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Ciganos: o
futuro em suas mos
Luciano Mariz Maia
[email protected]
A Constituio
Federal de 1988 atribuiu ao Ministrio Pblico Federal a proteo
do patrimnio pblico e social, do meio ambiente e de outros
interesses difusos e coletivos; e a defesa judicial dos direitos e
interesses das populaes indgenas. Um dos resultados prticos
foi a criao, na Procuradoria da Repblica, da Coordenadoria
de Defesa dos Direitos e Interesses das Populaes Indgenas/CDDIPI.
A Lei Complementar 75, de 20.05.1993, ampliou ainda mais a ao
do MPF ao atribu-lo tambm a proteo dos interesses
relativos s comunidades indgenas e minorias tnicas (Art. 6,
VII, "c"). Diante disto, em abril de 1994, a CDDIPI foi
substituda pela Cmara de Coordenao e Reviso dos Direitos
das Comunidades Indgenas e Minorias (conhecida como 6a
Cmara), incluindo-se nestas tambm as comunidades negras
isoladas (antigos quilombos) e os ciganos.
Para a defesa das
minorias indgenas, o MPF pode dispor de inmeras publicaes
sobre os povos indgenas, escritas por dezenas de antroplogos
brasileiros e estrangeiros que j realizaram ou esto realizando
pesquisas de campo entre povos indgenas. Alm disto, existe
ainda um rgo governamental - a Fundao Nacional do ndio -
que tem como incumbncia cuidar da defesa dos interesses indgenas,
baseando-se na Lei no. 6.001/73, mais conhecida como o Estatuto do
ndio.
A defesa dos
direitos e interesses ciganos, no entanto, bem mais difcil e
complexa, porque a bibliografia sobre ciganos no Brasil muito
reduzida e mal chega a uma dzia de ensaios cientficos, por
causa da quase inexistncia de antroplogos e outros cientistas
que realizaram ou realizam pesquisas de campo sobre ciganos
brasileiros, existindo de modo incipiente e desestruturado
organizaes no-governamentais de apoio aos ciganos, ou
organizaes ciganas, e inexistindo um rgo governamental e
uma legislao especfica em defesa dos direitos e interesses
ciganos. Ao contrrio dos ndios, os ciganos nem sequer so
mencionados na Constituio Federal, e constituem a minoria
menos conhecida, e talvez por isso vtima de muitos preconceitos
e discriminao no Brasil.
A Constituio
Federal garante aos ciganos nascidos no Brasil os mesmos direitos
dos outros cidados brasileiros. Na prtica, muitos destes
direitos so constantemente violados, o que se manifesta na existncia
de estentipos negativos, preconceitos e vrias formas de
discriminao das minorias ciganas pela populao majoritria
nacional.
Porm, alm
disto, os ciganos, por constiturem minorias tnicas, tm tambm
direitos especiais, citados em vrios documentos internacionais,
e aprovados e promulgados tambm pelo governo brasileiro.
Desnecessrio dizer que tambm estes direitos especiais so
constantemente ignorados e violados.
Mas, quem so os
ciganos?
Elas lem mos,
dizem o futuro e anunciam a sorte. So de raa de adivinhos? No!
So ciganas. Vestem-se com longos vestidos coloridos, adornam-se
com colares exuberantes, caminham em pequenos grupos, e observam
os curiosos antes, todos desejosos de saberem da vida o
intento. Estimulam oraes, acolhem dinheiros entregues em troca
de intervenes favorveis a seus destinos, e com isso, cada
dia, asseguram para si e suas famlias a vida de cada dia.
Os homens realizam
trocas. Animais, eletrodomsticos, colchas, artigos variados de
vesturio, pequenos objetos, tudo mercadoria que a de mo
em mo, e faz circular a riqueza, ou a pobreza, porque, a cada
dia, o nicho econmico sobre o qual atuam tem diminudo sua
prosperidade. No tm, da sociedade envolvente, o sentido de
propriedade e posse. O lugar, o cho, estrada e agem.
Quando cansados, ou quando bons negcios se apresentam nas
proximidades, o cho vira acampamento, e as lonas viram barracos,
e estes seus "asilos inviolveis".
Ciganos. Nmades
vindos da ndia para a Europa h cerca de 1.000 anos atrs, com
paradas pela Prsia, depois pelos Blcs (Grcia, etc.), e, a
partir do Sculo XIV e XV, espalhando-se por toda a Europa
chegando ao Brasil no final do Sculo XVI, como degradados de
Portugal. Esse nomadismo de cunho econmico. Seguem atrs de
mercados, para vender seus produtos, e realizar seu ganha-po. E
nisto formam como que um circuito de pontos de contato e
conhecimento, que revisitado e renovado de tempos em tempos.
Isto no significa dizer que todo cigano tem que estar
permanentemente na estrada. Basta ver Souza, ou Patos, para
perceber que a presso econmica fez com que muitos se
assentassem.
Ciganos. Sob este
nome, qualificam-se minorias tnicas que a si mesmos chamam de calon,
rom ou sindi. Os do Nordeste do Brasil, Minas e parte
de So Paulo, por exemplo, so calon, e falam uma lngua
chamada cal. Vieram de Portugal e Espanha. So dos mais
antigos no Brasil. Os rom, e os sindi so mais
recentes, sendo grandes as correntes de imigrao para o sul
ainda neste Sculo XX. So de presena intensa no sul do pas,
e tambm So Paulo.
Formam uma
sociedade parte, com sua tica e seus cdigos de conduta. E,
como convivem com a sociedade sedentria, formal, organizada, so
forados a aceitar as normas desta sociedade. Adotam-se muitos
nomes. comum serem batizados vrias vezes. O padrinho um vnculo
de respeito e proteo firmado com pessoas de representatividade
no meio com o qual os ciganos convivem.
So vtimas de
muitos preconceitos. Para os citadinos, cigano muitas vezes sinnimo
de esperto, de vagabundo, ou de ladro. Esse rano histrico
cultivado, inclusive, pela literatura em torno de estrias e histrias
vividas ou imaginadas. Assim como os judeus, ou os ndios, ou os
negros, ou os pobres, os ciganos so discriminados na sociedade.
A Constituio de
1988 quase teve um artigo especfico determinando o efetivo
respeito minoria cigana. O ento Deputado Antnio Mariz props
emenda proibindo discriminao em razo da etnia ou do
nomadismo. No prevaleceu, a final. Ainda assim, esto os
ciganos abrangidos pela grande proteo dada pelos artigos 215 e
216 da Constituio, que manda preservar, proteger e respeitar o
patrimnio cultural brasileiro, o qual constitudo pelos
modos de ser, viver, se expressar, e produzir de todos os
segmentos tnicos que formam o processo civilizatrio nacional.
Como toda minoria
tnica (ou religiosa, ou lingstica), os ciganos tm direitos
fundamentais. O primeiro deles o direito a no ser objeto de
discriminao. E a discriminao ocorre quando os ciganos
recebem tratamento distinto do concedido aos no ciganos,
unicamente em razo de sua pertinncia a seu grupo tnico.
Assim ocorre, por exemplo, quando seus vizinhos sempre atribuem a
autoria de qualquer pequeno delito contra o patrimnio aos
membros da comunidade cigana, pelo s fato de, por preconceito,
acharem que so eles os mais propensos a tais investidas.
comum a populao acusar os ciganos de delitos que a prpria
populao que pratica.
Outra forma de
discriminao a imposio de um tratamento igual, sem
respeitar as diferenas. Na educao, por exemplo, transmitindo
contedos e valores sociais como forma de assimilao cultural,
desconsiderando a pauta de valores, as crenas, os padres de
comportamento aplicados pelo grupo minoritrio. E considerando a
lngua no como tal, mas como um mero dialeto aplicado
para despistar a polcia!
Em pases
europeus, h experincias de sucesso em educao especial para
os ciganos, do mesmo modo que h, no Brasil, experincias de
sucesso em educao especial para os ndios. Nesses exemplos,
sempre prioritrio mencionar a necessidade de produo de
material didtico-pedaggico, tanto para os alunos quanto para
os professores, em razo da especificidade cultural dos ciganos,
e objetivando utilizao do mesmo como instrumento de superao
dos preconceitos existentes, os quais so geradores de discriminao
social, bem como levar em conta os modos tradicionais de transmisso
das experincias e do saber, e mtodos e tcnicas pedaggicas
(tanto ensinando os ofcios, quanto a lngua e a reproduo
dos usos e costumes sociais e grupais).
de se lembrar a necessidade de treinamento e capacitao de
professores, num primeiro momento com instrues acerca das
especificidades culturais do grupo tnico, e num segundo momento
professores bilnges, j que os ciganos falam sua lngua prpria,
chamada Cal (ou Cal), que genericamente denominada,
no mundo inteiro, de Romani (ou Romans); em razo do uso da lngua
como fator de preservao cultural, unidade social, e proteo
contra estranhos, deve ser previsto o treinamento de ciganos
membros da comunidade como parte do corpo de professores ou
monitores.
A realizao de
Seminrio onde sejam abordados os vrios aspectos da temtica
cigana (educao, cultura, lngua, acampamentos, preconceito,
discriminao, trabalho e renda, etc.) pode ser um bom comeo.
Os ciganos
continuam a. Alguns na estrada. Muitos j fora dela, quando
nada temporariamente. Mas todos merecedores da ateno, do
conhecimento e do respeito de todos ns. Nosso futuro pode at
ser lido nas mos das ciganas. E o futuro dos ciganos, em grande
parte, est em suas crianas, suas tendas e em suas estradas.
Mas tambm est nas mos dos rgos pblicos e dos governos,
como tambm da sociedade, que h de fazer esforos para conhec-los,
e assim respeit-los, na essncia de sua dignidade de pessoa
humana, e no exerccio dos seus direitos fundamentais.