liberdade entre ns."
Em 1832 o Papa Gregrio
XVI descreve a liberdade de conscincia como "um princpio errado
e absurdo, ou melhor uma loucura (deliramentum), que se deva assegurar e
garantir a cada um a liberdade de conscincia. Este um dos erros
mais contagiosos... A isto est conexa a liberdade de imprensa, a
liberdade mais perigosa, uma liberdade execrvel que nunca poder
suscitar bastante horror."
A hostilidade da Igreja
Catlica aos direitos humanos modernos comea a mudar somente com o
Papa Leo XIII que, com a sua famosa Encclica Rerum Novarum de 1894,
dar incio a chamada "Doutrina Social da Igreja". A Igreja
Catlica procura com isso inserir-se de maneira autnoma entre o
liberalismo e o socialismo propondo uma via prpria inspirada nos princpios
cristos. na doutrina social da Igreja, por exemplo, que se inspiram
os partidos democrata cristos da Europa.
Este movimento continuar
durante todo o nosso Sculo e levar a Igreja Catlica, especialmente
aps o Conclio Vaticano II, a modificar profundamente sua posio
de inicial condenao dos direitos humanos. A "Declarao sobre
a Liberdade religiosa", contm, por exemplo, esta afirmao:
"O homem tem
que seguir fielmente a sua conscincia... No permitido obriga-lo
a agir contra a sua conscincia. Mas no se deve tampouco impedir
de agir em conformidade com ela, sobretudo no campo religioso...
A liberdade religiosa na sociedade esta plenamente em sintonia
com a liberdade do ato de f crist. "
Mais recentemente o papa
Joo Paulo II, na sua Encclica Redemptor Hominis, escreve:
"No se pode no lembrar
aqui com estima e com profunda esperana para o futuro o magnifico
esforo realizado para dar vida Organizao das Naes Unidas,
um esforo que tende a estabelecer e definir os objetivos e
inviolveis direitos do homem ... A Igreja no precisa confirmar
quanto este problema esteja estritamente ligado com a sua misso
no mundo contemporneo. Ele est na base da prpria paz social
e internacional, como declarou ao respeito o papa Joo XXIII."
A Igreja Catlica se
inseriu assim, ainda que tardiamente, no movimento mundial pela promoo
e tutela dos direitos humanos em conjunto com outras igrejas crists
que esto engajadas nesta luta, num dilogo ecumnico interno ao
cristianismo e aberto s outras grandes religies mundiais. Cabe aqui
citar, s a titulo de exemplo, a Declarao para uma tica Mundial,
promovida pelo Parlamento das Religies Mundiais em Chicago em 1993,
que inspira-se no trabalho de alguns telogos ecumnicos, como Hans Kng,
os quais proclamam a centralidade dos direitos humanos individuais e
sociais.
A declarao Universal
da ONU
Quando, aps experincia
terrvel das duas guerras mundiais, os lderes polticos criaram a
ONU e confiaram-lhe a tarefa de evitar a guerra e de promover a paz
entre as naes, consideraram que a promoo dos direitos naturais
do homem fosse uma condio necessria para uma paz duradoura. Por
isto, um dos primeiros atos da Assemblia Geral das Naes Unidas foi
a proclamao, em 1948, de uma Declarao Universal dos Direitos
Humanos, cujo primeiro artigo reza da seguinte forma:
"Todas as
pessoas nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. So
dotadas de razo e de conscincia e devem agir em relao umas
s outras com esprito de fraternidade".
Os redatores tiveram a
clara inteno de reunir, numa nica formulao, as trs palavras
de ordem da Revoluo sa de 1789: liberdade, igualdade e
fraternidade. Desta maneira a Declarao Universal reafirma o conjunto
de direitos das revolues burguesas (direitos de liberdade, ou
direitos civis e polticos) e os estende a uma srie de sujeitos que
anteriormente estavam excludos (os escravos, as mulheres, os
estrangeiros e, mais adiante, as crianas). Afirma tambm os direitos
que vinham da tradio socialista (direitos de igualdade, ou direitos
econmicos e sociais) e do cristianismo social (direitos de
solidariedade).
A partir da declarao, atravs
de vrias conferncias, pactos, protocolos internacionais o
nmero de direitos foi se universalizando, multiplicando e diversificando
sempre mais: aos direitos civis e polticos (ou de primeira
gerao) foram se acrescentando os direitos sociais e econmicos
(ou de segunda gerao). Em tempos mais recentes, a lista dos
direitos incluiu os direitos de terceira gerao, que dizem
respeito aos povos, s culturas e prpria natureza como sujeita
de direitos (direitos ecolgicos) e se abrem perspectivas para
direitos de quarta gerao (direitos das geraes futuras....).
- DIREITOS INDIVIDUAIS VERSUS DIREITOS
SOCIAIS.
Aparentemente no
haveria problemas: ao redor do ncleo essencial dos direitos
liberais se d uma contnua agregao de direitos que, sem ferir
os princpios inspiradores fundamentais, vem ampliando o leque
dos direitos possveis acompanhando o crescimento da "conscincia
mundial" da humanidade. Porm as coisas no so to simples,
porque "atrs" desta lista crescente de direitos existem
concepes diferentes de homem e de sociedade que no so facilmente
compatveis. Limitar-me-ei somente questo da relao entre
os direitos de liberdade e os direitos crditos que, na minha
opinio, permanece como a contradio fundamental.
As diferentes concepes
de Estado e de Democracia.
Um primeiro problema
consiste na diferente concepo de democracia e de Estado que as duas
classes de direitos pressupem, como observam Luc Ferry e Alain Renaut:
"De um lado
temos uma concepo puramente negativa da lei, que se preocupa de
proibir toda tentativa (do Estado, de grupos ou de indivduos) que
queira proibir ao cidado de gozar de suas liberdades dentro dos
limites da sua compatibilidade com s do outro: uma lei que proiba
de proibir e cuja funo tem como eixo a domocracia poltica.
Quando, ao contrrio,
se introduz a considerao dos direitos sociais, se espera do
Estado que, atravs de suas leis, intervenha na esfera social
para assegurar uma melhor repartio da riqueza e corrigir as
desigualdades: a funo, neste caso positiva, da lei de contribuir
ao surgimento de uma democracia social que tende no mais somente
para uma igualdade poltica ("o direito igual de concorrer
formao da lei"), mas para uma igualizaao, pelo menos
parcial, das condies."
A "democracia poltica"
e a "democracia social" pressupem uma diversa concepo do
Estado e o prprio Norberto Bobbio, num ensaio de 1968, afirmava, de
maneira contundente e peremptria, a dificuldade de conciliar entre si
dois tipos de direitos incompatveis:
"Quando digo
que os direitos do homem constituem uma categoria heterognea,
refiro-me ao fato de que - desde quando aram a ser considerados
como direitos do homem, alm dos direitos de liberdade, tambm
os direitos sociais - a categoria no seu conjunto ou a conter
direitos entre si incompatveis, ou seja, direitos cuja proteo
no pode ser concebida sem que seja restringida ou suspensa
a proteo de outros. [...] Essa distino entre dois tipos
de direitos humanos, cuja realizao total e simultnea impossvel,
consagrada, de resto, pelo fato de que tambm no plano terico
se encontram frente a frente e se opem duas concepes diversas
dos direitos do homem, a liberal e a socialista."
Reapresenta-se assim, no
mbito da doutrina dos direitos humanos, a antiga contraposio entre
socialismo e liberalismo que a Declarao Universal tentou conciliar
simplesmente agregando duas categorias e classes de direitos bastante
heterogneas.
O diferente estatuto jurdico.
Os direitos econmico-sociais,
mesmo que estejam formalmente inseridos na Declarao Universal e
sucessivamente especificados nas Convenes e nos Pactos
Internacionais e incorporados nas Cartas Constitucionais e na legislao
ordinria, gozam de um diferente estatuto jurdico.
Enquanto os direitos de
liberdade podem ser tutelados porque existe uma instncia jurdica e
poltica que pode ser acionada em seu favor, os segundos, ao contrrio
carecem desta proteo e desta fora coercitiva. Num Pas onde
existe um mnimo de democracia poltica, um cidado pode apelar ao
Estado para que lhe seja reconhecida, por exemplo a liberdade de opinio
ou de religio ou de organizao sindical e partidria. Porm um
desempregado no pode se dirigir a nenhum rgo pblico para obter
um emprego, mesmo se a constituio garanta este direito. O mesmo vale
para a maioria dos outros direitos econmicos e sociais, inclusive em
relao ao mais elementar de todos que o direito vida: na nossa
sociedade, a diferena da sociedade escravista, somos livres de morrer
de fome, porque ningum obrigado a nos manter em vida .
O prprio Bobbio ite
que, no caso dos direitos de segunda e terceira gerao no se pode
falar propriamente de "direitos" mas de "exigncias
morais" porque falta a coao da fora para faze-los respeitar:
"Partilho
a preocupao dos que pensam que chamar de "direitos"
exigncias" (na melhor das hipteses) de direitos futuros
significa criar expectativas, que podem no ser jamais satisfeitas,
em todos os que usam a palavra "direito" segundo a
linguagem corrente, ou seja, no significado de expectativas
que podem ser satisfeitas porque so protegidas."
O diferente estatuto
ontolgico.
Mesmo que historicamente
os direitos sociais venham depois dos direitos individuais, eles so
ontologicamente prioritrios porque constituem as condies necessrias
para o exerccio dos primeiros: sem os mnimos direitos econmicos e
sociais no se podem exercitar os direitos civis e polticos. Para que
existam cidados preciso que existam homens. O prprio Bobbio
reconhece que:
"Em sua mais
ampla dimenso, os direitos sociais entraram na histria do
constitucionalismo moderno com a Constituio de Weimar. Da
sua aparente contraditoriedade mas real complementaridade em
relao aos direitos de liberdade a razo mais fundamental
aquela que v neles uma integrao dos direitos de liberdade,
no sentido de que constituem a prpria condio do seu efetivo
exerccio. Os direitos de liberdade no podem estar assegurados
se no garantindo a cada um aquele mnimo de bem estar econmico
que consinta-lhes de viver com dignidade."
Trata-se verdadeiramente,
como afirma Bobbio, de uma "aparente contraditoriedade mas real
complementaridade" ou, ao contrrio, de uma "contradio
real" dificilmente supervel permanecendo os pressupostos tericos
e prticos da modernidade?
4. A GLOBALIZAO E OS DIREITOS HUMANOS
Esta questo
principal que gostaramos de colocar para a discusso e que est na
raiz do que chamamos o paradoxo da modernidade. uma questo antiga
que reaparece no mais como contraposio entre dois sistemas ideolgicos
irreconciliveis, mas como questo interna prpria doutrina dos
direitos humanos.
Proclamar a
integralidade, a indissociabilidade e a indivisibilidade de
"todos" os direitos humanos, certamente algo de louvvel,
mas pode escamotear e esconder o problema da heterogeneidade dos
direitos e, s vezes, de uma possvel contraditoriedade entre classes
de direitos que no podem ser garantidos ao mesmo tempo e com a mesma
eficcia.
Acreditamos que, o que
est em jogo neste debate o papel da poltica e do Estado. Na
concepo liberal, o Estado nasce da agregao de indivduos que
supostamente viviam autosuficientes e livres no estado de natureza, com
o objetivo de garantir a liberdade (negativa) de cada um em relao ao
outro. Por isso a realizao histrica dos direitos no confiada
interveno positiva do Estado, mas deixada ao livre jogo do
mercado, partindo do pressuposto liberal (e liberista) que o pleno
desdobramento dos interesses egosticos de cada um - limitado somente
pelo respeito formal do egosmo do outro - possa transformar-se em
benefcio pblico pela mediao da mo invisvel do mercado. O prprio
contrato social funda-se no pressuposto do natural egosmo dos indivduos
que deve ser somente controlado e dirigido para uma sadia competio
de mercado. Isto no impede, como afirma H. C. de Lima Vaz, "o
reaparecimento do estado de natureza em pleno corao da vida social,
com o conflito dos interesses na sociedade civil precariamente conjurado
pelo convencionalismo jurdico."
A atual conjuntura
mundial dominada pelo processo de globalizao sob a hegemonia
neo-liberal (ou neo-liberista) no faz que acentuar esta situao,
exasperando a contradio entre democracia poltica e social, entre
direitos de liberdade e direitos sociais. De fato, a globalizao dos
direitos humanos no vai no mesmo sentido da globalizao da economia
e da finana mundial que est vinculada lgica do lucro, da
acumulao e da concentrao de riqueza e desvinculada de qualquer
compromisso com a realizao do bem estar social e dos direitos do
homem.
A globalizao dos
direitos humanos tende a incluir um nmero sempre maior de direitos, de
primeira, segunda, terceira, quarta gerao; mas no basta
acrescentar a lista dos direitos para que estes se tornem efetivos.
Existem direitos fundamentais sem os quais a longa lista de direitos se
torna vazia: sem os direitos econmicos e sociais no possvel
garantir os direitos civis e polticos. Os direitos de liberdade s
podem ser assegurados garantindo a cada homem as condies mnimas de
bem-estar social que lhe permita viver com dignidade.
No entanto o processo de
globalizao e a ideologia neo-liberal que o dominam significam um
retorno - e um retrocesso - pura defesa dos direitos de liberdade,
com uma interveno mnima do Estado. Nesta perspectiva no h
lugar pelos direitos econmico-sociais e/ou de solidariedade da tradio
socialista e do cristianismo social; por isto novas e velhas
desigualdades sociais e econmicas esto surgindo no mundo inteiro.
Esta a explicao
mais profunda do que chamamos, no incio, o "paradoxo dos direitos
humanos", isto uma proliferao de direitos que no conseguem
se realizar praticamente fazendo com que as solenes proclamaes
universais arrisquem de se tornar uma retrica vazia.
- TICA, POLTICA, ECONOMIA.
A questo central se
torna, assim, a relao entre tica e poltica, que caracteriza-se,
na modernidade, por dois movimentos contraditrios: de um lado uma
proclamao de direitos que vai sempre mais se estendendo e que poderamos
considerar como a realizao jurdica de um corpus de valores tico-polticos
tendencialmente universais; do outro um movimento contrrio e
preponderante da poltica moderna que, seguindo a inspirao maquiavlica,
tende a separar a tica da poltica e a formular o problema poltico
em termos puramente tcnicos e no mais ticos. A antiga articulao
entre uma concepo da natureza humana (antropologia) que d origem a
uma teoria do comportamento humano (tica) e a uma teoria das condies
necessria para que os homens possam viver uma "vida boa"
(poltica), acaba sendo perdida na modernidade com a autonomizao da
poltica e, conseqentemente da economia, da tica.
No entanto nenhuma
sociedade humana pode prescindir de enfrentar a questo tico-poltica,
que, ao final a questo de que tipo de homem e de cidado se quer
construir. Esta tarefa os antigos confiavam s cincias prticas,
isto as cincias que estudavam a praxis tico-politica, enquanto
atividade que tem como objetivo no a produo de objetos externos ,
mas a transformao do prprio homem.
A praxis coloca-se assim
como mediao entre o indivduo emprico e o indivduo tico, como
afirma H. C. de Lima Vaz:
"Portanto entre
a razo presente na sociedade poltica expressa na lei e no
Direito, e o indivduo natural, estende-se todo o processo de
universalizao, propriamente pedaggico (a Poltica, como a tica
fundamentalmente uma Paideia), que eleva o indivduo condio
de cidado (polits ou civis), indivduo universal porque vivendo
segundo a razo."
Recuperar a dimenso da
prxis tico poltica significa portanto recuperar a funo
educativa da poltica e do Estado que chamado a realiz-la, no no
sentido de impor a todos um nico modelo de comportamento tico - que
conduziria a um tipo de totalitarismo - mas no sentido de uma interveno
positiva direcionada a criar as condies necessrias e suficientes
para o desenvolvimento plenamente humano e tendencialmente universal dos
seus cidados.
Neste contexto a proclamao
dos direitos humanos podem oferecer um terreno comum de consenso e de
entendimento sobre as condies necessrias para realizar plenamente
o ser humano, hoje. Os direitos humanos constituem, se no propriamente
um novo ethos mundial certamente um grande progresso da "autoconscincia
da humanidade" e podem se tornar o ponto de interseo e de
consenso (consensum gentium) entre diferentes doutrinas filosficas, f
religiosas e culturas. Olhando em perspectiva histrica os trgicos
caminhos pelos quais a humanidade enveredou - e continua enveredando -
os direitos humanos constituem um horizonte irrenuncivel do nosso
tempo e uma oportunidade efetiva - ainda que precria porque nada e
irreversvel na histria.
Aparece sempre mais claro
para a "conscincia da humanidade" que, no nosso sculo, sem
estes direitos fundamentais no se pode ser verdadeiramente homens.
Nesta perspectiva os direitos humanos constituem as condies necessrias
para que cada homem possa realizar plenamente as suas potencialidade
humanas nas condies histricas do mundo contemporneo. Por isto
poderamos defini-los mais do que "direitos humanos",
direitos "humanizantes", conforme a sugestiva proposta de
Henrique Cludio de Lima Vaz:
"A razo da
vida poltica exatamente o Direito. Podemos dizer, pois, que
o motivo antropolgico fundamental que rege determinada sociedade
poltica reside no nvel de universalizao que o Direito nela
vigente permite ao indivduo particular alcanar. Nesse sentido,
esse Direito pode ser dito um Direito humano ou mais exatamente,
humanizante, j que a universalizao pelo direito no , por
definio, uma propriedade "natural" do indivduo
particular, mas uma tarefa a ser cumprida historicamente pela
sociedade poltica."
Mas isto requer que a
realizao dos direitos humanos - especialmente dos direitos econmico-sociais
que constituem o fundamento de todo o edifcio - no pode ser deixada
ao "livre jogo das foras do mercado globalizado" mas a
exigem uma interveno poltica ativa dos indivduos, dos povos e
dos organismos internacionais prepostos promoo e defesa dos
direitos humanos.
No mundo das Organizaes
No Governamentais (ONG) se costuma levantar esta palavra de ordem:
agir localmente e pensar globalmente. Hoje devemos fazer um o
adiante e comear tambm no somente a pensar, mas a agir
globalmente. Os desafios da globalizao exigem esta articulao
maior para que a poltica dos direitos humanos esteja presente nos
lugares de decises mundiais que determinam os rumos da humanidade.
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