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"A Globalizao e o Direito"
Realinhamento Constitucional(*)
Oscar
Vilhena Vieira
Doutor
e Mestre em Direito pela Universidade de So Paulo, Master
of Laws / Columbia University, USA,
Professor da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo,
Secretrio-Executivo do Instituto Latino-Americano das Naes
Unidas para Preveno do Delito e Tratamento do Delinqente.
Sumrio
6y21u
1.
Introduo. 2. Constitucionalismo histrico. 3.
Constitucionalismo regional.
4. Cosmopolitismo
tico dos direitos humanos. 5. Economia constitucional.
1. Introduo
Os
sistemas constitucionais vm sendo fortemente pressionados
por diversas demandas impostas por um cenrio internacional
em rpida reconfigurao. O objetivo deste texto analisar
o processo de realinhamento constitucional decorrente dessas
presses. Pretendo abordar alguns desses fatores de presso
e o impacto que eles tem provocado sobre as diversas ordens
constitucionais. Esse, porm, no um processo
unidirecional. Assim como est havendo uma internacionalizao
do direito constitucional, buscarei demonstrar que tambm tem
ocorrido um movimento inverso, pelo menos em alguns setores
dessa integrao, que a constitucionalizao de setores
do sistema internacional, poltico e jurdico. Trata‑se,
portanto, de uma via de mo dupla, ainda que embrionria em
muitas esferas.
Centrarei
minha ateno em trs movimentos distintos que vm
rearticulando o constitucionalismo contemporneo: a regionalizao,
representada pela unio de Estados, com fins especficos;
o cosmopolitanismo tico,
decorrente do desenvolvimento de um sistema universal de
direitos humanos; e a globalizao
econmica, que busca estabelecer um habitat ideal para a
livre circulao e atuao do capital transnacional por
todo o globo.
O
primeiro desses movimentos que tm causado uma reconfigurao
dos sistemas constitucionais decorre da formao de blocos
regionais, onde, em funo de uma integrao econmica,
surge a necessidade de uma integrao de ordem poltica e jurdica.
A Unio Europia o grande exemplo e que ser aqui analisada.
Mercosul, Nafta, Asean e Sadec esto apenas comeando. Desde
1951, quando Frana, Alemanha, Itlia e os Pases Baixos
resolveram somar esforos e criar a Comunidade Europia do Carvo
e do Ao, a Europa vem inovando institucionalmente e dando
os, significativos para uns, equivocados para outros, no sentido
da constituio de uma nova entidade poltica. A ltima
etapa desse processo de integrao foi o lanamento de uma
moeda nica, o que sem dvida nenhuma constitua atributo
exclusivo dos Estados soberanos.
O
segundo movimento que aqui ser analisado decorre do
desenvolvimento de um sistema internacional de direitos humanos
a partir do final da Segunda Guerra. Esse movimento tambm tem
provocado a mtua "contaminao" do sistema
constitucional e global. O sistema europeu e o sistema
interamericano de proteo dos direitos humanos so uma prova
disso; a adoo da Corte Internacional Criminal Permanente,
como estipulada pelo Tratado de Roma de 1998, outro bom
exemplo desse fenmeno. Por outro lado, est ocorrendo uma
internacionalizao do direito constitucional, seja pela
incorporao dos tratados de direitos humanos como parte do
direito interno, seja por um mimetismo, que tem feito com que as
constituies se paream cada vez mais, no que se refere a
suas cartas de direitos, aos instrumentos internacionais de
direitos humanos.
O
terceiro movimento, reconhecido como globalizao econmica,
no decorre de uma ao deliberada de estadistas, com
objetivos ticos, como no caso dos direitos humanos, ou poltico-econmicos,
aqui no sentido do fortalecimento coletivo das economias de
uma determinada regio, como no caso da Unio Europia, mas
de uma retrica voltada a justificar a expanso e os interesses
do capital dos pases de economia central, especialmente os
Estados Unidos. Essa expanso tem sido legitimada ideologicamente
pelo neoliberalismo. Embora essa onda j se encontre em
refluxo, ela continua exercendo uma forte presso sobre os
sistemas constitucionais, especialmente aqueles que reconhecem
direitos de carter social. Essa idia de minimizao da ao
do Estado e liberdade total ao capital internacional, que
encontra seus fundamentos tericos em autores como Friedrich
von Hayek e Milton Friedman, foi finalmente cristalizada no
chamado Consenso de Washington, que resume a planilha
neoliberal a ser aplicada como antdoto inflao,
ineficincia do Estado e s fragilidades do mercado,
especialmente nos pases perifricos. Nesse sentido, as
constituies que apontam para rumos distintos vem‑se
pressionadas a se realinhar, como poderemos verificar com o
caso brasileiro.
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2.
A histria no comea
aqui
A
pretenso universalista no constitui uma novidade para o
constitucionalismo. Basta lembrar que a Declarao dos
Direitos do Homem e do Cidado de 1789, uma das pedras
fundadoras do que conhecemos hoje por constitucionalismo, j
buscava influenciar as demais naes ao estabelecer em seu
art. XVI que toda a sociedade que no assegura a garantia
dos direitos, nem determine a separao de poderes, no tem
constituio. Nesse sentido, a Constituio era a chave
para o ingresso no mundo civilizado.
Esse
peculiar modo de se organizar o Estado liberal moderno no
foi, no entanto, consensualmente recebido. Diversas tm sido as
crticas ao constitucionalismo nesses ltimos 200 anos.
direita, a pretenso universalista do constitucionalismo
racionalista foi contestada por uma forte reao historicista,
a exemplo da formulada por Edmund Burke, em suas Reflexes
sobre a Revoluo em Frana. Nesse livro , em que analisa
os acontecimentos decorrentes da Revoluo, Burke faz fortes
crticas ao projeto iluminista de se estabelecer uma ordem poltico‑constitucional
a partir de uma racionalidade abstrata e universal; de uma hipottica
idia de contrato social ou vontade geral.4 Tomando
como exemplo o desenvolvimento do constitucionalismo ingls,
Burke busca demonstrar que somente a partir da sedimentao
histrica, que no decorrer dos sculos acomoda acordos, convenes,
costumes e principalmente os direitos que so herdados, que
se pode estabelecer um sistema poltico estvel e funcional.
Nenhum homem, ou grupo de homens, tem condio, ou mesmo
direito, de desprezar a experincia histrica e,
utilizando‑se apenas de princpios abstratos, estabelecer
a forma como deve se organizar uma sociedade. "A
constituio no um pudim", que pode ser feita a
partir de uma receita, diria um seu contemporneo. Assim, Burke
toma as bases do racionalismo constitucional como pura
ingenuidade, ou ainda, como uma busca deliberada e inconseqente
de perverter as conquistas do Antigo Regime. Esse argumento ser
posteriormente desenvolvido pelos juristas da escola histrica
germnica, no decorrer do sculo XIX.
Tambm
o marxismo tinha profunda desconfiana no modelo
constitucional implantado na Frana e na Amrica. Para Marx,
os direitos expressos na Declarao sa no avam de
direitos burgueses voltados proteo da propriedade. No momento
em que a constituio separa as esferas pblica e privada,
por intermdio de uma carta de direitos, e limita a interveno
do Estado nesta ltima, o constitucionalismo nada mais faz do
que preservar uma situao de estado de natureza, onde vence o
mais forte. Assim, ao invs de assegurar direitos e favorecer a
cidadania, o constitucionalismo liberal favoreceria o mercado e
asseguraria a desigualdade material, disfarada pelo manto da
igualdade perante a lei. De acordo com Marx a igualdade, como
considerada pela Declarao, "nada mais do que a
igualdade da libert"
e a liberdade o direito a esta dissociao, o
direito ao indivduo delimitado, limitado a si mesmo,
submetido ao arbtrio do homem egosta.5 Nesse
sentido o constitucionalismo teria por verdadeira funo
assegurar a explorao na esfera do mercado, mantendo o Estado
impedido de qualquer ao no sentido de restringir a desigualdade,
limitar os arbtrios do mercado ou promover o fortalecimento
da cidadania.
No
final dos anos 80 deste sculo, essas crticas perderam grande
parte de sua fora, especialmente a partir da derrocada dos
regimes socialistas no Leste Europeu e da corrida para substitu-los
por regimes constitucionais em pases como a Polnia, Repblica
Checa, Hungria, assim como naqueles Estados que surgiram a
partir da dissoluo da Unio Sovitica. O
constitucionalismo teve a o seu momento de maior expresso. A
necessidade de um governo submetido a leis superiores, que
limitassem o arbtrio estatal, por intermdio de um sistema de
separao de poderes e pelo reconhecimento de direitos
fundamentais, tornou‑se uma espcie de consenso
intelectual e poltico entre aqueles que se reorganizaram
institucionalmente nas ultimas dcadas.6 O
constitucionalismo colocado como um ambiente propcio e frtil
para o fortalecimento da sociedade civil, sem o que a democracia
e o Estado de direito no alcanam a densidade almejada.
O
paradoxal que apesar desse consenso em torno das qualidades
do constitucionalismo, vive‑se hoje uma espcie de
"mal‑estar da Constituio", no dizer de
Canotilho,7 decorrente de um rpido processo de
integrao regional e mesmo de globalizao econmica.
Assim, para muitos o modelo constitucional est se esgotando,
devendo ser substitudo por um direito sem fronteiras,
produzido de forma reflexiva, pelas mais variadas fontes. Para
os mais idealistas, por outro lado, coloca‑se hoje a
possibilidade de realizao de um constitucionalismo
universal, como o projetado na Paz
Perptua, de Immanuel Kant,8 aproveitando um
momento de fragilizao das soberanias.
A
meu ver, no h dvida de que o paradigma constitucional
est ando por um processo de reformulao. Antes, porm,
que se decida abrir mo desse modelo de organizao poltico-jurdica,
fundamental no esquecer o papel fundamental desempenhado
pelo constitucionalismo no processo de emancipao da
humanidade nesses ltimos dois sculos.9 Foi a
estrutura constitucional que deu segurana ao mundo dos
direitos e prpria democracia. No primeiro ps‑guerra
tambm comeou a assumir a responsabilidade por promover
mais igualdade e justia social. Trata-se de um mecanismo de
autovinculao ou pr‑comprometimento, pelo qual a
soberania popular busca se proteger de suas paixes e
fraquezas, dando mais rigidez queles princpios e regras, que
no devem ficar disposio de maiorias eventuais.10
Hoje,
muitas destas estruturas so vistas como obstculo ao ingresso
das naes no mundo ps‑moderno. Certamente as
constituies precisam ser adaptadas e atualizadas, porm
elas continuam sendo o pilar de nossos direitos e de nossas
democracias. Devem servir, assim, como filtro tico que nos
auxilie em nosso relacionamento com um mundo em rpida mudana.
As constituies, antes de tudo, devem permanecer como
mecanismo de habilitao para que cada gerao possa decidir
seu prprio destino, sem, no entanto, estar autorizada a furtar
esse mesmo direito s geraes futuras.11
Colocados
esses pressupostos, emos ento anlise dos trs
movimentos que tm provocado o realinhamento das constituies.
3.
Constitucionalismo
regional
A
partir de 1951, com o Tratado de Paris, que estabelecia a
Comunidade Europia do Carvo e do Ao, comeou a surgir um
novo modelo de integrao entre Estados. Em sua concepo
atual, ps‑Maastricht, esse processo de integrao no
mais se enquadra nos modelos tradicionais de organizao
internacional ou confederao. Porm, o grau atual de
integrao no permite afirmar que a Unio Europia seja um
Estado federal, como o americano, brasileiro ou alemo. Mas
isso no significa que os europeus no estejam
experimentando um processo de constitucionalizao, heterodoxo
em termos da dogmtica do direito constitucional, mas, sem
sombra de dvida, constitutivo de uma comunidade jurdica. Portanto,
constitucional no sentido aristotlico.
Os
Estados europeus vm nesses ltimos 40 anos transferindo
poderes soberanos para a Comunidade e, agora, para a Unio
Europia, por intermdio de um conjunto de tratados, sem que
tenha sido realizado um pacto constituinte continental. Esses
tratados constitutivos do novo sistema jurdico, com poderes
de interveno direta na vida dos europeus, s foi possvel
porque as constituies do ps‑guerra expressamente
autorizaram a transferncia de poderes soberanos para a criao
ou fortalecimento de organizaes internacionais interestatais
ou especificamente para participar da Unio Europia.12
Como exemplo, cito o art. 24 da Lei Fundamental alem, que
estabelece que A Federao poder transferir, mediante
lei, competncias soberanas a instituies interestatais.
Da mesma forma Itlia, Frana, Portugal e os demais pases
tm autorizado seus parlamentos a fazer transferncia de
parcelas cada vez maiores de soberania Unio. Alm disso,
um outro fator que tem contribudo imensamente para o
surgimento de uma nova ordem constitucional (transnacional) o
Tribunal de Justia Europeu, a partir da sedimentao de
decises em favor da Comunidade e da Unio.
Compem
os rgos de coordenao da Comunidade e da Unio o
Parlamento Europeu, o Conselho de Ministros, a Comisso e a
Corte de Justia. A competncia desses rgos, assim como o
mbito de atuao da Unio, predeterminada pelo conjunto
de tratados que estabelece a legislao primria. Da
falar‑se em sua constitucionalidade. Embora o Parlamento
Europeu tenha recebido maiores atribuies a partir de 1992, a
quase totalidade da funo executiva e legislativa est
centrada no Conselho de Ministros, que representa a vontade dos
Estados, e na Comisso, que o rgo representante da ordem
europia.
Ao
Tribunal de Justia ficou a competncia para fiscalizar a
compatibilidade da legislao comunitria secundria em face
dos tratados, assim como fiscalizar a conformidade da legislao
domstica em face da legislao comunitria, inclusive a
secundria. Destaque‑se, como se ver a seguir, que
essas atribuies no so originrias, mesmo porque no
havia previso expressa de supremacia da legislao comunitria
sobre a nacional, como ocorre, por exemplo, na federao
americana, onde por intermdio da supremacy
clause determina‑se a submisso da legislao dos
Estados membros legislao produzida pela Unio.
O
primeiro elemento constitucionalizante do sistema europeu o
fato de que os atos normativos decorrentes da Unio entram
diretamente em vigor nos Estados, sem que seja necessrio
qualquer procedimento de ratificao pelos parlamentos
nacionais, no que se convencionou denominar doutrina da efetividade
direta.13
Essa posio foi firmada pelo Tribunal de Justia no caso
Costa vs. ENEL,14 em que Flaminio Costa contestou a
nacionalizao da produo e comercializao de energia eltrica
e a criao da Ente Nazionale per lEnergia Eltrica (ENEL),
em face do Tratado da Comunidade Econmica Europia, perante
a justia italiana. O caso foi remetido em primeiro lugar
Corte Constitucional Italiana, que no se manifestou
diretamente sobre a posio do tratado em relao lei
italiana e depois submetido ao Tribunal de Justia Europeu.
Para o Tribunal europeu: Diferentemente dos
tratados internacionais, o Tratado da CEE estabeleceu a sua
prpria ordem legal, que foi incorporada pelos sistemas legais
dos Estados membros no momento em que o Tratado ganhou fora e
a ele a justia dos Estados membros encontra-se vinculada. De
fato, ao estabelecer uma Comunidade de durao ilimitada,
tendo suas prprias instituies, personalidade e capacidade, a
habilidade de ser representada internacionalmente e,
particularmente, poderes reais resultantes de uma limitao da
jurisdio dos Estados ou de uma transferncia de seus poderes
para a Comunidade, os Estados abriram mo, ainda que em reas
limitadas, de seus direitos soberanos e assim criaram um corpo de
direito aplicvel aos seus nacionais e para si mesmos.15
Os tratados europeus, assim como a legislao
secundria16 que deles deriva, am a ser compreendidos como
um direito auto-executvel, sem a necessidade de mediao do
direito domstico. No mais um direito internacional, mas
tambm no se confunde com o direito interno. O direito
comunitrio um sistema parte, que tem fonte prpria, e se
aplica sobre todo o territrio dos Estados membros, criando
direitos e obrigaes para Estados e indivduos.
Para os monistas a questo da aplicao
imediata no algo que deve surpreender. Mesmo a Suprema Corte
americana j havia afirmado, muito tempo antes, que nos Estados
Unidos os tratados constituem the law of the land,17 ainda que
alguns tratados no possam ser imediatamente executados por falta
de condies intrnsecas. Porm a auto-executoridade europia
veio atrelada questo da primazia do direito europeu. Assim, a
segunda questo que ir nos interessar nesse processo de
constitucionalizao heterodoxo da Comunidade europia, e que
ir tambm se diferenciar das demais organizaes
internacionais, o fato de que os atos normativos produzidos
pela Unio tm primazia sobre os estatais, estabelecendo uma
supremacia 18 da legislao comunitria.
Essa questo se coloca em primeiro lugar como
um problema de ordem constitucional interno, visto que em alguns
pases, como Alemanha e Itlia, o direito internacional
tradicionalmente foi recepcionado como de mesma estatura ou
hierarquia que as normas ordinrias. A Frana, entre outros
pases, estabeleceu a partir da Constituio de 1958 que tratados
e acordos devidamente ratificados e aprovados, com a sua
publicao, tm autoridade superior quela da
legislao....19 A Constituio holandesa, por sua vez, d
estatura supraconstitucional aos tratados de que o pas se torne
parte. Porm, com a proposio do Tribunal de Justia de que
o direito europeu no pode ser confundido com o direito
internacional, o que se deve indagar se h um lugar especial
para o direito europeu que no dependa da vontade constitucional
de cada um dos Estados, mas da prpria autoridade europia.
Os diversos tratados que vm constituindo o
sistema europeu no dispem de uma supremacy clause, no
sentido emprestado pelo constitucionalismo americano, onde numa
situao de conflito entre o direito estadual e o federal este
ltimo deve prevalecer sobre aquele. Por outro lado, no h uma
diviso estrita de competncias, como no constitucionalismo
brasileiro, onde qualquer conflito deve ser refutado como um
conflito meramente aparente, pois aps uma verificao mais
detida da diviso de poderes entre os entes da Federao
chegar-se- concluso sobre a quem pertence a referida
competncia. Porm, no prprio caso Costa v. ENEL, acima
citado, como no caso Simmenthal, o Tribunal de Justia, ainda que
de forma no explcita, estabeleceu uma doutrina da supremacia
da legislao europia. Na esfera de aplicao do direito
comunitrio, portanto, qualquer norma, seja um artigo do Tratado,
seja um regulamento dele decorrente, deve se sobrepor
legislao domstica, tenha ela sido produzida antes ou depois
da norma comunitria.
O problema reside ento em compreender o modo
como foram distribudas as competncias entre a Comunidade e os
Estados. Os poderes europeus foram delegados pelos tratados. O
fato, porm, que com a evoluo e ampliao dos campos de
ao da Comunidade e da Unio, novas competncias foram sendo
encampadas, sem que todas elas decorressem de delegao
expressa. O Tribunal de Justia ou a entender, a partir dos
anos 70, que a Comunidade poderia fazer uso de suas competncias
implcitas para levar a cabo sua misso. Diferentemente dos
tratados internacionais que devem ser interpretados de forma a
minimizar as limitaes sobre a soberania nacional, no caso
europeu decidiu-se pela concesso dessa liberdade . Assim,
estabeleceu o Tribunal que h competncias exclusivas e
concorrentes, nestas ltimas a legislao domestica s
prevalece enquanto no houver regulamentao comunitria.20
Mais do que isso, quando avocadas pela Unio tornam-se suas
competncias exclusivas. o que se conhece como doutrina da
preempo ou apropriao.21
O que permite confirmar ainda mais a idia de
supremacia do direito europeu que o tribunal responsvel por
julgar o conflito de competncia entre a Unio e os Estados
o Tribunal de Justia Europeu, situado em Bruxelas, e no as
cortes constitucionais nacionais. Em ltima instncia esta sob
a responsabilidade da Unio, ainda que por intermdio de seu
rgo jurisdicional, definir quais so suas competncias e
quais permanecem com os Estados.
Tem-se, assim, uma ordem jurdica que vincula
diretamente condutas dentro do Estado, sem qualquer necessidade
de atos domsticos de ratificao ou regulamentao. Essa
ordem encontra-se numa posio de superioridade em face da ordem
jurdica domstica, no apenas naqueles Estados em que as
constituies expressamente autorizam isso, mas tambm naqueles
onde a Constituio silente ou determina a equiparao da
ordem europia sua legislao ordinria. Essa supremacia se
d em funo da jurisprudncia do Tribunal de Justia
Europeu, que tem entendido que em sua esfera de competncia
prevalece a lei comunitria, sendo que dentro da obscura
diviso de competncias determinada pelos tratados o sistema
jurdico europeu tem avanado em funo da doutrina da
preempo, tambm estabelecida pelo Tribunal de Justia
Europeu.
Isso no tem se dado sem resistncias e
crticas, mesmo porque h um grande dficit democrtico22 que
h muito vem sendo apontado por diversos crticos do processo de
unificao europia. No caso Solange I, de 1974, o Tribunal
Constitucional alemo exerceu seu poder de controlar a
constitucionalidade de atos normativos decorrentes da Comunidade,
em face da Lei Fundamental de Bonn. De acordo com o Tribunal,
enquanto a Comunidade no dispusesse de um sistema de
proteo de direitos compatvel ou equiparvel quele
assegurado pela Lei Fundamental, o Tribunal se veria obrigado a
garantir os direitos de seus cidados em face da legislao
comunitria.23
Essa deciso levou a que a Comunidade adotasse
uma resoluo conjunta em 5 de abril de 1977, confirmando a
vigncia dos direitos fundamentais no mbito da Comunidade. Em
1992, o Tratado de Maastricht incluiu uma obrigao expressa de
se observar os direitos fundamentais, como se encontram 24 garantidos
pela Conveno Europia para a Proteo dos Direitos Humanos
e Liberdades Fundamentais, firmada em Roma em 4 de novembro de
1950 e como resulta das tradies constitucionais comuns dos
Estados Membros.25
Aps a determinao da Comunidade de alargar
seu espectro de proteo dos direitos fundamentais, o Tribunal
Constitucional entendeu por bem rever a sua posio anterior e
retirou-se do mbito de controle da constitucionalidade dos atos
normativos produzidos pela esfera da Comunidade, sob o seguinte
argumento: como as Comunidades Europias, especialmente seu
Tribunal de Justia, garantem uma proteo eficaz aos direitos
fundamentais frente ao seu poder soberano, que basicamente pode
equiparar-se proteo inalienvel outorgada pela GG (Lei
Fundamental), sobretudo porque garante com carter geral o
contedo essencial dos direitos fundamentais, o Tribunal
Constitucional deixa de exercer sua jurisdio sobre a
aplicao do direito Comunitrio derivado, considerando-o como
referncia jurdica de atuao para as autoridades e
tribunais no territrio da Repblica Federal... .26 O Tribunal
Constitucional alemo, no entanto, no abriu mo de eventualmente
controlar o processo de unificao, quando isto colocar em risco
os direitos e princpios fundamentais da Lei Fundamental, como se
ver a seguir.
Com o objetivo de facilitar a compatibilizao
entre o Tratado de Maastricht e o direito constitucional alemo,
em face da transferncia de largas parcelas de soberania, houve
por bem o constituinte reformador emendar a Lei Fundamental,
estabelecendo, em seu art. 23, que para a concretizao de
uma Europa unida, a Repblica Federal da Alemanha deve participar
no desenvolvimento da Unio Europia, que limitada pelos
princpios da democracia, Estado de direito, social e federativo
e pelo princpio da subsidiariedade, que garantem a proteo
dos direitos bsicos essencialmente compatveis com a Lei
Fundamental. Para este propsito a federao poder transferir
poderes soberanos por intermdio de lei com a concorrncia do
Bundesrat.... Essa emenda teve sua constitucionalidade
questionada, em 1993, junto ao Tribunal Constitucional alemo,
por atentar contra os limites materiais ao poder de reforma,
estabelecidos pelo art. 79 (3) da Lei Fundamental.
Para os autores da ao, ao transferir poderes
soberanos, como o de legislar, para uma organizao destituda
de legitimidade democrtica, o constituinte reformador estava
rompendo com o princpio democrtico, que reconhecido como
uma clusula intangvel da constituio alem. Embora o
Tribunal Constitucional tenha recusado a pretenso dos autores,
sob o argumento de que a Unio Europia no derive sua fora
normativa diretamente do povo europeu, mas dos Estados partes,
estes Estados continuavam sendo os mestres do Tratado.
Portanto, se estaria abrindo mo da soberania do povo alemo.
Mais do que isso, o Tribunal Constitucional, a qualquer momento,
se reservava o poder de declarar inconstitucionais as
transferncias de soberania feitas, se estas colocassem em risco
o cerne irreformvel da Constituio. Neste sentido a Alemanha
preservou a qualidade de pas soberano no seu prprio direito e
status de soberano, em igualdade com outros Estados, dentro do
sentido estabelecido no art. 2 (1) da Carta das Naes Unidas.27
H assim um processo de integrao regional
que a cada momento mais se aproxima de um processo de
constitucionalizao da Europa, por muitos propalado. O fato,
porm, que juridicamente as constituies e a cidadania
nacional continuam a ser a fonte de legitimidade dos sistemas
jurdicos europeus e da prpria Unio. Por outro lado, ningum
pode desprezar o fato de que a Unio tem conquistado poderes cada
vez mais amplos e no tem se abstido em exerc-los, sem que
corresponda a estes poderes uma legitimidade mais s1ida do que a
atualmente existente. Est a importncia da deciso do
Tribunal Constitucional alemo, nos casos Solange I e II e no
caso do Tratado de Maastricht, onde sem bloquear o processo de
integrao europia pautou o seu direcionamento da
perspectiva do respeito dos valores constitucionais.
Neste sentido, me parece correto concluir que no
caso da integrao regional no est ocorrendo apenas uma
internacionalizao do direito constitucional, mas tambm uma
constitucionalizao do sistema regional sem, no entanto, a
mesma fora e intensidade, uma vez que o fortalecimento deste
ltimo no vem sempre acompanhado da sua conformao aos
princpios constitucionais domsticos. Destaque-se que enquanto
a Unio europia no resolver o seu problema de dficit
democrtico no se estabelecer como um autntico Estado
constitucional.
4. Cosmopolitismo tico dos direitos humanos
O segundo movimento verificado no processo de
globalizao, que envolve o direito constitucional, est
associado aos direitos humanos. Assim como no processo de
regionalizao constitucional vislumbrado no continente europeu,
trata-se tambm aqui de uma via de duas mos, em que ocorre
uma internacionalizao do direito constitucional na mesma
medida em que temos uma constitucionalizao do direito
internacional.
A idia de que todos ns, pelo simples fato de
sermos humanos, temos uma srie de direitos inalienveis
to antiga quanto controvertida. O prprio cristianismo originou
um processo de globalizao de direitos, fundado na idia de
igualdade e dignidade de todos, enquanto filhos de Deus. O
jusnaturalismo racionalista tambm reclamava teoricamente
direitos universais, uma vez que decorrendo esses direitos da
condio de humanidade, todos os seres humanos, por esta simples
condio, deveriam ter sua dignidade reconhecida e protegida por
um conjunto de direitos.28 O projeto do iluminismo gerou um enorme
impacto na engenharia institucional de um grande numero de
naes. Aps as revolues americana e sa no foram
poucos os pases a adotar constituies que tinham por
objetivo fundamental a proteo desses direitos tidos como
naturais ou inerentes pessoa humana. Mas ser apenas aps a
Segunda Guerra que os direitos humanos ingressaro num forte
processo de internacionalizao e as constituies nacionais
aro a se acomodar a esse novo cosmopolitanismo tico.
O holocausto e as outras barbries do perodo,
como os campos soviticos de trabalho forado e mesmo a bomba
atmica, causaram um profundo choque na comunidade internacional.
Foi como reao a essa demonstrao de irracionalidade e da
capacidade do homem de se autodestruir que surgiu a idia
contempornea de direitos humanos. Trata-se de uma resposta,
ainda que filosoficamente no bem resolvida, ao vazio tico
deixado pelo desencantamento29 que favoreceu o nazismo e todas as
atrocidades por ele realizadas.
Assim que surgiu a Declarao Universal dos
Direitos Humanos, com o objetivo de estabelecer um novo horizonte
tico, a partir do qual a relao dos Estados com seus
cidados pudesse ser julgada por um paradigma externo ao prprio
direito de Estado. A Declarao, bom que se diga, no surgiu
com a pretenso de transformar-se em direito internacional, como
uma hard law. Embora seja o principal instrumento e certamente o
mais conhecido dos documentos de direitos humanos produzidos na
esfera das Naes Unidas, no um tratado internacional, mas
uma simples declarao decorrente de uma resoluo da
Assemblia Geral das Naes Unidas. No sendo um tratado, no
pde ser ratificada e, portanto, no tinha originalmente
pretenso de obrigar os Estados juridicamente. Mas, sim, de
servir como paradigma moral.
O fato que a Declarao ocupou um papel
to importante no imaginrio da comunidade internacional aps a
Segunda Guerra, e exerceu um papel to importante no processo de
descolonizao e mesmo na luta de resistncia contra os regimes
autoritrios nas mais diversas partes do mundo, que deixou de
ser um mero instrumento retrico e ou a ser incorporada pelos
Estados enquanto direito em suas constituies.30 Basta
olharmos o exemplo da frica, onde dezenas de constituies
foram promulgadas a partir da concepo de direitos humanos
proposta pela Declarao, o que jamais significou o respeito
incondicional a esses direitos. Pases na Amrica Latina que se
reconstitucionalizaram nesse perodo, quase todos incorporaram
a estrutura e a 1gica da Declarao dentro de suas
constituies. Talvez a Constituio brasileira de 1988 seja
um ponto exemplar, no s de reproduo da 1gica da
Declarao e dos demais instrumentos internacionais de
proteo da pessoa humana, mas de uma ampliao e
atualizao de seus ideais. A nossa Constituio generosa e
criativa em termos da confeco do mapa tico segundo o qual a
nossa sociedade deve se organizar. Alm de sua pormenorizada
carta de direitos, abre, por fora do 2 do art. 5, suas
portas para que uma srie de direitos decorrentes do regime e dos
princpios por ela adotados e dos tratados internacionais dos
quais o Brasil seja parte e a ingressar em nosso ordenamento
numa posio privilegiada.31
A Declarao Universal , porm, apenas um
primeiro o nesse processo de constitucionalismo globalizado
que vem sendo propulsionado pelos direitos humanos. H hoje
diversas esferas internacionais de proteo pessoa humana. Em
nvel global temos o sistema das Naes Unidas, fundado na
Carta da ONU, de 1945, na Declarao Universal de 1948 e nos
diversos tratados de proteo especfica, onde se inclui
tambm a proteo dos refugiados; h tambm sistemas
regionais de proteo dos direitos humanos, sendo os mais
evoludos aqueles que se encontram em funcionamento nos
continentes europeu e americano; por fim, deve-se destacar o
direito internacional humanitrio, estabelecido a partir das
Convenes de Genebra, de 1949, que buscam dar proteo s
pessoas que se encontram submetidas a conflitos armados.
O primeiro o no sentido da
constitucionalizao do direito internacional foi a incluso,
na Carta das Naes Unidas, do respeito e da observncia dos
direitos humanos como uma das obrigaes da prpria ONU e dos
Estados membros (arts. 55 e 56 da Carta). Neste sentido, o Estado
que se torna parte das Naes Unidas, aderindo Carta, a,
no plano jurdico, a reconhecer os direitos humanos como uma
obrigao internacional, que no mais pode ficar restrita a
esfera domstica das naes.
A Carta, no entanto, no explicitou o contedo
dos direitos humanos, o que s se deu com a Declarao trs
anos depois. Como j se mencionou, a Declarao no nasceu com
pretenso de vincular juridicamente a conduta dos Estados. Foi a
partir do seu amplo reconhecimento pela comunidade internacional
que esta se transformou, ou pelo menos alguns de seus dispositivos
se transformaram, em direito internacional costumeiro, portanto
tecnicamente vinculante das condutas dos que participam da
comunidade internacional.32 Para outros, a fora da Declarao
decorreu do fato de ela constituir uma interpretao autntica
da Carta da ONU.
O sistema global de proteo aos direitos
humanos ou a ter mais consistncia, no entanto, com a
adoo da Conveno Internacional de Direitos Econmicos
Sociais e Culturais e a Conveno Internacional de Direitos
Civis e Polticos, ambas de 1966. Esses quatro documentos formam
o International Bill of Rights, o cerne desse processo global de
constitucionalizao. Com contedos distintos, a primeira
Conveno incorpora aqueles direitos que decorrem da tradio
socialista, estabelecendo obrigaes positivas aos Estados.
Seu grande defeito, semelhante a muitas constituies
nacionais, foi dar carter programtico ou progressivo a esses
direitos.33 A Conveno de Direitos Civis e Polticos, por sua
vez, abriga direitos decorrentes do movimento liberal e democrtico,
j reconhecidos pelos constitucionalismos nacionais desde o
sculo XIX, dando-lhes eficcia imediata. Criou este tratado um
Comit de Direitos Humanos, que, entre outras funes, analisa
relatrios preparados pelos Estados, assim como denncias individuais
de violao dos direitos estabelecidos pela Conveno.34
Diversas outras convenes foram adotadas pelas Naes Unidas
nestes ltimos 50 anos. Cada uma delas voltada a tutelar direitos
especficos ou grupos determinados de pessoas. Trazem tambm
mecanismos prprios de fiscalizao e monitoramento. O sistema
da ONU, no entanto, padece de grande fragilidade, posto que a
prpria Carta das Naes Unidas determina que a Organizao
seja ciosa com a esfera de soberania dos Estados, tal como reconhecido
pelo art. 2 da Carta.
Nos anos 60, por intermdio das resolues n.
1.235 e n. 1.503, do Conselho Econmico e Social, estabeleceu-se
que a partir de denncias que aparentemente revelam um padro
consistente, repulsivo e confiavelmente atestado de violaes
de direitos humanos..., ou seja, graves violaes de
direitos humanos, o Estado estaria violando obrigaes
contradas com a Carta e poderia, assim, sofrer investigaes,
repreenses e mesmo sanes por parte da comunidade
internacional.
Houve, nos ltimos anos, bastante progresso,
especialmente a partir da Conferncia Mundial de Direitos
Humanos realizada em Viena, em 1993. Entre esses citaria a
criao de um Alto Comissariado para Direitos Humanos, que tem
por funo articular as aes das Naes Unidas nesta esfera
e do Tribunal Internacional Criminal, a partir das experincias
dos Tribunais de Ruanda e da ex-Iugoslvia. Dessa forma o sistema
global, que at 1998 no contava seno com parmetros
normativos e agncias fiscalizatrias (comits e comisses),
ou a poder tambm contar com uma instncia jurisdicional,
ainda que em moldes bastante distintos daqueles existentes nos
sistemas regionais de direitos humanos.35 Ao menos para o crime
de genocdio, os crimes contra a humanidade e os crimes de
guerra, o sistema das Naes Unidas se fortaleceu nesse ltimo
ano.
Os sistemas regionais europeu e interamericano,
porm, so melhor estruturados e tecnicamente mais viveis,
aproximando-se ainda mais de um sistema internacional de
carter constitucional. Como o sistema ONU, esses dois sistemas
regionais so fundados a partir de tratados internacionais, que
no apenas do o parmetro normativo, criam sistemas de
monitoramento, mas tambm estabelecem instncias
jurisdicionais de proteo dos direitos humanos, que j se
encontram em funcionamento.
No continente americano o sistema ou a se
desenvolver a partir da adoo, pela Organizao dos Estados
Americanos, da Declarao dos Direitos e Deveres do Homem, em
1948. Assim como a Declarao Universal, no a Declarao
Americana um tratado internacional. Em 1959, sob os auspcios da
OEA e dentro de sua estrutura constitucional, foi criada a
Comisso Interamericana, com a funo primordial de
implementar os direitos humanos no continente. Somente em 1969
que surgiu a Conveno Americana de Direitos Humanos, com
fora jurdica de tratado internacional. Essa Conveno, que
s entrou em vigor em 1978, reconheceu direitos de ordem civil,
poltica e social, estes ltimos apenas de forma progressiva.36
A Conveno tambm estabeleceu uma Corte
Interamericana de Direitos Humanos e deu um novo status
Comisso, que ou a funcionar como rgo da Carta da OEA e
rgo da Conveno, para aqueles pases que desta se
tornarem parte. As competncias comuns da Comisso, tanto como
rgo da Carta como da Conveno, so bastante genricas.
Nos anos 70 isso permitiu que a Comisso de forma bastante
criativa desempenhasse um papel tremendamente importante na
denncia das violaes que eram cometidas pelos regimes
militares ento no poder. J sob o mandato da Conveno, a
Comisso ou a ter funes mais concretas, como receber
denncias individuais, represent-las junto Corte
Interamericana,37 fazer investigaes no local, ou solicitar
informaes dos governos.38
A Corte Interamericana de Direitos Humanos um
autntico tribunal, que pode exercer, para aqueles Estados
partes que reconheam sua jurisdio, uma prestao
jurisdicional de carter contencioso, relativo a todos os casos
concernentes interpretao e aplicao da Conveno
Americana, ou outros tratados de proteo pessoa humana, na
esfera da comunidade interamericana. A Corte s poder ser
provocada em sua jurisdio contenciosa pela Comisso ou pelos
Estados partes que aceitem a sua jurisdio. Suas decises
podem fazer cessar uma situao de leso aos direitos
protegidos pela Conveno, como a tortura, priso ilegal, ou
mesmo buscar a suspenso de uma norma que viole os dispositivos
da Conveno, exercendo, assim, uma espcie de judicial review
dos ordenamentos jurdicos domsticos em face da Conveno.
Isso pode ser feito ainda de forma preventiva, atravs da
jurisdio no-contenciosa da Corte.39 Por outro lado, a Corte
tambm pode determinar que os Estados indenizem as vtimas ou os
seus familiares. O que ocorreu pela primeira vez no caso
Velasquez, onde o governo de Honduras, responsvel pelo seu
desaparecimento, foi condenado ao pagamento de uma indenizao
famlia.40 Neste aspecto ocorre um dos pontos de maior
proximidade entre o sistema interamericano e os sistemas
domsticos. De acordo com o art. 68 da Conveno a parte da
sentena que determinar a indenizao compensatria poder
ser executada no pas respectivo pelo processo interno vigente
para a execuo de sentenas contra o Estado. Assim, a
deciso da corte no tem fora de sentena estrangeira, mas de
uma sentena judicial como outra qualquer, numa perfeita
integrao com os sistemas domsticos.
A importncia do sistema interamericano tem
aumentado medida que os pases am voluntariamente a se
submeter sua ordem. Embora mecanicamente o sistema no
apresente grandes falhas, o que o fragiliza o fato de a maior
potncia do continente, os Estados Unidos da Amrica, at o
presente momento, continuar marginal ao sistema, postura, alis,
semelhante do Brasil at h pouco. Porm, com a
estabilizao dos regimes democrticos no continente, a
integrao entre as ordens jurdicas interna e regional tem
aumentado. A Constituio argentina, por exemplo,
expressamente assegura status constitucional aos direitos
previstos nos tratados internacionais. No Brasil a doutrina, e uma
jurisprudncia embrionria, tem dado a mesma interpretao ao
2 do art. 5 da Constituio Federal.41 Isto, portanto,
caracteriza o caminho inverso, de internacionalizao do
direito constitucional.
O sistema europeu de proteo dos direitos
humanos, por sua vez, tem sido um dos pilares do processo de
constitucionalizao da Comunidade, assegurando parmetros
que devem limitar no apenas os Estados, em suas relaes com
os seus cidados, mas tambm a Comunidade no embate com os
nacionais de cada Estado.
O sistema europeu foi estabelecido pelo Conselho
da Europa, que determina em seu estatuto que todos os Estados
membros do Conselho da Europa devem aceitar os princpios do
Estado de Direito e a fruio por todas as pessoas dentro de
suas jurisdies dos direitos humanos e liberdades
fundamentais....42 A Conveno Europia de Direitos
Humanos, de 1950, entrou em vigor trs anos aps a sua adoo.
Reconhece basicamente direitos de ordem civil. Logo em seu
prembulo estabelece que o objetivo do sistema europeu dar
eficcia queles direitos elencados na Declarao Universal
de 1948, embora a Conveno deixe de lado direitos de ordem
social e econmica. Essa lacuna foi parcialmente preenchida em
1961, com a adoo da Carta Social Europia. Digo parcialmente,
pois assim como os demais documentos internacionais que tratam
de direitos sociais, a Carta estabelece obrigaes vagas e que
devem ser perseguidas nos limites dos meios existentes e como
poltica governamental.
Trs so os rgos responsveis pela
implementao da Conveno. A Comisso de Direitos Humanos,
que funciona em Estrasburgo, tem por funo bsica receber
denncias de Estados e indivduos, de acordo com o art. 25 da
Conveno. A maior parte dos Estados reconhece a competncia da
Comisso para receber tais denncias. H um processo bastante
rigoroso que avalia a issibilidade das peties individuais.
Sendo aceitas, inicia-se uma nova fase em que a Comisso buscar
a realizao de um acordo amigvel com os Estados. Caso esse
acordo no seja alcanado, a Comisso poder encaminhar o
caso ao Conselho de Ministros ou Corte de Direitos Humanos.
Em geral devem seguir para a Corte os casos dos Estados que
aceitam sua jurisdio. Os demais devem ser encaminhados para o
Conselho de Ministros para que seja tomada uma deciso poltica,
ainda que balizada pelo direito. O fato porm que a deciso
de qualquer uma dessas instncias ter fora obrigatria
para os Estados partes, ou seja, surge uma obrigao
internacional dos Estados em se conformarem a ela. Isso tem criado
um sistema paralelo de controle da compatibilidade da
legislao domstica aos parmetros estabelecidos pela
Conveno Europia de Direitos Humanos. O Conselho de Ministros
sempre paira como uma instncia de monitoramento da implementao
das decises da Corte ou dos acordos realizados pela Comisso.
Por fim, deve-se destacar que na maioria dos
Estados europeus a Conveno ingressa automaticamente no
ordenamento jurdico, com status de lei ordinria, podendo ser
invocada diretamente ante os tribunais nacionais. Na Holanda o
status da Conveno supraconstitucional. H alguns
pases,43 no entanto, onde a Conveno exige atos parlamentares
para que os direitos ali reconhecidos possam ser reclamados
junto ao judicirio. Paulatinamente, no entanto, os magistrados
desses pases tm se permitido olhar para a Conveno como
direito auto-aplicvel.
Concluindo, os direitos humanos constituem o
melhor exemplo do processo de constitucionalizao da ordem
internacional. Isso no significa que as relaes
internacionais deixaram de ser regidas prevalentemente pela
realpolitik e hoje se submetem aos parmetros da lei dos direitos
humanos. Mas cada vez mais esse leque de normas e princpios tem
desempenhado um papel mais significativo na relao entre as
naes e, sobretudo, no controle internacional da ao dos
Estados em relao aos seus nacionais.
O maior sinal do sucesso do direito
internacional dos direitos humanos, no entanto, tem sido sua
capacidade de influenciar o direito domstico, mais
especificamente o direito constitucional dos diversos pases que
se reconstitucionalizaram nestes ltimos 50 anos. Portanto, em
relao aos direitos humanos, essa via de mo dupla deve ser
estimulada, para que aumente a eficcia dos sistemas de
proteo dos direitos humanos domsticos e internacionais.
A grande dificuldade hoje apresentada na esfera
dos direitos humanos, no entanto, superar o discurso
construdo pelos pases centrais e inclusive por muitos de seus
intelectuais e organismos da sociedade civil, que exclui da
pauta de reivindicaes os direitos de ordem econmica e
social. Pois sem que se atinjam padres mnimos de dignidade e
para isso uma adequada distribuio de recursos entre as
naes,44 os direitos de ordem civil e poltica, por mais
importantes que sejam, dificilmente conseguiro ser preservados.
Como se ver a seguir, a 1gica da
globalizao econmica age contra esses direitos de ordem
social. Da a absoluta necessidade de se rearticular um
discurso e uma ao conseqentes sobre os direitos humanos a
partir do ponto de vista dos excludos, onde os direitos de ordem
econmica e social no podem ficar num segundo plano.
5. A economia constitucional
Terminarei minha anlise pelo impacto que a
globalizao econmica e o neoliberalismo tem provocado no
constitucionalismo contemporneo. Essa tem sido, sem a menor
dvida, a maior fonte de presso sobre nosso direito
constitucional e a que deve nos preocupar intensamente. Ao invs
de fortalecer direitos, ou integrar naes historicamente
competitivas e artificialmente contrapostas, muitas dessas
reformas podero lanar pases como o Brasil numa perversa
competio internacional, onde o aparente sucesso ser
alcanado ao custo de uma supresso de conquistas sociais.
Deve-se destacar que o resultado desse processo pode ter impacto
ainda mais devastador sobre pases marcados pela desigualdade
como o Brasil, que embora se encontre entre as dez maiores
economias do mundo, fica em 62 lugar no ndice de
Desenvolvimento Humano das Naes Unidas (IDH/98), ampliando,
assim, nossos altos ndices de excluso social. Portanto,
aqui que o cuidado deve ser redobrado.
A Constituio brasileira de 1988 uma das
representantes mais tpicas do que se conhece como
constitucionalismo dirigista ou de carter social, que se
iniciou com a Constituio mexicana de 1917 e a Constituio
de Weimar de 1919. Sofreu ainda forte influncia do modelo
alemo do segundo ps-guerra, assim como da Constituio
portuguesa, adotada depois da derrubada do regime salazarista, nos
anos 70. Diferentemente das constituies liberais que buscavam
delimitar e sobretudo limitar a esfera de atuao do Estado,
assegurando amplo espao para a realizao da liberdade
individual, especificamente do mercado, as constituies sociais
estabelecem obrigaes positivas para o Estado na rea social,
buscam regulamentar as atividades econmicas, assim como
configuram rgos para a implementao de suas polticas
pblicas, que podem inclusive constituir agentes econmicos diretos.
A Constituio de 1988, embora elaborada num
momento de reflorescimento das idias de limitao da atuao
do Estado e mesmo de reduo dos direitos de carter social,
adotou o figurino do Estado de bem-estar social, o que
absolutamente compreensvel numa sociedade marcada por
profundos padres de desigualdade e que teve reprimidas suas
demandas bsicas por um longo regime de exceo. Trata-se,
portanto, de uma Constituio pretensiosa o que no
significa, de forma alguma, algo negativo, principalmente no que
se refere a amplitude dos direitos fundamentais. H, no
entanto, muitos dispositivos incorporados pelo texto
constitucional, fruto de interesses meramente corporativos, que
no precisavam e sequer deveriam estar ali. Como sustenta Elster,
uma constituio que busque estender a sua rigidez sobre muitos
temas pode gerar a necessidade de rupturas constantes.
Formulada num ambiente de efervescncia
democrtica, sob uma participao da sociedade civil jamais
verificada em toda a histria brasileira e tambm sob forte
influncia corporativa, a Constituio de 1988 se configurou
num compromisso entre os diversos setores articulados que detinham
parcelas de poder naquele momento. Um compromisso maximizador,
onde cada setor organizado, atravs de um largo processo de
barganha, alcanou a constitucionalizao de seus interesses
substantivos. Isso a princpio no seria nenhum problema:
antes o contrrio, pois afinal para que serve o sistema
democrtico seno para a realizao dos interesses
individuais e coletivos de uma comunidade? Mas no caso das
constituies, os compromissos maximizadores so sempre
problemticos e isto por vrias razes. Se todos ganham, o que
sempre algo ilusrio, a sociedade no foi capaz de tomar uma
deciso, de assumir uma direo, o que perpetua certas
disputas que deveriam ser resolvidas no momento constitucional.
Ao incorporar na Constituio diversos temas
tradicionalmente deixados legislao ordinria, o
constituinte quis dirigir a atuao dos futuros responsveis
por istrar o pas, o que tambm no parece uma pretenso
sem sentido, tendo em vista a enorme frustrao da sociedade
brasileira com seus legisladores, especificamente com o desprezo
em relao implementao de direitos constitucionais. Mas a
extrema constitucionalizao do direito tem um efeito colateral,
que dificilmente pode ser evitado, que o envelhecimento precoce
do texto. Pois se ele garante rigidez, e portanto perenidade a
uma infinidade de assuntos, quando as circunstncias mudarem e
for necessrio atualizar esses temas ser imprescindvel uma
mudana na constituio.
Neste contexto que a onda neoliberal pegou o
constitucionalismo brasileiro no contrap. Se os anos do
segundo ps-guerra foram de confiana nos Estados enquanto
mecanismos de propulso e interveno na economia, assim como
de construo de uma rede de seguridade social, a partir dos
anos 80 esse consenso a a ser substitudo por uma profunda
desconfiana na capacidade dos Estados nacionais, enquanto
agentes econmicos e sociais. A ao dos Estados vista ainda
como bloqueio ao livre desenvolvimento das foras do mercado, que
gera a ineficincia e coloca esses mercados em desvantagem em
face da competitividade do sistema internacional. Mais do que
isto, argumenta-se, o Estado intervencionista tende a gerar
desequilbrio fiscal, agravado, nos pases em desenvolvimento,
pela contrao de enormes emprstimos internacionais destinados
a saldar esse dbito. Com o aumento dos juros, especialmente nos
Estados Unidos, a dvida dos pases em desenvolvimento ou a
se expandir rapidamente. Como salienta Joseph Stiglitz,
vice-presidente do Banco Mundial, o resultado de altos nveis de
gasto pblico somados a uma retratao na base tributria foi
o aumento dos ndices de inflao.45
Nos anos 80, com a vitria de governos
conservadores na Gr-Bretanha, Estados Unidos e em diversos
pases centrais, articulou-se um forte discurso sobre a
necessidade de restrio da atuao do Estado, seja no seu
aspecto social, intervencionista e mesmo regulador. O objetivo
declarado liberar a economia das ingerncias normativas do
poder pblico e equilibrar o oramento interno dos Estados,
criando condies mais adequadas ao bom funcionamento do
mercado.
A linha de anlise acima exposta, assim como o
receiturio neoliberal voltado a pr fim referida crise,
foram basicamente incorporados no que veio a ser conhecido como
Consenso de Washington, onde um grupo de economistas do governo
norte-americano, do Banco Mundial e do FMI estabeleceu um conjunto
de medidas voltadas a debelar a inflao e estabilizar os
sistemas econmicos nacionais. Esse consenso , sobretudo, uma
resultante dos diversos fatores de ordem econmica e poltica,
especialmente a expanso da atuao das empresas transnacionais
e a presso dos governos centrais para a estabilizao
econmica dos pases em desenvolvimento.
Sem dvida, a afinidade entre as medidas ali
propostas e o sentido das reformas que vm sendo levadas a cabo
no apenas no Brasil, mas em diversos pases em desenvolvimento,
no constituem uma mera coincidncia. No Brasil, em face da
amplido normativa de nossa Constituio, a quase totalidade
desse programa neoliberal tem levado o governo a propor um
realinhamento da Constituio.
As reformas e propostas de reformas
constitucionais voltadas a adequar o sistema econmico
brasileiro a esse cardpio representado pelo Consenso de
Washington tm por finalidade reformar o Estado, flexibilizando a
istrao pblica, reorganizando o sistema
previdencirio, assim como o judicirio; redefinir o conceito
de empresa nacional, permitir o fim dos monop1ios estatais e
assegurar um amplo processo de privatizao em todas as esferas
da Federao; e reformar o sistema tributrio, o que ainda no
est muito bem configurado.
As reformas liberalizantes tiveram incio no
governo Collor. Como o caminho escolhido para as mudanas no
foi o constitucional, mas no mais das vezes fez-se uso abusivo das
medidas provisrias, muitas dessas medidas foram contestadas
ante o judicirio, que produziu milhares de liminares, que embora
no tenham servido para barrar o arbtrio que marcou aquele
governo, contriburam para sua deslegitimao. Aprendeu-se, no
entanto, que o judicirio, especialmente os juzes e tribunais
inferiores, poderia ser um empecilho para qualquer reforma futura.
Estabeleceu-se, assim, por fora da Emenda de n. 3, de
3/3/1993, a ao direta de constitucionalidade. Por intermdio
dessa nova ao foi dado ao Presidente da Repblica, s mesas
da Cmara e do Senado e ao procurador-geral da Repblica o poder
de requerer diretamente ao Supremo Tribunal Federal a
declarao de constitucionalidade de um dispositivo legal.
Essa declarao de constitucionalidade do dispositivo dever
vincular as instncias inferiores, evitando um conflito entre a
base e a cpula do judicirio, como ocorreu no governo Collor.46
Reduziu, assim, a liberdade de ao do judicirio para
obstaculizar as reformas propostas pelo governo. H ainda uma
srie de propostas na esfera do judicirio, como a smula
vinculante, que tambm tem a funo de estabelecer um maior
controle da base do judicirio, por sua cpula. O objetivo
fazer com que nosso sistema judicirio se ajuste as demandas de
segurana jurdica e eficincia, visando a contribuio do
custo Brasil,47 nas palavras do prprio governo, e
conseqentemente na atrao dos investidores internacionais.
O governo Fernando Henrique Cardoso,
diferentemente do governo Collor, tem buscado realizar as reformas
por intermdio de um vasto conjunto de emendas Constituio,
acompanhado de medidas legislativas e uma profuso de medidas
provisrias. Como j foi dito, o objetivo fundamental reduzir
a participao do Estado na atividade econmica, flexibilizar a
istrao e o sistema previdencirio e equilibrar o
oramento.
As Emendas n 5, 6, 8 e 9 referem-se
questo do conceito de empresa de capital nacional e aos
monop1ios. A Emenda n. 5, de 15/8/1995, libera os Estados
membros para conceder a empresas privadas a explorao e os
servios de gs canalizado. A Emenda n. 8, tambm de 15/8/1995,
e n. 9, de 9/11/1995, faro coisa semelhante com a explorao
das telecomunicaes e do petr1eo. Isso tudo depois de o
constituinte reformador ter extirpado o art. 171 do Texto de
1988, que estabelecia o conceito de empresa brasileira e empresa
brasileira de capital nacional, o que eliminou a possibilidade de
um tratamento privilegiado destas empresas sobre as chamadas
multinacionais.
Embora a Unio continue a ter monop1io sobre
as diversas atividades relacionadas com o petr1eo, gs e
minerais nucleares, as empresas privadas podem ser contratadas
para realizar as atividades antes reservadas s estatais. No que
se refere s telecomunicaes, a Emenda de n.8 permitiu que
se iniciasse um amplo processo de privatizao, que tem
redundado na sada de cena das empresas pblicas, substitudas
por empresas privadas nacionais e internacionais de comunicao.
Depois de ampliada a participao do setor
privado em esferas antes limitadas ao Estado e suas entidades,
houve um segundo bloco de reformas voltadas a flexibilizar a
istrao pblica, em especial a reduo dos custos com
pessoal e previdencirio, que hoje consomem cerca de 70% do
oramento das diversas esferas pblicas brasileiras. De acordo
com o argumento do Governo, reformar o Estado significa rever a
estrutura do aparelho estatal e do seu pessoal, a partir de uma
crtica no apenas das velhas prticas patrimonialistas ou
clientelistas, mas tambm do modelo burocrtico clssico, com o
objetivo de tornar seus servios mais baratos e de melhor
qualidade.48 Nesse sentido, a primeira mudana foi
acrescentar o princpio da eficincia entre aqueles que
devem reger a istrao pblica, em todos os seus nveis
(art. 37, caput da CF), com a finalidade de possibilitar uma
transio para a chamada istrao gerencial. A reforma
tambm rompeu com o regime nico para os servidores, flexibilizando
as regras do funcionalismo, extinguiu a isonomia, estabelecendo
que a fixao de vencimento dever corresponder a critrios
como a peculiaridade do cargo, a natureza, o grau de responsabilidade
e a complexidade dos cargos componentes de cada carreira (art. 39
da CF e incisos). Ainda no que se refere flexibilizao,
autorizou-se a perda do cargo mediante procedimento de
avaliao peridica de desempenho (art. 41, III), a
colocao do funcionrio excedente em disponibilidade, com
vencimentos agora proporcionais ao seu tempo de servio. Houve
ainda mudanas no direito de greve e nos planos de carreira.
Assim como na maior parte dos pases que
dispem de sistema de seguridade social, o Brasil tambm aprovou
uma ampla reconfigurao do sistema previdencirio, por
intermdio da Emenda de n. 20, de 15/12/1998. A previdncia
brasileira vive uma crise profunda, em que unindo os dficits da
Unio, Estados e Municpios chega-se a um rombo de cerca de R$
34 bilhes anuais. Estruturada nos anos 50, quando a proporo
entre jovens que contribuam e idosos que recebiam era de 8 para
1, v-se hoje alterada em face de uma mudana demogrfica pela
qual temos 2 ativos para cada 1 inativo. Mais do que isso, um
sistema profundamente injusto, medida que privilegia alguns
setores do funcionalismo pblico em detrimento dos demais.
Nesse sentido, entre as diversas mudanas
feitas pelo constituinte reformador, o novo art.40 da
Constituio ou a determinar que os servidores tm direito
ao regime previdencirio de carter contributivo, observados
critrios que preservem o equilbrio financeiro e atuarial,
ou seja, a conta da previdncia no ser mais fixa nas sadas,
independentemente do que tenha sido arrecadado. Portanto, tambm
aqui, houve uma grande flexibilizao. Outro ponto relevante
tocado pela reforma refere-se ao estabelecimento de uma idade
mnima para a aposentadoria, que deve ser combinada com o tempo
de servio, de forma que os funcionrios em a se aposentar
com cerca de 60 anos. Hoje a mdia de idade para aposentadoria
de 50 anos para funcionrios pblicos (art. 40, III, a e b).
Por fim, h ainda uma reforma tributria por
vir. Como, no momento de redao deste texto, os seus contornos
ainda no estavam bastante claros, resta apenas apresentar os
objetivos expressos pelo governo, que so alcanar maior
simplicidade, neutralidade e generalidade no conjunto das normas;
eliminao das desvantagens da produo nacional em
relao internacional; harmonizao de nosso sistema
tributrio, tanto internamente como em relao comunidade
internacional, sobretudo na esfera de mercado de capitais; e
criao de condies para uma maior efetividade do sistema.49
Entre as propostas mais importantes encontra-se a substituio
do atual ICMS estadual, por um imposto sobre valor agregado
federal, o que certamente contribuir para uma maior centralizao
tributria.
Todas essas reformas tm sido feitas sob o
argumento de que necessrio buscar adaptar o Estado brasileiro
s demandas da globalizao. Porm no segredo que
decorrem fundamentalmente da imposio das economias centrais,
das agncias intergovernamentais de financiamento, como o FMI e o
Banco Mundial, e das empresas de carter transnacional. De acordo
com a retrica da globalizao, o capital internacional s
ir se interessar por investir num determinado territrio se
houver um conjunto de condies adequadas, que vo no sentido
da desregulamentao, da flexibilizao da legislao
social, da ampla liberdade de movimentao de capital,
previsibilidade e minimizao dos custos fiscais e da
estabilidade monetria, que por sua vez exige reduo dos
gastos pblicos e equilbrio fiscal. Esta a cartilha. Como no
Brasil muitas destas questes encontram-se na Constituio,
esta a direo das reformas.
O impacto dessas mudanas ainda no pode ser
medido do ponto de vista de sua eficincia. Mesmo porque h
tantos outros componentes na atual crise brasileira, que essas
reformas parecem ter sido utilizadas muito mais para sinalizar que
o Pas esta seguindo as determinaes internacionais do que
efetivamente provocar uma alterao no padro de atuao do
Estado. Obviamente que as reformas da istrao e da
previdncia ainda exigem uma carga infra-constitucional de
regulamentao para que possam ser efetivadas. Por outro lado, o
que tem se apresentado sob o rtulo de reforma fiscal apenas
um ajuste e tem o objetivo de ampliar a arrecadao, que hoje
j gira em torno de 30% do PIB, visando estabelecer um
equilbrio nas finanas do Estado. Nesse o, a alterao
constitucional que mais trouxe mudanas refere-se
privatizao. Nos ltimos quatro anos o Brasil privativo mais
do que a Inglaterra em 11 anos do governo conservador de Margarete
Thatcher. Poucos, porm, foram os benefcios palpveis, visto
que uma grande parte do que resultou das privatizaes foi
consumida com o custo dos juros, juros estes insuflados para
seduzir capitais, financiar a dvida interna e manter o
equilbrio da moeda.50
Diferentemente dos demais fenmenos da
globalizao, no temos neste caso a j mencionada via de duas
mos. H apenas uma assimilao dos padres internacionais,
sob a perspectiva de que so essenciais para se participar do
processo de globalizao. No entanto, se aceitarmos os
argumentos de Galbraith j mencionado e de Hirst,51 de que a
retrica de um capitalismo globalizado, onde o capital se
encontra absolutamente desvinculado de ptria e que se bem
trabalhado pode beneficiar a todos, apenas encobre a realidade de
uma expanso do capitalismo internacional, nossos esforos
reformistas tm que ser repensados. Se o capital tem ptria e se
a sua expanso gera benefcios incomensuravelmente maiores s
economias centrais do que quelas que tem servido de fonte de
mo-de-obra e infra-estrutura baratas, as reformas tm que ser
redirecionadas, de forma a satisfazer os interesses da sociedade
brasileira. Isso significa manter nas mos do Estado mecanismos,
ainda que mais limitados do que no passado, de governabilidade
econmica. Aceitar incondicionalmente a retrica da
globalizao e promover as reformas por ela exigida cometer
um suicdio poltico.
Evidente que as constituies importam para o
desenvolvimento econmico, medida que elas conseguem
promover estabilidade, credibilidade e responsabilidade (ability).52
Essa uma misso para a qual as constituies devem se
adaptar para colaborar com o desenvolvimento econmico.
Estabilidade e credibilidade so fundamentais para que se possa
investir a mais longo prazo, sem medo de mudanas da vontade dos
governos. Ao assegurar direitos individuais, como o direito
propriedade e estabelecer limitaes ao sistema tributrio,
indica-se ao investidor que seus investimentos no ficaro
merc das paixes de maiorias eventuais ou de minorias
extremamente poderosas que consigam converter suas vontades em
vontades governamentais. Por outro lado, a responsabilidade do
governo em face da lei e seus cidados aumenta a confiana no
sistema, pois se torna possvel retificar violaes a direitos
e quebras de compromissos.
Como norma mais rgida do que as demais, as
Constituies favorecem esses valores que estimulam a economia.
Porm, as constituies tm muito mais a fazer do que
simplesmente ser um equipamento econmico, que deve se amoldar
para atender aos interesses do mercado. As constituies, se
pretendem ter algum sentido, devem ser formuladas, sobretudo, como
parmetro de justia da comunidade. Sem que sejam capazes de
articular regras ticas, por intermdio de uma carta de direitos
e de um conjunto de procedimentos para a tomada de decises
democrticas, as constituies perdem a sua finalidade. Como se
optssemos por viver num mundo governado nica e exclusivamente
pelo princpio da utilidade e da eficincia.53 Porm, se
partirmos do pressuposto moral bsico de que todos so iguais e
portanto devem ter suas esferas de dignidade protegidas ante a
comunidade, a constituio no pode abrir mo desse papel de
mecanismo de proteo dessa esfera moral.54 Mesmo que ela no
venha a ocupar o papel de norma superior na organizao de um
rule of law do futuro, a ela caber realizar a travessia de uma
forma segura para esse novo modelo.
A economia e o poder do Estado, portanto, no
podem ser apresentados como fins em si, mas como instrumentos para
a realizao da dignidade exigida para todos. A constituio
tem por funo estabelecer os parmetros ticos aos quais
devem se submeter a economia e o poder do Estado e no o
inverso. Evidente que se ao estabelecer regras de justia
distributiva, a constituio provocar uma profunda ineficincia
de carter econmico, que inviabilize qualquer forma de
justia, essas regras sero de pouca utilidade. Assim, as
constituies devem salvaguardar regras bsicas de justia,
poltica e economia e, na medida do possvel, favorecer os
critrios de eficincia e utilidade. Este o desafio que se nos
apresenta.
_________________________
(*) Este trabalho dedicado ao Professor Celso
Antnio Bandeira de Mello; agradeo mais uma vez a Beatriz pela
leitura e crticas.
Nota: Publicado sob autorizao do autor, este
artigo est inserido no captulo 1 da Parte I do livro Direito
Global. SP, Editora Max Limonad, 1999, p. 15-48, organizado por
VIEIRA, Oscar Vilhena, e SUNDFELD, Carlos Ari.
1. Tomei essas trs expresses emprestadas de
Boaventura de Sousa Santos; isto no significa, porm, que as
esteja usando com a densidade dada pelo autor, in Toward a New
Common Sense, New York, Routledge, 1995. p. 281 e ss.
2. De acordo com John Kenneth Galbraith, ns
americanos inventamos este conceito para dissimular nossa
poltica de entrada econmica em outros pases. E para tornar
respeitveis os movimentos especulativos de capital, que sempre
so causas de grandes problemas, Folha de S. Paulo, 7/11/1997,
apud Globalizao: o Fato e o Mito, Rio de Janeiro, Ed. UERJ,
1998 p. 7.
3. Edmund Burke, Reflexes sobre a Revoluo
em Frana, Braslia, Universidade de Braslia, 1982.
4. Jean-Jacques Rousseau, O Contrato Social, Rio
de Janeiro, Ediouro, 1982.
5. Karl Marx, A Questo Judaica, So Paulo,
Ed. Moraes Ltda., 1991, p. 41 e ss.
6. Jon Elster, Constitucion Making in Eastern
Europe, Public istration, 71, 1993; Samuel Huntington, The
Third Wave, 1991, p. 3 e ss.
7. Francisco Lucas Pires, Introduo ao
Direito Constitucional Europeu, Coimbra, Almedina, 1997, p. 8.
8. Immanuel Kant. Perpetual Peace", in
Reiss, Kant Political Writings, Cambridge, University Press, 1996,
p. 102 e ss.
9. Jrgen Habermas, Between Facts and Norms,
Cambridge, The MIT Press, 1996, p.82 e ss.
10. Jon Elster, Precommitment and the Paradox of
Democracy, Columbia University Materials, 1995, p. 1.
11. Oscar Vieira, A Constituio e sua Reserva
de Justia, So Paulo, Malheiros Editor, 1999.
12. J. H. H. Weller, The Transformation of
Europe, The Yale Law Journal, vol. 100:2403, 1991.
13. J. H. H. Weller, ob. cit., p. 2.413.
14. Court of Justice of the European Communities,
case 6/64, 10 Rec. 1143 (1964).
15. Idem.
16. O art. 189, 2 do Tratado, estabelece
que regulamentos devem ter aplicao geral. Eles devem
vincular todos os Estados partes e ser diretamente aplicveis em
cada Estado membro.
17. Foster vs. Nelson, 27 U.S. (2 Pet) 253, 313-
14(1829), com redao do Chief Justice Marshall.
18. Francisco Lucas Pires, ob. cit., p. 26.
19. Art. 55.
20. J. H. H. Weiller, ob. cit., 2.416/7.
21. Francisco Lucas Pires, ob. cit., p. 26.
22. Para uma discusso deste tema ver Jrgen
Habermas. Citizenship and Nacional Identity in ob. cit., p. 500 e
ss.
23. BVerfGE, p. 271 e ss.
24. Werner von Simon e Jorge Schwarrze, "Integracin
Europea y Ley Fundamental. Mastrique y sus Consecuencias para el
Derecho Constitucional Alem, in Manual de Derecho
Constitucional, Benda et al., IVAP, 1996, p. 38 e ss.
25. Art. F. 2.
26. BVerfGE 73, 339,340, apud Werner von Simon e
Jorge Schwarrze, ob. cit., p. 40.
27. BVerfGE de 12/10/1993, apud Oscar Vieira,
ob. cit.
28. Jack Donnelly, What are Human Rights,
in Introduction to Human Rights, USIA, 1998, p. 3.
29. Max Weber, Economa y Sociedad, Fondo de
Cullura, Mxico, 1984, p. 172.
30. Oscar Vieira, A Constituio
Brasileira, os Tratados Internacionais e os Mecanismos de Defesa
dos Direitos Humanos, in Direitos Humanos no Brasil NEV/USP,
So Paulo, 1993. p. 13.
31. Para uma interpretao desse dispositivo
ver Oscar Vieira, O Supremo Tribunal Federal: Jurisprudncia
Poltica, Revista dos Tribunais, So Paulo, 1994, p. 88; e o
detalhado trabalho de Flvia Piovesan, Direitos Humanos e o
Direito Constitucional Internacional, So Paulo, Max Limonad,
1996, p. 82 e ss.
32. Para uma anlise da formao do direito
internacional costumeiro ver Louis Henkin, Pugh, Scharter e Smit,
International Law, St. Paul, West Publishing Co., 1987, p. 37 e
ss.; ver tambm Theodor Meron, Human Rights and Humanitarian
Norms as Costumary Law, Oxford, Claredon Paperbacks, 1989, p. 79 e
ss.
33. Art. 2 (CIDESC/1966) Cada Estado parte
na presente Conveno compromete-se a adotar medidas... que
visem assegurar progressivamente... o pleno exerccio dos
direitos reconhecidos no presente Pacto....
34. Isso quando o Estado expressamente acatar a
jurisdio do Comit, por intermdio, do Protocolo Adicional
Conveno.
35. Para uma precisa anlise ver Jos
Francisco Sieber Luz Filho, Perspectivas para a Corte
Internacional Permanente, in Revista do ILANUD, n. 12, So
Paulo, 1998.
36. Art. 26, caput (CADH/1969), Desenvolvimento
Progressivo.
37. Quando os Estados expressamente consentirem
com est hiptese, conforme o art. 62 da referida Conveno.
38. Art. 41 (CADH/1969).
39. Para uma anlise do papel da Corte ver
Thomas Burguenthal, The Inter-American System for the
Protection of Human Rights, in Theodor Meron, Human Rights in
International Law: Legal and Policy Issues, Oxford, Claredon Press,
1989, p. 460 e ss.
40. Sobre o caso Velasquez consultar Juan Mendes
e Jos Miguel Vivanco, Disappearences and the Inter-American
Court: Reflexions on a Litigation Experiences, Hamline Law
Review, v. 13, n. 3, summer 1990.
41. Flvia Piovesan, ob. cit., 82 e ss.; e
Carlos Weis, Direitos Humanos Contemporneos, So Paulo,
Malheiros Editor, 1999, cap. 1.
42. Thomas Burguenthal, International Human
Rights, St. Paul, West Publishing Co., 1988.
43. Basicamente a Inglaterra e os pases
escandinavos.
44. Todos tm direito a uma ordem social e
internacional em que os direitos e liberdades estabelecidos na
presente declarao possam ser realizados, art. 38 da
Declarao Universal dos Direitos Humanos.
45. Joseph Stiglitz, vice-presidenle e
economista-chefe do Banco Mundial, conferncia proferida em
Helsinque, em janeiro/1998.
46. Para uma anlise mais detalhada dessa
emenda ver Oscar Vilhena Vieira, ob. cit, 1999.
47. Recomendao de 20/9/1996, sobre a Reforma
do Poder Judicirio, firmada pelo ex-Ministro, Malson da
Nbrega, Presidente do Conselho de Reforma do Estado, MARE, 1996.
48. Luiz Carlos Bresser Pereira, A Reforma do
Estado e a Constituio Brasileira, Textos para Discusso, n.
1, ENAP, Braslia, 1995.
49. Justificativa da Proposta de Reforma
Tributria preparada pelo Ministrio da Fazenda.
50. Como salienta Celso Antnio Bandeira de
Mello, os esforos tm sido infrutferos, uma vez que a
dvida mobiliria elevou-se cinco vezes. ou de R$ 60
bilhes para R$ 310 bilhes (9/1998). 0 dficit de
transaes correntes cresceu de US$ 1,7 bilho pare USS 30,9
bilhes (11/98): mais de 18 vezes. A dvida externa privada,
dantes de US$ 54,3 bilhes, elevou-se a US$ 118 bilhes (10/98):
acima do dobro... O dficit pblico, de 1,1% do PIB, elevou-se
quase sete vezes, representando mais de 7% dele, A Reconhecida
Competncia do Dr. CHF, Folha de S. Paulo. 19/1/1999, p. 3.
51. Paul Hirst e Graham Thompson, Globalizao
em Questo, Petrpolis, Editora Vozes, 1998, p. 271 e ss.
52. Jon Elster, The Impact of Constitutions on
Economic Performance, Proccedings of the World Bank Annual
Conference on Development Economics, 1994, p. 206 e ss.
????????0p>font size="1">53. Para uma criativa imagem do que seria esse
mundo, ver Steven Lukes, Five Fables About Human Rights, in
On Human Rights, Stephen Shute and Susan Hurley (ed.), the Oxford
Amnesty Lectures, New York, Basic Books. 1993, p. 21 e ss.