2k3q71

Razo
e paixo
A
atitude experimentalista e o sucesso
tecnolgico propiciaram o desigual
conforto humano, mas engendraram
o desconforto para o conhecimento,
que imps a si mesmo limites metodolgicos
e restries de incidncia, que
o paralisaram em campos onde o
experimento no pode operar. Nesses
campos, a cincia cotidiana no
entra e os considera o limbo da
metafsica, o exagero da imaginao
artstica e a perfumaria opressora
dos mitos superados.
Mas
ser essa mesma cincia que vai,
a partir da razo analtica, perceber
que fenmenos emergentes no so
mais explicveis pelas "armadilhas
"metodolgicas". preciso
ascender para uma razo que abranja
e se comunique e necessrio
que as barreiras dos saberes sejam
derrubadas, em um movimento de
sntese absolutamente necessrio
para dar conta dos fenmenos novos.
No interior da prpria cincia,
a razo se autotematiza.
Mas,
no ?cotidiano, a opacidade continua.
H um mundo do dej-vu que convive
com o simulacro e a alienao
crescente. Esse mundo operatrio.
D conta dos interesses e racionaliza
as correlaes de fora vigentes.
Mantm e justifica as disparidades.
Aquieta as conscincias. Cria
virtualidades consoladoras e simulacros
generosos. Galvaniza as atenes
e os esforos. D, com seu sem
sentido, sentidos para as vidas.
Saber clivar poder.
Para
um mundo limpo, to limpo como
as mquinas, cuja sujeira permitida
por no ter o odor e a organicidade
dos seres vivos, uma razo limpa,
sem as instabilidades do afeto
e os riscos da paixo. Para que
essa razo analtico-instrumental
sobrevivesse, era preciso separ-la
do afeto. A inteligncia mais
alta aquela que tem a eqidistncia
dos eunucos e a limpidez da gua
destilada. Uma muralha foi construda
entre a razo e a paixo, entre
a cognio e a afetividade, a
se tomar a terminologia piagetiana.
Os ossos limpos so mais respeitados
que as carnes vivas.
O
mundo do dado, como se insurgindo,
no cansou, na histria, de mostrar
que onde a razo brilha, h uma
coexistncia com a paixo, onde
ela desvela, ali est morando
o afeto. Isso pode ser observado,
tanto individual, quanto coletivamente.
No h Einstein sem a paixo pelo
Universo, nem Mozart, sem a paixo
pela Msica, nem Marx, sem a paixo
pelos desvalidos, nem Picasso,
sem a paixo pela forma, cor e
textura, nem movimentos sociais,
sem ? a paixo pela transformao.
A
jaa na razo neutral, que tanto
preocupou os neopositivistas lgicos,
o prprio motor que agua a
descoberta, enriquece o mtodo
e desatavia a criatividade. O
neutral, se houver, s poder
existir no grau zero do conhecimento,
como no satori zen budista, ou
na meditao. Quando a razo comea
a operar, ela est comprometida.
Mas
afastar a razo da paixo til
para efetivar uma dominao sutil:
a dominao que estimula a produo
com a diminuio de angstias
e tenses, a dominao dos controles
mais fceis, dada a previsibilidade
dos seres com sentimentos pequenos
e pouco intensos, a dominao
da criao de necessidades para
amortecer dvidas e tecer existncias
lineares, que procuram se apropriar
de mercadorias, em si, desnecessrias.
a calma das pequenas existncias,
que fazem da poltica e da economia
artes aptas para dominar, incentivando.
a regularidade geomtrica do
cosmos, que pode propiciar uma
certa ordem, apesar da aparente
confuso, uma certa estabilidade,
apesar das excluses, uma certa
serenidade de viver, apesar dos
constantes comandos tanticos.
Assim,
nessa teia de poderes estabeleceu-se
nova dualidade: a do amor, de
um lado, e o da paixo, de outro.
Para o amor foram carreadas todas
as qualidades superiores: o amor
construtivo, o amor solidrio,
o amor doao, o amor o sentimento
da unio serena e estvel. ?
paixo foram reservados os estigmas
do descontrole, da traio, da
agressividade, da infelicidade,
da impreviso e da destruio.
Assim, a paixo se tornou fonte
de atos perigosos, como, no mbito
penal, o homicdio ional.
A
dualidade exposta apresenta um
estrato mais profundo ligado
necessidade de sermos mantidos
mornos. No o amor que se ope
paixo, mas o sentimentalismo
que se ope ao amor apaixonado
ou paixo amorosa. Essa dualidade
traduz outra representada pela
oposio entre reproduo e transgresso.
O sentimentalismo curto. Chora
com o imediato, extravaza emoes
de acordo com os padres e as
etiquetas vigentes. Mas tem vida
curta porque est ligado umbilicalmente
ao espetculo, carga forte e
ageira da cena que assoma,
emociona e se vai. No deixa marcas.
uma concesso momentnea ao
emocional. uma descarga que,
ultraada, possibilita o retorno
vida comum com uma certa sensao
de bonana aps a borrasca. Nada
modificado. Nenhum valor questionado
e nenhuma ao conseqente deriva
dessa medocre novela interior.
Mas, apesar disso, exerce til
papel catrtico, propicia a ageira
sensao de dignidade, engendra,
at mesmo, uma certa haura de
glria, que hipertrofia os egos
batidos pelo cinzento das repeties
e pelo absurdo dos pequenos assassinatos
de cada dia. o sentimento possvel
no horror e o permitido.
O
amor-paixo que move o ser humano
para pontos cruciais, que o lana
p?ara os abismos, ou que o abre
para iluminaes, entrega plenificadora
ou destruidora. luz e trevas,
nunca penumbra. Seu sentido plenificador
ou destruidor est dependente
do valor, est ligado aos projetos,
est demarcado por trajetrias
individuais, sociais ou culturais.
Ele demasiadamente humano. Por
isso, perigoso para a sociedade
de controle. Ele tende a ser abrangente,
mesmo que individualizado, por
traduzir a corporeidade inteira
de quem ama e por ter a intensidade
experiencial que transgride as
previses estatsticas sobre os
comportamentos humanos. Assim,
h uma unidade paixo-amor, inextricavelmente
ligada razo criativa, razo
que descobre, razo que ousa
e h o risco dos sentidos da paixo,
a partir da trajetria destruidora
ou transformadora que a move,
incidirem fortemente sobre a ordem,
trincando-a ou fragmentando-a
e falsa calma que sustenta a
crueldade escondida, as desigualdades
mortais e a capitis diminutio
dos seres humanos. a encruzilhada
entre o mais ser e o menos ser.
o que move. o que possibilita
o corte do crculo vicioso do
cnico e do simulacro. Por isso
deve ser sopitada, por se constituir
num incontrolvel contra-poder
e construir inusitados contra-saberes.
|