No h
poltica sem contradio, no h luta pelos direitos
humanos sem conflitos, obstculos e resistncias: negar
essa realidade recusar a prpria luta, na qual como a
viagem do navegante na poltica e na democracia no h
porto final.
1.
Da Continuidade autoritria consolidao democrtica
Nos anos
sessenta e setenta, a violncia arbitrria do Estado e o
desrespeito s garantias fundamentais fizeram com que
indivduos e grupos se voltassem contra o regime autoritrio
em nome da defesa dos direitos humanos. As primeiras
comisses de direitos humanos foram fundadas a partir dos
anos 1970 e chamaram a ateno para a tortura e
assassinatos de dissidentes e presos polticos, fazendo
revelar as condies gritantes das prises brasileiras.
Nos anos oitenta e noventa, entretanto, o aumento da
criminalidade e da insegurana, agora sob um regime
democrtico, levou indivduos e coletividades a se
voltarem contra a defesa dos direitos humanos, sob o
pretexto que esses serviam mais aos criminosos e delinqentes
do que s vtimas.
Para essa
reviravolta certamente contribuiu , depois da transio
poltica, a defesa dos direitos humanos ar a abranger
a esmagadora maioria pobre, miservel, no-branca, da
populao. Todos aqueles setores identificados com a
ideologia autoritria, perdida a hegemonia do poder,
encontraram na denncia da comunidade dos direitos
humanos um pretexto para, em nome da luta contra o crime e
contra a insegurana, denegrirem a comunidade dos que
defendiam os direitos humanos. A apologia da violncia em
programas de rdio e de televiso, em campanhas
eleitorais, somada emergncia de movimentos religiosos
fundamentalistas, em concorrncia com a igreja catlica
omissos quanto defesa dos direitos humanos, tiveram um
papel crucial para a percepo daqueles direitos como
danosa para os cidados que justamente visava proteger.
Nesse mesmo
perodo, o medo do crime e o sentimento de insegurana,
que nas comunidades populares estimulou o recurso aos
grupos de extermnio sucessores dos esquadres da
morte do regime autoritrio - fizeram com que as
coletividades com mais recursos se armassem e contratassem
servios privados de segurana, legais ou ilegais(1). No
preciso dizer que essa reao, previsvel diante da
falta de eficincia e legitimidade dos servios pblicos
de segurana e justia, mesmo depois da transio para
a democracia, acelerou o aumento da violncia.
A questo
saber como esta nova concepo dos direitos humanos,
refletida e fortalecida pelo Programa Nacional de Direitos
Humanos - PNDH, lanado pelo Presidente Fernando Henrique
Cardoso, em 13 de maro de 1.996, afeta o sistema poltico
no Brasil. O desafio avaliar se essa nova concepo
pode contribuir efetivamente para diminuir a violncia e
a criminalidade e para aumentar o grau de respeito aos
direitos humanos no pas.
Embora no
seja ainda possvel medir o grau de aumento do respeito
aos direitos humanos no Brasil, podemos afirmar, avaliando
o debate pblico no interior das instituies, na mdia
e na opinio pblica, que desde o lanamento do PNDH
houve uma diminuio da tolerncia em relao
impunidade e s violaes de direitos humanos. Essa
mudana de atitude a mdio prazo poder contribuir para
diminuir a aquiescncia de largos setores da populao,
tanto nas elites como nas classes populares, em relao
a atos arbitrrios que venham a ser cometidos pelo Estado
nessa fase do processo de consolidao democrtica.
Graves violaes
de direitos humanos continuam a ocorrer em todo territrio
nacional, muitas vezes com o omisso de governos
estaduais ou com a participao de funcionrios. Mesmo
depois do Programa - que no uma vara de condo mgica
que faz cessar instantaneamente o arbtrio violaes
ocorreram como o massacre de trabalhadores sem-terra em
Eldorado dos Carajs, no Par; as torturas e assassinato
por policiais militares na Favela Naval, em So Paulo e
torturas por policiais militares na Cidade de Deus, no Rio
de Janeiro; o assassinato de dois trabalhadores em
Paraopeba, no Par; e o envolvimento de policiais
militares de So Paulo em chacinas. Esses so os casos
mais conhecidos de longa lista de horrores que persiste.
Basta abrir qualquer jornal para constatar a freqncia
das execues extrajudiciais, das chacinas, da ao de
justiceiros e grupos de extermnio e a impunidade dos
responsveis por estes crimes.(2)
Desde o
retorno ao governo civil e democracia tem, entretanto,
ficado clara a tenso entre o governo federal, com uma
poltica mais pr-ativa de promoo dos direitos
humanos, e a conivncia ou omisso nos estados de
governos e funcionrios ou dirigentes das instituies
de controle da violncia secretarias de estado, judicirio,
ministrio pblico e polcias. No campo de foras onde
atua essa tenso, a diferena agora o governo federal
no dar mais sustentao (como aconteceu durante o
regime autoritrio) ou sistematicamente omitir-se (como
durante a democracia populista) diante das violaes de
direitos humanos. Ao contrrio, o governo federal ou
a exercer um papel decisivo na proteo e promoo dos
direitos humanos, visando debelar a continuidade de prticas
ilegais e violentas de resoluo de conflitos.(3)
2.
A definio de uma poltica de direitos humanos(4)
Em meados dos
anos oitenta, j comeava a ficar claro que o
desenvolvimento econmico e social e a transio para
democracia, ainda que necessrios, no eram suficientes
para conter o aumento da criminalidade e da violncia no
Brasil. Ficava patente que esse fenmeno constitua um
grande obstculo e uma ameaa aos processos de
desenvolvimento e de consolidao da democracia. A questo
era saber se esta tendncia de banalizao da
criminalidade, da violncia e da morte poderia ser
controlada e revertida ou se ela acabaria por consumir os
recursos humanos da sociedade brasileira a ponto de
inviabilizar os processos de desenvolvimento e de
consolidao da democracia no pas.(5)
Como
reconheceu o ento Ministro da Justia, Dr. Nelson
Jobim, o lanamento do Programa Nacional de Direitos
Humanos, PNDH, situa-se na esteira dos trabalhos
precursores do Senador Severo Gomes na elaborao da
"carta de direitos" do artigo 5 da Constituio
de 1988, e das iniciativas do ex-ministro da Justia,
Maurcio Corra, no governo do Presidente Itamar Franco,
propondo projetos de lei contra a violncia resultantes
de vasto dilogo com a sociedade civil.
Com o objetivo
de limitar, controlar e reverter as graves violaes de
direitos humanos e implementando uma recomendao da
Conferncia Mundial de Direitos Humanos realizada em
Viena em 1993 - na qual o Brasil teve papel muito atuante,
pois foi o embaixador Gilberto Sabia quem coordenou o
comit de redao da Declarao e Programa de Viena
o governo Fernando Henrique Cardoso decidiu integrar
como poltica de governo a promoo e realizao dos
direitos humanos propondo um plano de ao para direitos
humanos. Em 7 de setembro de 1995, o Presidente anunciava:
"Chegou a hora de mostrarmos, na prtica, num plano
nacional, como vamos lutar para acabar com a impunidade,
como vamos lutar para realmente fazer com que os direitos
humanos sejam respeitados".
Ao assumir
esse compromisso, o governo brasileiro reconhece a obrigao
do estado de proteger e promover os direitos humanos e os
princpios da universalidade e da indivisibilidade dos
direitos humanos. No texto introdutrio diz o Programa:
"Os direitos humanos no so porm, apenas um
conjunto de princpios morais que devem informar a
organizao da sociedade e a criao do direito.
Enumerados em diversos tratados internacionais e constituies,
asseguram direitos a indivduos e coletividades e
estabelecem obrigaes jurdicas concretas aos Estados.
Compem-se de uma srie de normas jurdicas claras e
precisas, destinadas a proteger os interesses mais
fundamentais da pessoa humana. So normas cogentes ou
programticas, que obrigam os Estados nos planos interno
e externo".
Para sinalizar
esse compromisso, o governo federal criou um Prmio
Nacional de Direitos Humanos a ser distribuido no dia 7 de
setembro, data da Independncia, que desde 1995 ou a
ser tambm uma data dedicada aos direitos humanos. As
candidaturas so apresentadas e os premiados escolhidos
por um comit independente sendo dois na categoria
personalidades, dois entre ongs e dois em trabalhos de
estudantes e universitrios, que recebem prmios pecunirios
oferecidos por empresas privadas. A primeira personalidade
a receber o prmio em 1995 foi o Cardeal Dom Paulo
Evaristo Arns, ento Arcebispo de So Paulo.
O PNDH reflete
e fortalece uma mudana na concepo de direitos
humanos, j partilhada anteriormente por organizaes
de direitos humanos, mas pela primeira vez adotada e
defendida pelo governo brasileiro na histria
republicana, segundo a qual os direitos humanos devem ser
os direitos todos: a cidadania plena no deve estar
limitada, como na tradio brasileira, s elites. As no-elites
so sujeitos plenos de direitos. am a abranger os
direitos definidos em tratados internacionais ratificados
pelo Congresso Nacional.
O governo
brasileiro e os estados da federao obrigam-se a
proteger no apenas os direitos humanos definidos nas
constituies nacional e estaduais, mas igualmente os
direitos humanos definidos em tratados internacionais,
reconhecidos como vlidos para aplicao interna pela
Constituio de 1988.
Alm disso, a
nova concepo de direitos humanos implica que os
Estados nacionais na comunidade internacional tenham o
direito de agir para proteger os direitos humanos em
outros pases e reconheam o direito de outros Estados
de defenderem a realizao dos direitos humanos dentro
do seu prprio territrio. Reconheceu o direito de indivduos,
coletividades e organizaes no governamentais no
Brasil procurarem o apoio de outros Estados e de entidades
internacionais para a proteo e promoo de direitos
humanos no Brasil.
3.
O Programa Nacional de Direitos Humanos
Em 13 de maio
de 1996, em meio ao trauma causado pelo massacre em
Eldorado dos Carajs, o governo Fernando Henrique Cardoso
lanou o Programa Nacional de Direitos Humanos/PNDH(6).
Foi o primeiro programa para proteo e promoo de
direitos humanos da Amrica Latina, e o terceiro no
mundo(7), elaborado em parceria com a sociedade civil, sob
a coordenao de Jos Gregori, chefe de gabinete do
Ministro da Justia, Nelson Jobim, responsvel pela
preparao do Programa.
incontestvel
que o Programa j contribuiu para a realizao de mudanas
importantes no estado e na sociedade (e no relacionamento
entre eles) e contm princpios e propostas de ao
que podem servir de base para a construo de
alternativas para o tradicional arbtrio dos governos em
relao a maioria da populao pobre e sem o
realizao plena de seus direitos.
Num curto espao
de tempo, o programa atingiu um dos seus objetivos e
ou a ser quadro de referncia para as aes de
governamentais e para a parceria do Estado e governo com
as organizaes da sociedade civil. A sociedade cobrou
do governo federal, e este ou a cobrar dos governos
estaduais e municipais, do Congresso Nacional, do Judicirio
e da sociedade participao na implementao do
programa. Em abril de 1997, o governo federal criou a
Secretaria Nacional de Direitos Humanos no Ministrio da
Justia, para coordenar e monitorar a execuo do
programa, sendo seu primeiro titular Jos Gregori, com
larga militncia na sociedade civil, antigo presidente da
Comiso Justia e Paz de So Paulo, entidade com papel
chave na resistncia ao regime autoritrio, e da Comisso
Teotnio Vilela de Direitos Humanos(8).
Depois do lanamento,
organizaes no-governamentais nacionais, como o
Movimento Nacional de Direitos Humanos, e internacionais,
como a Anistia Internacional e Human Rights Watch/Americas,
aram a acompanhar a execuo do Programa e algumas
foram chamadas a colaborar para a sua implementao. No
dia 13 de maio de 1997, no primeiro aniversrio do
Programa, o Presidente da Repblica, Fernando Henrique
Cardoso, determinou que todas as instncias do governo
federal fornecessem informaes sobre a execuo das
metas do Programa e que submetessem Presidncia
propostas para a implementao do Programa.
Nos dias 12 e
13 de maio de 1.997, um ano depois do lanamento do
programa, a Segunda Conferncia Nacional de Direitos
Humanos se reuniu em Braslia com mais de quatrocentos
participantes, sem que nenhum recurso pblico financiasse
a viagem ou estada desses representantes de organizaes
da sociedade civil na capital federal para fazer uma
avaliao do Programa Nacional de Direitos Humanos. Essa
Conferncia foi precedida de reunies estaduais de
avaliao do programa promovidas em nove estados e no
Distrito Federal, organizadas por conselhos estaduais de
defesa dos direitos da pessoa humana, comisses de
direitos humanos das assemblias legislativas e organizaes
de direitos humanos(9). Ficou patente nos relatrios,
tanto das plenrias, como dos grupos de trabalho na
Conferncia, o alto grau de profissionalismo, sofisticao
e objetividade das discusses, tomando por base as
concluses da Primeira Conferncia e a avaliao da
implementao do Programa.
Apesar dessa
larga legitimao do Programa junto s organizaes
da sociedade civil, parte da comunidade poltica e da
comunidade universitria ainda tm dificuldade para
entender o significado do Programa. Entre as objees
habitualmente apresentadas desde o lanamento do plano
est a crtica de que o plano privilegia os direitos
civis e polticos. Mesmo reconhecendo a indivisibilidade
dos direitos humanos, como discutiremos mais adiante, dada
a extrema carncia da apropriao dos direitos
fundamentais mais bsicos, aqueles chamados de primeira
gerao (os direitos civis e polticos) legtimo
que um plano de governo decida dar prioridade promoo
desses direitos. Sem a proteo desses direitos a
sociedade civil sempre ter dificuldades de organizar-se
e de mobilizar-se em defesa dos direitos econmicos,
sociais e culturais, tendo em vista a ameaa de
impunidade, do arbtrio das polcias, das violaes
integridade fsica dos cidados, que ainda perdura sob a
democracia.
O programa
mais que o conjunto de 228 propostas de ao
governamental para proteger e promover os direitos humanos
no Brasil: um processo de construo da realizao
dos direitos humanos numa parceria entre o Estado e as
organizaes da sociedade civil. um quadro de referncia
para a concretizao das garantias do estado de direito
e para a ao em parceria do Estado e da sociedade
civil. a afirmao de nova concepo de direitos
humanos, como conjunto de direitos, universais e indissociveis,
definidos em constituies e leis nacionais e que
correspondem a obrigaes assumidas em tratados
internacionais ratificados pelo Congresso Nacional. Os
direitos humanos, segundo essa concepo, so direitos
definidos em tratados internacionais que os estados esto
obrigados a garantir nas relaes com outros estados e
nas relaes com a sociedade e com os indivduos e
coletividades dentro do prprio territrio(10).
A afirmao
desta concepo de direitos humanos, bastante clara no
texto introdutrio e em propostas de ao contidas no
Programa, tem implicaes prticas na estrutura do
sistema poltico e na dinmica do processo poltico no
Brasil. Indivduos e coletividades se tornam beneficirios
das garantias e da proteo do direito internacional dos
direitos humanos. D a indivduos e coletividades que tm
seus direitos violados ou no garantidos pelo Estado,
o a mecanismos internacionais para proteo desses
direitos como por exemplo a Comisso de Direitos
Humanos, a Subcomisso de Preveno contra a Discriminao
e Proteo das Minorias, o Comit contra a Tortura, o
Comit para a Eliminao da Discriminao Racial, da
ONU, e a Comisso Interamericana de Direitos Humanos, no
mbito da Organizao dos Estados Americanos.
O PNDH
permitiu que instituies existentes no mbito federal,
como o Conselho Nacional de Proteo dos Direitos da
Pessoa Humana, CDDPH, do Ministrio da Justia, que data
do governo Joo Goulart, assumisse papel mais decisivo.
Desde o lanamento do Programa, o CDDPH tem exercido um
efetivo papel para realizao da ability,
da responsabilizao das instituies e autoridades da
unidades da federao quanto a violaes de direitos
humanos em seus estados. Nas reunies daquele Conselho
tem sido comum a presena de governadores de estado,
secretrios da justia e da segurana, procuradores de
justia, comandos policiais, que informam sobre casos
exemplares de graves violaes de direitos humanos em
seus estados. O CDDPH tem enviado regularmente comisses
de investigao composta por seus membros para
investigarem graves denncias e apresentarem relatrios
propondo aes coibindo os abusos.
No plano
internacional tem-se igualmente destacado a poltica
nacional de direitos humanos definida no mbito do PNDH.
Desde o momento do anncio da inteno de elaborar um
plano nacional de direitos humanos em 7 de setembro de
1995, o governo federal, por vontade poltica, ou a
prestar contas de suas aes e omisses na rea dos
direitos humanos e se tornou mais sensvel s crticas,
estmulos e sugestes das ongs brasileiras e
estrangeiras atuando na rea dos direitos humanos. A ao
no mbito internacional tem em sido levado a cabo com o
benefcio de uma estreita colaborao entre a
Secretaria Nacional de Direitos Humanos e o Departamento
de Direitos Humanos e Temas Sociais, criado em 22 de
dezembro de 1.995, pelo Chanceler Luiz Felipe Lampreia, no
Ministrio das Relaes Exteriores.
Estreitaram-se
as relaes e o dilogo com a Comisso Intermericana
de Direitos Humanos, que foi convidada a visitar o Brasil
e que publicou em 1998 um Relatrio de Direitos Humanos
no Brasil, que alis reconhece vrios avanos
realizados. Deve ser lembrada a recente aceitao em
1998 ao procedimento de soluo amistosa pelo governo
federal quanto ao caso de asfixia de presos comuns no 42o
Distrito Policial em So Paulo: o governo federal
reconheceu ter havido grave violao de direitos humanos
por parte de autoridades do estado de So Paulo em
istrao ada. O governo de So Paulo decidiu
dar indenizao a todas as famlias das vtimas e
solicitar agilidade na aplicao das penas dos culpados
( um dos criminosos j havia tido a sentena ado em
julgado mas estava ainda em liberdade).
Em parceria
com o Ministrio das Relaes Exteriores, a Secretaria
Nacional de Direitos Humanos publicou o relatrio sobre a
implementao da Conveno Internacional sobre a
Eliminao de Todas as Formas de Discriminao Racial,
com base em texto elaborado pelo Ncleo de Estudos da
Violncia da Universidade de So Paulo. A aceitao do
procedimento de soluo amistosa e a apresentao
regular de relatrios aos tratados e convenes
internacionais so indicadores claros e consistentes da
aceitao do Brasil do monitoramento dos direitos
humanos pelo sistema internacional das Naes Unidas e
pelo sistema interamericano.
4.
A implementao do Programa Nacional de Direitos Humanos
O Programa,
ainda que reconhea a indivisibilidade dos direitos
humanos, e a importncia dos direitos econmicos,
sociais e culturais, ressalta a garantia dos direitos
civis, particularmente dos direitos vida,
integridade fsica e justia. Da mesma forma que no
direito internacional dos direitos humanos existe um Pacto
Internacional de Direitos Civis e Polticos e outro Pacto
Internacional de Direitos Econmicos, Sociais e
Culturais, o governo brasileiro, ao situar a
responsabilidade pelo Programa no Ministrio da Justia,
sinaliza a necessidade de ressaltar a realizao plena
dos direitos civis.
Essa
particularidade justificada no prprio programa:
"Para que a populao, porm, possa assumir que os
direitos humanos so direitos de todos, e as entidades da
sociedade civil possam lutar por estes direitos e
organizar-se para atuar em parceria com o Estado,
fundamental que os seus direitos civis elementares sejam
garantidos e, especialmente, que a Justia seja uma
instituio garantidora e vel para qualquer
um." Mesmo dando nfase aos direitos civis, o
Programa contempla inmeros direitos econmicos e
sociais, ao tratar , por exemplo , dos direitos das crianas,
dos negros, das mulheres, deixando claro no haver uma
compartimentao entre os diversos conjuntos de
direitos.
Em suma, o
Programa exprime plena conscincia de que, para a violncia
criminal ser plenamente debelada, a "violncia
estrutural" da pobreza, da fome, do desemprego seja
enfrentada. Em termos da ao governamental imediata,
motivada por razes de emergncia diante de situaes
claramente epidmicas homicdios por exemplo deve
ser enfrentado o desafio da construo plena do estado
de direito, onde os direitos civis ganham necessariamente
proeminncia.
O que mudou na
poltica do governo federal com relao aos direitos
humanos durante este perodo? Desde o lanamento do
Programa, o governo federal fez propostas para combater a
impunidade, principalmente no caso de crimes contra a vida
e a integridade fsica das pessoas e de crimes cometidos
por agentes do estado(11). Algumas dessas medidas poderiam
ter sido adotadas independentemente do Programa Nacional
de Direitos Humanos. Muitas delas, entretanto, puderam ser
adotadas em carter de urgncia porque o governo federal
comprometeu-se a adot-las ao lanar o PNDH e porque a
sociedade cobrou do governo federal a adoo dessas
medidas e em vrios casos colaborou em parceria para a
adoo dessas reformas.
Para o
cumprimento dos objetivos do PNDH, o Congresso Nacional
aprovou em dois anos, em meio a uma intensa votao de
reformas constitucionais, uma srie de medidas legais
previstas no Programa(12), que protegem direitos
assegurados pela Declarao Universal dos Direitos
Humanos de 1948. Esses direitos esto ligados diretamente
ao controle do exerccio do monoplio da violncia fsica
legtima pelo Estado: a saber, o Artigo 3 da Declarao
proclama que toda pessoa tem direito vida, o direito
liberdade, e o direito segurana da pessoa; o Artigo
5, pelo qual ningum ser submetido a tortura, nem a
tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante e o
Artigo 9, segundo o qual ningum ser arbitrariamente
preso, detido ou exilado. Quando esses trs direitos
fundamentais so violados podemos falar de graves violaes
de direitos humanos universalmente reconhecida: execues
sumrias, tortura e desaparecimentos decorrem diretamente
desses trs artigos.
Essas violaes
constituem o que poderia ser chamado de tringulo
fatal porque elas ocorrem muitas vezes
simultaneamente. Complementando esses artigos da Declarao,
h vrios dispositivos no Pacto Internacional dos
Direitos Civis e Polticos (1976) que clarificam a
responsabilidade do Estado no apenas na represso mas
na preveno das violaes no mbito desse tringulo
fatal quais sejam o Artigo 6, segundo o qual o direito
vida inerente pessoa humana. Ningum poder ser
arbitrariamente privado de sua vida.; o Artigo 7, que diz
respeito tortura e outros tratamentos cruis e
degradantes que protegem no somente as pessoas detidas
ou presos mas todos aqueles internados em instituies
totais, e finalmente o Artigo 9 que determina que todo
indivduo tem direito liberdade e segurana da
pessoa. No mbito do PNDH, foram aprovadas trs leis,
que investem claramente para coibir o tringulo fatal
das violaes.
-
Reconhecimento
das mortes de pessoas desaparecidas em razo de
participao poltica (Lei n.. 9.140/ 95), pela
qual o Estado brasileiro reconhece a responsabilidade
dos governos ditatoriais por essas mortes e concede
indenizao a seus familiares. Essa iniciativa
constitui uma poderosa iniciativa para a reconstituio
da verdade.
-
Transferncia
da justia militar para a justia comum de crimes
dolosos praticados por policiais militares (Lei
9.299/96), que permitiu que os policiais militares
responsveis pelos massacres ocorridos na Casa de
Deteno do Carandiru, em So Paulo, de Corumbiara,
em Rondnia e em Eldorado de Carajs, no Par
fossem indiciados e levados ao Tribunal do Jri.
-
Tipificao
do crime de tortura, com penas severas (Lei 9.455/97),
tornando possvel a aplicao efetiva dos preceitos
da Conveno contra Tortura e outros instrumentos
cruis e degradantes ratificada pelo Brasil
Quando, ao
lado dessas trs leis, for sancionado o Projeto de Emenda
Constitucional proposto pelo governo federal para dar
Justia Federal competncia para julgar crimes contra os
direitos humanos, o PNDH ter conseguido assegurar
instrumentos jurdicos decisivos para debelar a
impunidade. Esse projeto (PEC 368/96) j foi aprovado aos
4 de abril de 1.997, pela Comisso de Constituio e
Justia da Cmara dos Deputados e continua em tramitao
no Congresso Nacional.
-
Alm
dessas leis e projeto foram ainda implementadas as
seguintes iniciativas:
-
Criminalizao
do porte ilegal de arma e criao do Sistema
Nacional de Armas, SINARM (Lei n.9.437/97)
-
Obrigao
da presena do Ministrio Pblico em todas as fases
processuais que envolvam litgios pela posse da terra
urbana e rural (Lei n. 9.415/96).
-
Estabelecimento
do rito sumrio nos processos de desapropriao de
terra para fins de reforma agrria (Lei complementar
no.88/96)
-
Novo cdigo
de trnsito (Lei n.9.503/97)
-
Universalizao
da gratuidade de certido de nascimento e de bito.
-
Estatuto
dos refugiados (Lei n.9.474/97).
-
Remessa ao
Congresso Nacional de Projetos de Lei:
-
aumentando
de 12 para 14 anos a idade mnima para trabalho de
adolescentes (PEC n.368/96);-
-
revendo
a legislao para coibir trabalho forado (PL n.3649/97)
e
-
ampliando
as possibilidades da aplicao de penas
alternativas (PL n.. 2.684/96).
Alm dessas,
vale mencionar aqui, guisa de exemplo, algumas das inmeras
medidas implementadas pelo Ministrio da Justia, em
parceria com entidades de direitos humanos e centros de
pesquisa, por meio da Secretaria Nacional de Direitos
Humanos:
-
Implantao
de programas de servio civil voluntrio, constitudos
por jovens, recm sados das escolas, para serem
formados como agentes da cidadania atuando para a
proteo dos direitos humanos, em parceria com
entidades da sociedade civil em Braslia e no Rio de
Janeiro.
-
Elaborao,
em convnio com o Centro de Estudos de Cultura
Contempornea, CEDEC, So Paulo. quatro de mapas de
Violncia Urbana, com base em dados e indicadores nas
cidades de So Paulo, Curitiba, Rio de Janeiro e
Salvador.
-
Criao
de programas de proteo a testemunhas, a partir da
experincia anterior do Gajop (Gabinete de Assessoria
Jurdica a Organizaes Populares), Recife/PE com a
Secretaria de Justia do estado de Pernambuco
partiu-se para construo de uma rede de proteo
a testemunhas e vtimas de crimes no mbito do
PROVITA. Alm de Pernambuco j foram treinadas
equipe nos estados da Bahia, Esprito Santo, Rio de
Janeiro e Rio Grande do Norte.
-
Criao
de Balces de Direito para prestao de
servios gratuitos de assessoria jurdica, auxlio
na obteno de documentos bsicos e mediao de
conflitos para populaes de comunidades carentes em
convnio com o Viva Rio , no Rio de Janeiro e com
Cevic (Centro de Atendimento a Vtimas de Crime) no
Paran.
-
Realizao
de cursos de reciclagem, capacitao e treinamento
de policiais civis e militares, com nfase no
respeito aos direitos humanos por meio de convnios
com a Anistia Internacional, Cruz Vermelha
Internacional e Faculdade Latino-Americana de Cincias
Sociais.
-
Elaborao
de manual de direitos humanos para informar e treinar
os integrantes de organizaes governamentais e no-governamentais
responsveis pela implementao do PNDH, elaborado
em conjunto com centenas de entidades e lideranas da
sociedade civil(13).
Foram iniciado
programas especficos visando:
-
valorizar
a populao negra atravs do Grupo de Trabalho para
Eliminao da Discriminao;
-
prevenir e
tratar AIDS e doenas sexualmente transmissveis;
-
coibir o
trabalho infantil, inclusive atravs de bolsas-educao;
-
erradicar
a explorao sexual infanto-juvenil;
-
coibir o
trabalho forado atravs do Grupo de Represso ao
Trabalho Forado;
-
assentar
trabalhadores rurais sem terra;
-
demarcar
terras indgenas.
5.
Perspectivas
So inegveis
as mudanas e avanos nas polticas governamentais no
que se refere proteo e promoo dos direitos
humanos durante o segundo ano de vigncia do Programa
Nacional de Direitos Humanos.
H vrias aes
propostas no Programa que comeam a ser implementadas,
sem as quais a poltica governamental de proteo dos
direitos humanos ficaria prejudicada, em particular as
medidas referentes implementao e monitoramento do
PNDH.
Desde os
primeiros seminrios regionais de preparao do PNDH,
assim como nas trs conferncias nacionais de direitos
humanos, em 1.996, 1.997 e 1.998, promovidas pela Comisso
de Direitos Humanos da Cmara de Deputados e nos
encontros regionais do Movimento Nacional de Direitos
Humanos (que contaram com apoio da Secretaria Nacional de
Direitos Humanos) ficou claro que a implementao
deveria ser acompanhada por um grupo autnomo e
independente. Foi, assim, constitudo o Ncleo de
Acompanhamento do PNDH(14).
A soluo
encontrada foi reunir um grupo de consultores
independentes, com a responsabilidade de acompanhar a
implementao e atualizao do Programa Nacional de
Direitos Humanos, inclusive de receber sugestes e
queixas sobre o seu cumprimento. Foram estabelecidos vnculos
estreitos do Ncleo com cada estado da federao dada a
magnitude e diversidade das tarefas de execuo do PNDH.
Uma das idias que est sendo posta em prtica a
constituio de "pontos focais" nas diversas
unidades da federao, que podem abranger secretarias de
governo, universidades, centros de pesquisa, ministrio pblico
e organizaes no governamentais.
Essa concepo
de rede orientou a montagem em cada estado de um
"ponto focal" visando a preparao do primeiro
relatrio de direitos humanos. Foi enviada para cada
governador de estado comunicao informando a sistemtica
que dever presidir a elaborao dos informes estaduais
que iro compor a documentao sobre a qual ser
elaborado o relatrio nacional.
Um roteiro
fundamentado no PNDH foi elaborado, enunciando as questes
e indicando qual a documentao que deveria comear a
ser coletada, sob a responsabilidade de um secretrio de
estado ou assessor direto do governador. Os membros do Ncleo,
no seu estado de domiclio, integram necessariamente o
"ponto focal" respectivo.
Os resultados
desse roteiro, somados a informaes de outros relatrios
e instituies coligidas pelos "pontos
focais", sero consolidadas e processadas pelo Ncleo
de Estudos da Violncia, NEV/USP. Os consultores do Ncleo
de Acompanhamento faro o primeiro exame da verso
preliminar do relatrio no segundo semestre se 1.998,
encaminhando crticas e sugesto para a preparao da
verso final.
Pela primeira
vez na histria da Repblica, graas necessidade de
monitoramento do PNDH, o governo federal pede informaes
sobre direitos humanos s unidades da federao. O
relatrio nacional de direitos humanos, a ser lanado no
dia 10 de dezembro de 1998, data do cinqentenrio da
Declarao Universal de Direitos Humanos ser o
primeiro a ser lanado pelo Estado brasileiro. Dessa
forma, o governo federal e os governos estaduais
contribuiro para a transparncia das violaes de
direitos humanos, para a punio de seus responsveis e
para a preveno dessas violaes. Esse relatrio ser
decisivo para a luta contra a impunidade, ajudando a
construir uma convivialidade voltada para a realizao
do horizonte dos direitos humanos.
O que est em
questo no apenas a implementao do Programa, mas
a institucionalizao de polticas pblicas capazes de
impedir a prtica de graves violaes de direitos
humanos, muitas vezes, ainda, com impunidade garantida,
pondo em risco a construo de um estado de direito vlido
para as elites e as no-elites.
A realizao
dos direitos humanos, como ficou claro depois da Declarao
e do Programa de Direitos Humanos de Viena, essencial
para a consolidao da democracia. A poltica de
direitos humanos deve integrar todas as polticas de
governo e no ser apenas uma preocupao excntrica de
algumas esferas do poder pblico. a realizao dos
direitos humanos que pode dar a medida precisa do grau de
controle que as no-elites exercem sobre as elites,
requisito primordial para uma democracia que inclua todos
os cidados.
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* Paulo Srgio
Pinheiro coordenador do Ncleo de Estudos
da Violncia e Professor Titular do Departamento de Cincia
Poltica, FFLCH, USP. Foi relator do projeto do Programa
Nacional de Direitos Humanos-PNDH e Coordenador do Ncleo
de Acompanhamento do PNDH. Relator Especial da ONU para
o Burundi e Membro da subcomisso de Preveno da
Discriminao e Proteo das Minorias da ONU.
** Paulo de
Mesquita Neto doutor em cincia poltica
pela Universidade de Columbia, New York. Pesquisador
Senior do Ncleo de Estudos da Violncia, Professor
Colaborador do Departamento de Cincia Poltica, FFLCH,
USP. Foi relator-geral executivo do Programa Nacional de
Direitos Humanos e relator do Programa Estadual de
Direitos Humanos em So Paulo.
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