3d2c8
Banalizao
por Frei Betto
Sempre me intrigou
o ofcio de torturador. Ele espuma de dio de sua vtima,
agride-a, cospe nela, dependura-a no pau-de-arara, aplica-lhe
choques eltricos, enfia-a de cabea para baixo na latrina,
queima-a com cigarro aceso. No fim do expediente, volta para casa,
beija a mulher, afaga as crianas, eia com o cachorro, faz
suas preces e recosta a cabea no travesseiro como quem sabe que
"o homem mau dorme bem".
Em dezembro de
1969, quando o DEOPS de So Paulo soltou o padre Marcelo
Carvalheira hoje arcebispo da Paraba e vice-presidente da
CNBB , o investigador "Pudim", um dos mais afoitos
torturadores da equipe do delegado Fleury, levou-o sua casa. Um
capricho profissional, como o motorista a com o caminho novo
da firma em frente casa da namorada ou o piloto faz um vo
rasante no bairro em que mora.
Marcelo entrou
naquela casa, no na condio de preso, mas de presa.
"Pudim" talvez tivesse o hbito de exibir sua mulher
e filhos as diferentes espcies de bandidos que avam por suas
mos. Faltava um padre. E ali estava o sacerdote aos olhos do
policial, um terrorista que habilmente se encobria sob a afvel
aparncia de um homem de Deus.
O que impressionou
Marcelo foi ver "Pudim" no aconchego do lar: muito
diferente daquele homem que, no 5 andar do DEOPS, dependurava
homens e mulheres no pau-de-arara e fazia a corrente eltrica
obrig-los aos estoros de uma dana macabra. Agora era o pai
dedicado, cercado por seus filhos, e o esposo afvel, como um aougueiro
que, em famlia, j nem se recorda que ou o dia abatendo
animais, abrindo vsceras, retalhando postas e sujando as mos
de sangue.
Se uma pessoa
querida vai para a mesa de cirurgia, ficamos em sobressalto. A
equipe mdica, porm, abre o crnio, corta o peito, manipula o
corao ou os intestinos do paciente com a mesma tranqilidade
com que os funcionrios do Instituto de Medicina Legal lidam com
cadveres destroados num acidente areo ou sufocados pela lama
de um desabamento.
Suponho que o convvio
dirio com certas situaes acabe por embotar-nos a
sensibilidade. Aos poucos, a dor alheia soa como um ranger de
porta, o horror vira rotina, a morte do prximo vista como uma
pgina virada. a banalizao da tragdia. Para -la,
procuramos revesti-la de comdia.
A TV nos submete
ininterruptamente a um aluvio de acidentes, assassinatos,
guerras, hordas famintas e esqulidas agarradas aos ossos
ressaltados de seus filhos de corpo exguo e cabea dilatada.
Nada disso tira o nosso sono nem provoca a nossa indignao. Aos
poucos, vamos itindo que essa a normalidade, talvez um erro
humanamente justificvel, como as bombas atiradas sobre crianas
e idosos na Iugoslvia. Apenas um n de tristeza por ver o mundo
to injusto e cruel.
A TV domestica-nos
para bem conviver com a tragdia, carnavalizando situaes
aberrantes e exibindo no palco deformaes de corpo e esprito
como se fossem meras atraes de interesse pblico. Torna-se
rotina ver a face que desabona os polticos: as diatribes do
ministro, a corrupo do deputado, as fanfarronices do senador,
a mentira do prefeito, a demagogia do governador, o cinismo do
presidente.
Assim, aos nossos
olhos, molda-se a impresso de que a poltica suja, todos os
polticos so malandros, o processo eleitoral uma farsa.
Desiludidos, recolhemo-nos nossa vida privada, indiferentes
esfera poltica, onde decidida - para pior ou melhor a vida
de milhes de pessoas, do preo do nibus ao o ao emprego.
Tudo se banaliza, a ponto de ocorrer uma inverso em nosso
enfoque: danem-se os direitos coletivos, as causas sociais, os
valores e os ideais. O que importa o chicote da mascarada, a
privacidade da danarina do tchan, a filha da rainha dos
baixinhos, o fretro da princesa que enterra a nossa iluso de
que a vida, para nobres e ricos, sempre bela e feliz.
Nas ruas, tropeamos
em mendigos e cruzamos com crianas abandonadas. So moscas na
comida. Importam menos que uma dor de dente. Sorte nossa que
"no somos como eles". Preferimos acreditar que a
desigualdade social como o inverno e o vero: para uns, as
agruras do frio; para outros, o conforto do calor.
Conta a parbola que certo monge
retornava a seu mosteiro. Cruzou no caminho com uma criana
maltrapilha, abatida pela fome e pelo frio. Na igreja, vociferou
contra Deus, que permitia sofrimentos to injustos. "Por que
o Senhor nada faz por aquela criana?" De repente, um claro.
Deus mostrou a Sua face luminosa e disse a ele: "Eu j fiz:
voc!".
|