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Um sentido para a vida

Palestra realizada em 20 de novembro de 1997 na Federao do Comrcio do Estado de So Paulo, onde Frei Betto, um dos maiores telogos e intelectuais brasileiros, fala do papel da cincia, da educao e da religiosidade no mundo moderno

Minha inteno falar sobre o momento que estamos vivendo, momento confuso em termos de perspectiva do futuro. A primeira evocao que fao da pintura de Michelangelo na Capela Sistina, "A criao de Ado", em que a figura de Deus, recoberto de mantos e com a barba longa, estende o dedo para Ado. Ao mesmo tempo em que Ado, como smbolo da humanidade, atrado em direo Terra, ele estende o dedo na direo do Criador, espcie de premonio nostlgica de que preciso no perder o contato com a fonte, com a raiz, que Deus. Michelangelo foi genial, porque muito difcil compreender o momento em que se vive. fcil analisar os momentos depois que eles aram. O artista, com sua intuio, com seu talento, tem o dom de captar o momento, que depois a epistemologia e a filosofia tentam explicar.

O que acontecia naquele momento da "descoberta" da Amrica, da "descoberta" do Brasil? A agem. Diria que no estamos vivendo uma poca de mudanas. Estamos vivendo, hoje, uma mudana de poca. A ltima mudana de poca foi justamente na "descoberta" da Amrica, quando o Ocidente ou do perodo medieval para o moderno. A pintura de Michelangelo expressa, com genialidade, essa chegada de um tempo em que o conhecimento, a epistemologia, se desloca de uma perspectiva teocntrica para uma perspectiva antropocntrica. A rainha das cincias, durante mil anos, no perodo medieval, foi a teologia. A rainha das cincias, da modernidade a fsica. O perodo medieval se baseava na f; o moderno, na razo. O perodo medieval se baseava na contemplao das verdades reveladas; o moderno, na busca da compreenso da mecnica deste mundo e no pragmatismo, na transformao deste mundo.

Quando os camponeses medievais preparavam o campo, aspergiam gua benta e ainda pagavam aos padres pela gua comprada. At que apareceu um sujeito, que no era cristo, com um pozinho preto, dizendo: "Ponham isso na terra, e iro produzir mais do que com a gua benta dos padres". De fato, o adubo resultou numa produtividade muito maior do que a gua benta. Isso criou uma crise de f no fim da Idade Mdia. Por qu? Porque a f medieval, como muitas vezes a nossa f hoje, uma f sociolgica, que tem como anteparo nossa compreenso do mundo. Uma vez que essa compreenso mudada, a f desaba. Alis, muitas vezes amos por crises espirituais que, na verdade, no deveriam ser entendidas assim, mas como crises de cosmovises ou de mundividncias que sustentam nossa maneira de compreender a experincia da f.

Descartes e Newton

A modernidade aparece, primeiro, com o grande movimento da globalizao que foram as navegaes ibricas. Falamos hoje em globalizao como se fosse novidade. Mas, na Escola de Sagres, j se falava em globalizao, com outras palavras. E tanto globalizaram que conseguiram abarcar outras regies do planeta, embora Colombo tenha morrido sem saber que havia chegado Amrica. Morreu convencido de que tinha alcanado Cipango, nome que se dava ao Japo. As descobertas martimas, a criao das universidades, principalmente da Sorbonne, que do sculo 12, e da Universidade de Bolonha, e as corporaes martimas, que so as matrizes dos sindicatos, foram trs fatores que, de certa forma, prepararam o advento da modernidade. Todos ns somos filhos da modernidade. Nossa estrutura de pensamento moderna, mas nem sempre foi assim, e nem em toda parte do mundo assim.

Qual a caracterstica da modernidade? So duas pernas: a filosofia de Ren Descartes e a fsica de Isaac Newton. Descartes, com o "Penso, logo existo", mostrou que a razo capaz de decifrar os enigmas do conhecimento. J contemporaneamente a ele, ou um pouco antes, um acontecimento marcou decisivamente a introduo da viso moderna: a astronomia de Nicolau Coprnico, depois complementada por Galileu Galilei. Coprnico fez algo de revolucionrio, a ponto de hoje se falar de revoluo copernicana, porque at ento as pessoas olhavam o mundo com os ps na Terra. Coprnico fez o inverso: como ser a Terra se eu me imaginar com os ps no Sol? A partir dessa mudana, ele teve uma compreenso completamente diferente do universo, mas s ousou partilh-la em seu leito de morte, com medo da Inquisio. Depois veio Galileu e acabou com a idia de que a cincia baseada no senso comum. Detalhe: o que Galileu constatou cientificamente no sculo 17, Eratstenes j havia comprovado na Grcia, trs sculos antes de Cristo. Eratstenes, astrnomo grego, afirmava que a Terra redonda e gira. Ele teve o cuidado de colocar estacas entre duas cidades e medir a incidncia do Sol sobre essas estacas, constatando que a sombra que o Sol projetava comprovava que a Terra era redonda e gira. Mas Eratstenes no tinha lobby suficiente para fazer prevalecer sua opinio. O mais fantstico que ousou medir a cintura da Terra, e chegou concluso de que ela tinha 39 mil quilmetros. No sculo 20, a cincia constatou que so 40.008 quilmetros.

A idia de que vivemos num planeta, que no o centro do universo, foi extremamente desconfortvel para a Igreja, primeiro porque, na Bblia, consta que Josu parou o Sol. Se a palavra de Deus afirma que Josu parou o Sol, como um cientista ousa afirmar que no o Sol que gira, mas a Terra que gira em torno do seu prprio eixo e em torno do Sol? E depois, diziam a Galileu, o Sol nasce no leste, a sobre nossas cabeas, desce no oeste, durante a noite caminha por baixo da Terra e, de repente, renasce novamente no leste. ele que gira. A grande revoluo que introduz a modernidade foi provar que a cincia no o que parece, mas o que se comprova pela experincia e pela pesquisa.

Descartes levou isso ao plano filosfico. Ele tanto influenciou a modernidade que ainda hoje nossa cincia e nossa chave de conhecimento so profundamente cartesianas. O exemplo mais bvio a medicina. Voc vai ao mdico, tem um problema cardaco e ele receita um remdio muito bom para o corao. O resultado o aparecimento de um pequeno problema colateral no intestino, mas para o corao o medicamento timo. Se o problema intestino, voc toma um outro remdio, que vai provocar uma pequena insnia, mas no se preocupe. Ou vai ao mdico do esprito, o terapeuta, o psicanalista, e alguns nem sequer lhe estendem a mo porque no pode haver contato fsico. Mas o mdico do corpo, que manda fazer uma srie de exames, nem sempre tem o cuidado de perguntar sobre sua histria familiar, seus hbitos, como o seu cotidiano, o que voc come. Ou seja, a cultura moderna to cartesiana, to fragmentada, sem percepo do todo, que no temos, como na China e no Tibete de antigamente, o mdico da pessoa, ns temos o mdico do detalhe. Na China antiga voc pagava o mdico enquanto tinha sade. Ficando doente, ele tinha que trat-lo de graa, porque a responsabilidade do mdico assegurar sua sade. Ns pagamos o mdico quando ficamos doentes. Ento ele no se sente propriamente responsvel pela preservao de minha sade.

A segunda perna da modernidade a fsica de Newton, que imaginou o universo como um grande relgio, sendo Deus o relojoeiro. Como os nossos relgios, o universo possui uma mecnica interna. No meu relgio os ponteiros coincidem com o movimento do tempo pela razo dessa mecnica interna. No preciso dar corda a cada minuto no meu relgio, nem preciso mover com o dedo os ponteiros para que haja essa coincidncia. Ento Newton concluiu que o universo tambm possui leis endgenas: quanto mais conseguimos decompor as coisas em seus mecanismos internos, melhor vamos conhecer essas coisas. Resultado: toda a cincia da modernidade uma cincia da decantao, da decomposio, da fragmentao. Ningum escapa disso. A fsica se tornou a rainha das cincias porque conseguiu provar que os fenmenos no acontecem por acaso, mas possuem leis. Podemos no entender essas leis. Os ndios pueblos, no Mxico, acreditavam, antes da chegada de Colombo, que o Sol nascia graas aos ritos que eles promoviam todas as madrugadas. Acredito que os ndios pueblos nunca tenham se arriscado a dormir at mais tarde, com medo de o universo ficar escuro. Newton acharia graa nessa histria, porque ele dizia: "Independentemente da minha vontade, o Sol vai nascer todos os dias, pelo fenmeno da rotao da Terra". No fim do sculo 17, um astrnomo ingls chamado Edmund Halley viu um cometa cruzar os cus de Londres e ou a noite debruado sobre sua escrivaninha fazendo clculos. No dia seguinte, reuniu a comunidade cientfica e previu: "Dentro de 77 anos, aquele cometa, que ontem noite atravessou os cus de Londres, voltar a ar". Muitos acharam que Halley tinha ficado louco: como algum, sem nenhum instrumento capaz de captar o movimento dos astros, fechado em sua casa, pode afirmar, com tamanha segurana, que aquele astro brilhante vai voltar exatamente dentro de 77 anos? Mas a comunidade cientfica o levou a srio e, efetivamente, em 1759, 77 anos depois (Halley j tinha morrido), o cometa que leva hoje seu nome atravessou de novo os cus de Londres. Foi a glria da razo. Ou seja, se a razo capaz de prever com tamanha exatido o movimento dos astros, capaz de reequacionar todos os problemas humanos. A vem o Iluminismo para dizer: o que no racional no real. A religio, ento, ou a escanteio total, como pura superstio.

A natureza somos ns

A modernidade se construiu com a supervalorizao da razo, com a capacidade de transformar o todo nas suas partes. Mas, muitas vezes, vendo as rvores sem perceber a floresta. E, no fim de cinco sculos de modernidade, qual o saldo que temos? Lamentavelmente, no dos mais positivos. por isso que se fala em crise da modernidade. Primeiro, graas ao avano da cincia e da tecnologia, temos hoje capacidade blica para destruir o planeta pelo menos 30 vezes e no chegamos capacidade humana de salv-lo uma vez. Lamentavelmente, temos hoje 5,8 bilhes de pessoas no planeta, das quais cerca de 2 bilhes vivem abaixo da linha da pobreza. Esse um primeiro fenmeno.

Segundo a FAO (Food and Agricultural Organization), temos produo de alimentos suficiente para 10 bilhes de pessoas e, conforme a prpria FAO, o Brasil um pas privilegiado porque o nico que tem potencial para colher trs safras por ano. Com dimenses continentais, no afetado por nenhuma catstrofe natural. No tem vulco, no tem deserto, no tem terremoto, no tem furaco, no tem geleiras, no tem zonas inabitveis, como a China, que apenas 1 milho de quilmetros quadrados maior do que o Brasil, mas habitvel s em 16% do territrio.

Outro fenmeno: no superamos os conflitos regionais internacionais. Ainda somos uma humanidade guerreira. E h tambm o fenmeno da destruio do meio ambiente. A razo instrumental, caracterstica da modernidade, fez com que, ao usarmos a natureza, ns a destrussemos. S que a natureza se vinga. No que a natureza se vinga porque est raivosa, mas porque no h, ao contrrio do que supunha a modernidade, diferena entre ns e a natureza. Ns somos seres da e na natureza, fazemos a natureza, fazemos a ns e ao nosso prprio corpo. E agora comeamos a sentir os reflexos disso.

Mais: a modernidade est em crise porque as quatro grandes instituies, nas quais ela se apoiou, esto em crise: famlia, Igreja, escola e Estado. Sabemos que os modelos antigos no esto vigorando mais. Alguns, numa atitude saudosista, querem ainda manter ou trazer atualidade aquilo que foi bom no ado. No fcil, porque h novos paradigmas sendo forjados nisso que hoje os filsofos j chamam de ps-modernidade.

A crise da famlia a crise das relaes de gnero ou seja, uma vez que o patriarcalismo comea a fracassar, a emancipao feminina se afirma e novos papis sexuais, como o dos homossexuais, se desclandestinizam. Isso nos obriga a encarar a questo da famlia e das relaes de gnero por uma outra tica. Segundo, a Igreja. As igrejas histricas contavam com o anteparo do consenso social. Isso no acontece mais. Vivemos numa sociedade pluralista, uma sociedade onde as crenas so to variadas quanto possvel e no tm mais fora para se impor como uma espcie de teologia com anteparo estatal, como aconteceu no perodo medieval ou mesmo na ascenso dos Estados modernos na Europa, que sustentaram o protestantismo. Martinho Lutero s no foi parar na fogueira da Inquisio graas aos prncipes europeus, que estavam interessados em romper com a tutela do Vaticano. E os Estados europeus s adquiriram autonomia porque buscaram legitimao religiosa no protestantismo nascente. Tivesse o papa assegurado sua hegemonia, Lutero teria ido para a Inquisio, como os albigenses e tantos outros. A hegemonia catlica sobre a Europa teria se mantido, e possivelmente o protestantismo, pelo menos naquele momento, no teria se expandido com a fora que teve.

Hoje, essa crise provocada pelo fenmeno da globalizao, que faz com que o mundo se transforme numa pequena aldeia, de tal maneira que as vrias modalidades de crenas religiosas possam ser intimamente conhecidas por povos entre os quais elas no tm raiz, como o caso do budismo ou do islamismo.

Massa disforme

A escola est em crise, porque nada mais cartesiano e newtoniano do que a escola. Se os paradigmas da modernidade entram em crise, a escola tambm entra em crise. E por que a escola entra em crise? So Toms de Aquino tem uma frase de que gosto muito: "A razo a imperfeio da inteligncia". Ou seja, a inteligncia vem de intus leggere (ser capaz de ler dentro). H pessoas analfabetas que so sumamente inteligentes. Inteligir uma situao no depende propriamente de cultura, depende de sensibilidade, de intuio, daquilo que a Bblia chama de sabedoria. E hoje constatamos que a escola nos torna cultos, mas no nos torna necessariamente inteligentes. ei 22 anos nos bancos escolares, e a escola nunca tratou dos temas limites da vida, nunca falou de experincias pelas quais amos, se no por todas, pelo menos pela maioria, nunca falou de doena, nunca falou de fracasso, nunca falou de ruptura de laos afetivos, nunca falou de dor, nunca falou de morte, nunca falou de sexualidade e, se falou de religio, no falou de espiritualidade. Ou seja, temos uma escola tipicamente cartesiana, barroca. como aqueles anjos das igrejas de Minas Gerais e da Bahia, que s tm cabea, o resto uma massa disforme. Nossa escola cartesiana acha que devemos saber como so os conceitos da fsica, mas samos da escola sem saber consertar automvel, televiso, geladeira, pregar um boto na camisa, cozinhar um ovo, fazer caf. No somos preparados para prestar primeiros socorros, para fazer coisas absolutamente triviais do nosso cotidiano, porque a escola separa a cabea das mos, no nos abarca na totalidade, na formao do ser como tal para a vida. Ela d instrumentos de compreenso e modificao da natureza, que constituem a cultura, mas no propriamente de uma interao com a natureza.

Por fim, o Estado. O Estado hoje, devido globalizao e ao papel que os grandes conglomerados empresariais desempenham no mundo, parceiro de um projeto de desenvolvimento, mas no mais o fator determinante desse projeto. A transnacionalizao da economia rompe com as fronteiras nacionais, questiona o conceito de soberania e traz um momento de crise. Isso porque a globalizao inevitvel, os meios de comunicao transformaram o mundo numa pequena aldeia. Minha av, em So Joo del Rei, via pela janela de sua casa o mundo se transformar a cada dez ou 15 anos. Hoje, a janela pela qual vemos as mudanas do mundo a telinha da televiso. Se para a minha av as mudanas levavam dez anos, para ns elas acontecem em dez segundos. Essa acelerao das mutaes mexe profundamente com nossos valores tradicionais e tem reflexos srios do ponto de vista dos paradigmas da modernidade.

Quais so os setores mais atingidos por essa crise? Na modernidade, falava-se em desenvolvimento. Encclicas papais e polticos falavam disso. O conceito de desenvolvimento tem uma dimenso tica. Hoje a palavra modernizao, cujo conceito tem uma dimenso mais tecnolgica, no qual nem sempre se inclui o bem-estar de todos, como no conceito de desenvolvimento. Alis, j no existem projetos de pases ricos para o desenvolvimento de reas pobres do mundo. Falvamos em produo. Hoje falamos em especulao. O mundo virou um cassino global (est a a crise das Bolsas), em que dinheiro rende dinheiro. H mais dinheiro virtual do que real. Falvamos em trabalho; o trabalho era, na modernidade, o fator de identificao do ser humano. Hoje, fala-se de mercado, quem est e quem no est no mercado. A Bblia, lida por certa tica, diz que o trabalho um castigo: "Comers o po com o suor do teu rosto". Viviane Forrester, em Horror econmico, lembra que, hoje, o trabalho uma bno: "Feliz de quem tem um trabalho".

Minha gerao deve ter sido a ltima que teve o luxo de ter vocao. A gente chegava aos 15 anos perguntando: "Qual ser a minha vocao?" muito difcil achar um jovem, hoje, que esteja terminando o curso colegial e fale em vocao, tenha idia de qual a sua vocao. Trabalho na Pastoral Operria. H dez anos, via muitos operrios dizerem: "Eu tenho profisso". No meio operrio h uma diferena entre aquele que tem profisso e o que no tem. Hoje, profisso tambm est ficando um luxo. A questo a seguinte: como fao para ter um emprego? Antnio Ermrio de Moraes, certo dia, disse na televiso: a empresa dele tinha, h dez anos, 62 mil funcionrios, hoje tem 40 mil. Quando cheguei a So Bernardo do Campo (SP), em 1980, a Volkswagen tinha 45 mil funcionrios e fabricava 750 veculos por dia. Hoje produz 1,25 mil diariamente, com 25 mil funcionrios. A Benetton inaugurou em Milo, na Itlia, uma mquina de confeco automatizada e, no dia seguinte, despediu 3 mil funcionrios. Estamos vivendo um processo angustiante de avano tecnolgico sem uma reflexo, no digo nem poltica, porque a questo muito mais ampla, uma reflexo sobre a questo do trabalho, do emprego, das condies sociais geradas pela globalizao. Eu faria at um paralelo: como querer ganhar a guerra. Voc pode ganhar a guerra com a bomba atmica, como afinal se ganhou a Segunda Guerra em Hiroshima e Nagasaki. O custo humano, porm, muito grande. Ser que ele no pode ser evitado? Ser que no podemos ganhar a guerra do desenvolvimento tecnolgico e cientfico com menos custo para as pessoas?

Educao televisiva

Falvamos em bem comum. Essa expresso est sumindo at dos documentos da Igreja. Hoje, falamos em tecnologia de ponta. Falvamos em nao, hoje falamos em globalizao. Falvamos em cultura. Hoje, de tal maneira os veculos de cultura esto atrelados publicidade que estamos tendo menos cultura e mais entretenimento. A sensao que tenho, depois de ar uma semana vendo a televiso brasileira, de ter ficado mais pobre espiritualmente, sobretudo no domingo, que o dia nacional da imbecilizao geral. Na segunda-feira, a gente tem ressaca moral, precisa de um tempo para se refazer, depois de ver o ser humano sendo to degradado, ridicularizado e ainda com um toque de humor.

Vivemos uma esquizofrenia social. De um lado, queremos defender os nossos valores religiosos, morais etc., e, de outro, temos, dentro de casa, uma pessoa da famlia, eletrnica a telinha , que no foi convidada, no pede licena, no dialoga e nos impe valores que nem sempre conferem com os nossos. a histria da minha cunhada, que me disse: "Betto, fui aluna de colgio de freira, por isso paguei muitos anos de anlise para me livrar da idia de que tudo pecado. Espero que meus filhos, quando adultos, escolham se querem ou no ter uma religio, mas no pretendo ensinar-lhes nenhuma religio". Eu lhe disse: "Voc, como me, tem todo o direito de fazer essa opo. Mas, como pessoa, no tem o direito de ser ingnua. Ou voc educa ou a Xuxa educa. No pense que existe neutralidade. Se voc no educar, a televiso vai ensinar a seus filhos o que bem, o que mal, o que certo, o que errado, o que justo, o que injusto". uma questo de opo.

Falvamos em valores, hoje falamos de sucesso. E introduzimos cada vez mais na linguagem e na prtica a idia da competitividade. s vezes, fao treinamento de recursos humanos em empresas, e os treinamentos so interessantes porque no se trata de fazer palestras, trata-se de captar o pano de fundo da cultura da empresa. Um dos detalhes mais interessantes o seguinte: os funcionrios de uma mesma empresa praticam entre si a competitividade. A idia da competio com outras empresas internalizada de tal maneira, que a coisa emperra porque a competitividade est l dentro, onde deveria haver cooperao. A competitividade vai entrando de tal forma que as pessoas j no sabem estabelecer um nvel mnimo de cooperao.

Falvamos de realidade, hoje falamos de virtualidade. A realidade virtual positiva, do ponto de vista da interao no planeta, que se transforma numa pequena aldeia, mas perigosa do ponto de vista da abstrao dos valores. Em outras palavras, do meu quarto no convento no bairro das Perdizes, em So Paulo, posso ter um amigo ntimo em Tquio, mas no quero nem saber o nome do vizinho de porta. Ento sou um amigo virtual. H at o sexo virtual, por computador, que est trazendo um problema para a teologia moral: o adultrio virtual. Sofremos o risco de entrar numa concepo de virtualidade que nos leva a falar em cidadania e continuar jogando lata de refrigerante e cerveja pela janela do carro, invadindo a faixa de pedestre etc. Vamos criando toda uma linguagem que virtual e no tem incidncia no real. Na vida real, ficamos cada vez mais agressivos, mais violentos, mais competitivos.

Falvamos em histria. Esse outro fator da crise da modernidade: estamos perdendo a idia do tempo como histria. Da a dificuldade das novas geraes de construir um projeto. Nossa gerao foi educada pela literatura e no pela televiso. Somos a ltima gerao literria da humanidade. O que isso muda? Quem foi educado pela literatura percebe o tempo como ado, presente e futuro, como projeto. A televiso rompe a historicidade do tempo e introduz a circularidade. Ao mesmo tempo que vejo na metade da tela Ayrton Senna vivo, na outra metade vejo-o morto. Ento, na cabea das novas geraes no h histria. Da a dificuldade de seu filho ou de seu neto fazerem projeto. A gerao deles tudo "aqui e agora". Por que hoje no se fala em QI, mas em inteligncia emocional? Porque muitas empresas constatam que seus executivos, do ponto de vista do QI, so geniais, mas so garotes, emocionalmente infantilizados, e isso afeta profundamente sua relao com as pessoas, na medida em que hoje h um processo de perenizao da juventude, o que saudvel de um lado e perigoso de outro.

As pessoas malham muito o corpo, mas esquecem de malhar o esprito. No tenho nada contra o fato de malhar o corpo. Minha preocupao a seguinte: como que se malha o esprito? A cidade de Ribeiro Preto (SP), em 1960, tinha seis livrarias e duas academias de ginstica; hoje tem 60 academias de ginstica e seis livrarias. Como se resolve isso?

Por fim, estamos perdendo, na crise da modernidade, a idia da contextualidade das coisas, ou seja, que tudo est relacionado com tudo que o novo paradigma holstico. No h eu de um lado e a natureza de outro. Todos somos frutos da evoluo do universo. Cada um de ns tem 15 bilhes de anos. Foram precisos 15 bilhes de anos de evoluo para que o universo um dia se singularizasse na sua pessoa. Enquanto no existamos, enquanto no existia o ser humano (a menos que haja vida inteligente em outro planeta. At acredito que sim, mas tendo captado nossas transmisses de TV eles chegaram concluso de que na Terra no h vida inteligente, e, ento, no convm se aproximar, no vale a pena o esforo), o universo era cego, no sabia que era belo. Ento o universo criou a ns, que somos seus olhos e sua mente. Atravs de ns o universo sabe que belo e, por isso, o chamamos de cosmo, que tem a mesma raiz grega da palavra "cosmtico", aquilo que traz beleza.

Um sentido para a vida

Esse paradigma holstico que a ps-modernidade procura reatar os gregos de certa maneira tinham isso vai nos dando a dimenso de que, na natureza, h mais cooperao do que segregao, do que seleo, como o neodarwinismo tanto defende. E na sociedade tambm esse processo de cooperao deve prevalecer sobre a competio.

A holstica, hoje, nasce da emergncia do fenmeno ecolgico, mas se estende para o campo social e filosfico. Dentro disso, h uma percepo das pessoas a respeito dos limites da razo e h um certo cansao do racionalismo. Isso leva a um fenmeno novo, que a emergncia da espiritualidade. Hoje, em qualquer livraria de qualquer pas, a literatura religiosa, esotrica e espiritualista tem uma grande aceitao. Isso significa que as pessoas esto ficando mais religiosas? No necessariamente. que as pessoas esto ficando saturadas de tanto racionalismo. Elas esto buscando algo que o consumismo no oferece, um sentido para a vida. Ou seja, no posso encontrar o sentido para minha vida no automvel novo que comprei ou na lata de cerveja que bebo. E a modernidade, com o excessivo racionalismo e o processo de secularizao, foi clandestinizando a questo do sentido: por que vivo, qual a razo desta minha nica experincia de ser no mundo, neste breve espao dos meus anos de vida? A sede de sentido que explica a busca desenfreada de religiosidade. Somos o nico ser aberto transcendncia, o nico ser que tem fome de Deus. Um cavalo est na sua plenitude eqina; uma samambaia, no canto da sala, deve nos olhar com muita pena, dizendo: "Coitados, ainda tm que trabalhar, viver emoes atribuladas. Eu estou aqui na minha plenitude vegetal, preciso apenas de um pouco de gua e sol".

a que entra o desafio que se apresenta para ns hoje: como resgatar a espiritualidade? Quando falo em espiritualidade, falo em algo que vai alm das religies institucionais. Estou falando em como resgatar a subjetividade humana, como resgatar os valores da subjetividade, como voltar a uma cultura onde o trabalho, o pragmatismo ceda lugar contemplao, reflexo, sabedoria, ao aprofundamento dos valores. Como restabelecer vnculos humanos que esto se perdendo com a acelerao da tecnologia? s vezes brinco dizendo que sonho escrever uma pea de teatro sobre uma famlia que vive numa casa no campo, onde o o cidade mais prxima no fcil. De repente, a luz acaba nessa casa e, por uma semana, ningum pode ver televiso. O que aconteceria nessa famlia obrigada pela circunstncia a dialogar entre si? capaz de o pai falar para a filha: "Mas, moa, como que voc se chama mesmo?" Enfim, isso para mostrar que h uma sede de recuperao desses valores. Se no abrirmos esses espaos, corremos o risco de t-los como ncleos fundamentalistas de retrocesso. Quando as coisas no encontram espao na cidade, na polis, elas surgem, como contestao, de uma maneira fundamentalista, sectria, perigosa.

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