2k3q71

Ruanda e direitos humanos
por Flvia Piovesan
Em 24 de abril, foi decretado
feriado em Ruanda. Milhares de pessoas lotaram estdios em cinco
cidades. O motivo era a execuo pblica de 22 pessoas
condenadas pela participao no genocdio de 1994. A multido
vaiou, gritou e, ao final, aplaudiu o espetculo do fuzilamento
dos condenados.
O genocdio em Ruanda resultou
na morte de cerca de 1 milho de tutsis e hutus, cruelmente
assassinados em decorrncia do agravamento de um conflito de dcadas.
No bastando tal violncia,
pelas estimativas da ONU, pelo menos 250 mil mulheres foram
estupradas em Ruanda. Em consequncia, calcula-se que cerca de
5.000 crianas tenham nascido. Elas foram estupradas
individualmente ou em grupo e violadas com objetos como pedaos
de pau afiados e canos de armas, sendo sexualmente escravizadas e
mutiladas.
Nesse cenrio, exige-se justia,
mediante a rigorosa condenao dos autores dessas atrocidades.
preciso acabar com a impunidade que se funda no paradoxo de que
quem mata uma pessoa tem maior chance de ser julgado do que quem
mata 100 mil pessoas. Todavia, a resposta barbrie no pode
ser a prpria barbrie. necessrio, com serenidade e
razoabilidade, realizar o balano entre a justia da punio e
a punio justa. De um lado a punio significa, para as vtimas
de to graves violaes, a justia. Por outro lado, a punio
h de ser justa, ou seja, disciplinada por princpios
internacionalmente aceitos.
Episdios como o de Ruanda
acenam para a urgncia da criao de um tribunal criminal
internacional permanente. Esse ser o tema da conferncia
internacional organizada pela ONU em junho.
Desde 1948, com a adoo da
Conveno para a Preveno e a Represso do Crime de Genocdio,
afirmou-se que o genocdio crime contra o direito
internacional, devendo ser julgado pelos tribunais nacionais
competentes ou por uma corte penal internacional, que at hoje
nunca existiu.
fundamental a criao de
uma jurisdio internacional para crimes de guerra, genocdio e
crimes contra a humanidade, luz das experincias dos tribunais
ad hoc da Bsnia e de Ruanda.
Espera-se que o estatuto desse
tribunal amplie o conceito tradicional de crimes contra a
humanidade, introduzindo o estupro e outras violncias sexuais
perpetradas durante a guerra como forma de tortura. Espera-se,
ainda, que ele consolide internacionalmente as garantias
processuais que asseguram um julgamento justo, com a observncia
dos princpios do contraditrio, da ampla defesa e do devido
processo legal, bem como que defina as penas a ser atribudas,
com nfase absoluta proibio da pena de morte.
Os dramticos fatos de Ruanda
lanam o desafio da urgente criao de uma corte criminal
internacional permanente, que responda barbrie com lucidez,
inspirada pela civilidade serena da observncia dos direitos
humanos.
Flvia Piovesan
29, procuradora do Estado e doutora em direito constitucional,
coordenadora do grupo de trabalho de direitos humanos da
Procuradoria Geral do Estado (SP), professora de direito
constitucional e direitos humanos da PUC-SP e membro da Comisso
de Justia e Paz.
(Folha de So Paulo - 02/05/98)