3d2c8
O
Direitos Internacional dos Direitos Humanos e a Redefinio
da Cidadania no Brasil(1)
Flvia
Piovesan(2)
A proposta
deste estudo tecer uma reflexo sobre o Direito
Internacional dos Direitos Humanos e a redefinio da
cidadania no Brasil. Isto , importa examinar a dinmica da
relao entre o processo de internacionalizao dos
direitos humanos e seu impacto e repercusso no processo de
redefinio e reconstruo da cidadania no mbito
brasileiro.
O Direito
Internacional dos Direitos Humanos, como se sabe, constitui um
movimento extremamente recente na histria, surgindo, a
partir do Ps-Guerra, como resposta s atrocidades cometidas
durante o nazismo. neste cenrio que se desenha o esforo
de reconstruo dos direitos humanos, como paradigma e
referencial tico a orientar a ordem internacional contempornea.
Nesse sentido,
uma das principais preocupaes desse movimento foi
converter os direitos humanos em tema de legtimo interesse
da comunidade internacional(3), o que implicou nos processos
de universalizao e internacionalizao desses mesmos
direitos. Esses processos permitiram, por sua vez, a formao
de um sistema normativo internacional de proteo de
direitos humanos(4), de mbito global e regional, como tambm
de mbito geral e especfico. Adotando o valor da primazia
da pessoa humana, esses sistemas se complementam, interagindo
com o sistema nacional de proteo, a fim de proporcionar a
maior efetividade possvel na tutela e promoo de direitos
fundamentais. A sistemtica internacional, como garantia
adicional de proteo, institui mecanismos de responsabilizao
e controle internacional, acionveis quando o Estado se
mostra falho ou omisso na tarefa de implementar direitos e
liberdades fundamentais.
Ao acolher o
aparato internacional de proteo, bem como as obrigaes
internacionais dele decorrentes, o Estado a a aceitar o
monitoramento internacional, no que se refere ao modo pelo
qual os direitos fundamentais so respeitados em seu territrio(5).
O Estado a, assim, a consentir no controle e na fiscalizao
da comunidade internacional quando, em casos de violao a
direitos fundamentais, a resposta das instituies nacionais
se mostra insuficiente e falha, ou, por vezes, inexistente.
Enfatize-se, contudo, que a ao internacional sempre uma
ao suplementar, constituindo uma garantia adicional de
proteo dos direitos humanos.
Essas
transformaes decorrentes do movimento de internacio-nalizao
dos direitos humanos contribuiram ainda para o processo de
de-mocratizao do prprio cenrio internacional, j que,
alm do Estado, novos sujeitos de direito am a participar
da arena internacional, como os indivduos(6) e as organizaes
no-governamentais. Os indivduos convertem-se em sujeitos
de direito internacional tradicionalmente, uma arena em
que s os Estados podiam participar. Com efeito, na medida em
que guardam relao direta com os instrumentos
internacionais de direitos humanos, os indivduos am a
ser concebidos como sujeitos de direito internacional. Na
condio de sujeitos de direito internacional, cabe aos
indivduos o acionamento direto de mecanismos internacionais,
como o caso da petio ou comunicao individual,
mediante a qual um indivduo, grupos de indivduos ou, por
vezes, entidades no-governamentais, podem submeter aos rgos
internacionais competentes denncia de violao de direito
enunciado em tratados internacionais. correto afirmar, no
entanto, que ainda se faz necessrio democratizar
determinados instrumentos e instituies internacionais(7),
de modo a que possam prover um espao participativo mais
eficaz, que permita maior atuao de indivduos e de
entidades no-governamentais(8), mediante legitimao
ampliada nos procedimentos e instncias internacionais.
No caso
brasileiro, o processo de incorporao do Direito
Internacional dos Direitos Humanos e de seus importantes
instrumentos conseqncia do processo de democratizao.
O marco inicial do processo de incorporao de tratados
internacionais de direitos humanos pelo Direito brasileiro foi
a ratificao, em 1 de fevereiro de 1984, da Conveno
sobre a Eliminao de todas as formas de Discriminao
contra a Mulher. A partir dessa ratificao, inmeros
outros relevantes instrumentos internacionais de proteo
dos direitos humanos foram tambm incorporados pelo Direito
Brasileiro, sob a gide da Constituio Federal de 1988.
Assim, a partir da Carta de 1988, importantes tratados
internacionais de direitos humanos foram ratificados pelo
Brasil, dentre eles: a) a Conveno Interamericana para
Prevenir e Punir a Tortura, em 20 de julho de 1989; b) a
Conveno contra a Tortura e outros Tratamentos Cruis,
Desumanos ou Degradantes, em 28 de setembro de 1989; c) a
Conveno sobre os Direitos da Criana, em 24 de setembro
de 1990; d) o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Polticos,
em 24 de janeiro de 1992; e) o Pacto Internacional dos
Direitos Econmicos, Sociais e Culturais, em 24 de janeiro de
1992; f) a Conveno Americana de Direitos Humanos, em 25 de
setembro de 1992; g) a Conveno Interamericana para
Prevenir, Punir e Erradicar a Violncia contra a Mulher, em
27 de novembro de 1995.
O processo de
democratizao possibilitou, assim, a reinsero do Brasil
na arena internacional de proteo dos direitos humanos
embora relevantes medidas ainda necessitem ser adotadas pelo
Estado brasileiro para o completo alinhamento do pas
causa da plena vigncia dos direitos humanos. Com efeito,
para que o Brasil se alinhe efetivamente sistemtica
internacional de proteo dos direitos humanos,
relativamente aos tratados ratificados, emergencial uma
mudana radical de atitude poltica, de modo a que o Estado
Brasileiro no mais se recuse a aceitar procedimentos que
permitam acionar de forma direta e eficaz a international
ability, como a sistemtica de peties
individuais e comunicaes interestatais, acrescida da
competncia jurisdicional da Corte Interamericana. Superar
essa postura de recuo e retrocesso que remonta ao perodo
de autoritarismo fundamental plena e integral proteo
dos direitos humanos no mbito nacional. Neste sentido,
prioritria ao Estado Brasileiro a reviso de declaraes
restritivas elaboradas, por exemplo, quando da ratificao
da Conveno Americana. tambm prioritria a reavaliao
da posio do Estado Brasileiro quanto a clusulas e
procedimentos facultativos destacando-se a premncia do
Brasil reconhecer a competncia jurisdicional da Corte
Interamericana de Direitos Humanos, bem como a urgncia em
aceitar os mecanismos de petio individual e comunicao
interestatal previstos nos tratados j ratificados. Deve
ainda o Estado brasileiro adotar medidas que assegurem eficcia
aos direitos constantes nos instrumentos internacionais de
proteo, como, por exemplo, no caso da Conveno contra a
Tortura. A essas providncias adicione-se a urgncia do
Brasil incorporar relevantes tratados internacionais ainda
pendentes de ratificao, como o Protocolo Facultativo ao
Pacto Internacional dos Direitos Civis e Polticos.
Inobstante
todas essas aes sejam essenciais para o completo
alinhamento do pas causa dos direitos humanos, h que se
reiterar que na experincia brasileira faz-se clara a relao
entre o processo de democratizao e a reinsero do
Estado Brasileiro no cenrio internacional de proteo dos
direitos humanos. Nesse sentido, percebe-se a dinmica e a
dialtica da relao entre Democracia e Direitos
Humanos(9), tendo em vista que, se o processo de democratizao
permitiu a ratificao de relevantes tratados internacionais
de direitos humanos, por sua vez essa ratificao permitiu o
fortalecimento do processo democrtico, atravs da ampliao
e do reforo do universo de direitos fundamentais por ele
assegurado. Se a busca democrtica no se atm apenas ao
modo pelo qual o poder poltico exercido, mas envolve tambm
a forma pela qual direitos fundamentais so
implementados(10), e manifesta a contribuio da sistemtica
internacional de proteo dos direitos humanos para o
aperfeioamento do sistema de tutela desses direitos no
Brasil. Nesse prisma, o aparato internacional permite
intensificar as respostas jurdicas ante casos de violao
de direitos humanos e, consequentemente, ao reforar a sistemtica
de proteo de direitos, o aparato internacional permite o
aperfeioamento do prprio regime democrtico. Atente-se,
assim, para o modo pelo qual os direitos humanos
internacionais inovam a ordem jurdica brasileira,
complementando e integrando o elenco de direitos nacionalmente
consagrados e nele introduzindo novos direitos, at ento no
previstos pelo ordenamento jurdico interno.
Enfatize-se que
a Constituio brasileira de 1988, como marco jurdico da
institucionalizao dos direitos humanos e da transio
democrtica no pas, ineditamente, consagra o primado do
respeito aos direitos humanos como paradigma propugnado para a
ordem internacional. Esse princpio invoca a abertura da
ordem jurdica brasileira ao sistema internacional de proteo
dos direitos humanos e, ao mesmo tempo, exige uma nova
interpretao de princpios tradicionais como a soberania
nacional e a no-interveno, impondo a flexibilizao e
relativizao desses valores. Se para o Estado brasileiro a
prevalncia dos direitos humanos princpio a reger o
Brasil no cenrio internacional, est-se consequentemente
itindo a concepo de que os direitos humanos constituem
tema de legtima preocupao e interesse da comunidade
internacional. Os direitos humanos, para a Carta de 1988,
surgem como tema global.
O texto democrtico
ainda rompe com as Constituies anteriores ao estabelecer
um regime jurdico diferenciado aplicvel aos tratados
internacionais de proteo dos direitos humanos. luz
desse regime, os tratados de direitos humanos so
incorporados automaticamente pelo Direito brasileiro e am
a apresentar status de norma constitucional,
diversamente dos tratados tradicionais, os quais se sujeitam
sistemtica da incorporao legislativa e detm status
hierrquico infra-constitucional. A Carta de 1988 acolhe,
desse modo, um sistema misto, que combina regimes jurdicos
diferenciados um aplicvel aos tratados internacionais de
proteo dos direitos humanos e o outro aplicvel aos
tratados tradicionais. Esse sistema misto se fundamenta na
natureza especial dos tratados internacionais de direitos
humanos que distintamente dos tratados tradicionais que
objetivam assegurar uma relao de equilbrio e
reciprocidade entre Estados pactuantes priorizam a busca
em assegurar a proteo da pessoa humana, at mesmo contra
o prprio Estado pactuante.
Insista-se, a
Constituio de 1988, por fora do artigo 5, pargrafos
1 e 2, atribuiu aos direitos humanos internacionais
natureza de norma constitucional, incluindo-os no elenco dos
direitos constitucionalmente garantidos, que apresentam
aplicabilidade imediata. Essa concluso advm de interpretao
sistemtica e teleolgica do texto constitucional de 1988,
especialmente em face da fora expansiva dos valores da
dignidade humana e dos direitos fundamentais, como parmetros
axiolgicos a orientar a compreenso do fenmeno
constitucional. Com a Carta democrtica de 1988, a dignidade
da pessoa humana, bem como os direitos e garantias
fundamentais vm a constituir os princpios constitucionais
que incorporam as exigncias de justia e dos valores ticos,
conferindo e axiolgico a todo sistema jurdico
brasileiro. A esse raciocnio se conjuga o princpio da mxima
efetividade das normas constitucionais, particularmente das
normas concernentes a direitos e garantias fundamentais, que ho
de alcanar a maior carga de efetividade possvel este
princpio vem a consolidar o alcance interpretativo que se
prope relativamente aos pargrafos do artigo 5 do texto.
A favor da
natureza constitucional dos direitos enunciados nos tratados
internacionais, adicione-se tambm o fato do processo de
globalizao ter implicado na abertura da Constituio
normao internacional. Tal abertura resultou na ampliao
do bloco de constitucionalidade, que ou a incorporar
preceitos enunciadores de direitos fundamentais que, embora
decorrentes de fonte internacional, veiculam matria e contedo
de inegvel natureza constitucional. itir o contrrio
traduziria o equvoco de consentir na existncia de duas
categorias diversas de direitos fundamentais uma de status
hierrquico constitucional e outra de status ordinrio.
H que ser tambm afastada a frgil argumentao de que
os direitos internacionais integrariam o universo impreciso e
indefinido dos direitos implcitos, decorrentes do regime ou
dos princpios adotados pela Constituio. Ainda que no
explcitos no texto constitucional, os direitos
internacionais so direitos "explicitveis",
bastando para tanto a meno aos dispositivos dos tratados
internacionais de proteo dos direitos humanos, que
demarcam um catlogo claro, preciso e definido de direitos.
Em suma, todos esses argumentos se renem no sentido de
endossar o regime constitucional privilegiado conferido aos
tratados de proteo de direitos humanos regime esse
semelhante ao que conferido aos demais direitos e garantias
constitucionais.
Quanto ao
impacto jurdico do Direito Internacional dos Direitos
Humanos no Direito brasileiro e por fora do princpio da
norma mais favorvel vtima que assegura a prevalncia
da norma que melhor e mais eficazmente projeta os direitos
humanos os direitos internacionais apenas vm a aprimorar
e fortalecer, jamais a restringir ou debilitar, o grau de
proteo dos direitos consagrados no plano normativo
constitucional. A sistemtica internacional de proteo vem
ainda a permitir a tutela, a superviso e o monitoramento de
direitos por organismos internacionais(11).
Embora incipiente no Brasil,
verifica-se que a advocacia do Direito Internacional dos
Direitos Humanos tem sido capaz de propor relevantes aes
internacionais(12), invocando a ateno da comunidade
internacional para a fiscalizao e controle de srios
casos de violao de direitos humanos. No momento em que
tais violaes so submetidas arena internacional, elas
se tornam mais visveis, salientes e pblicas(13). Diante da
publicidade de casos de violaes de direitos humanos e de
presses internacionais, o Estado se v
"compelido" a prover justificaes, o que tende a
implicar em alteraes na prpria prtica do Estado
relativamente aos direitos humanos, permitindo, por vezes, um
sensvel avano na forma pela qual esses direitos so
nacionalmente respeitados e implementados(14). A ao
internacional constitui, portanto, um importante fator para o
fortalecimento da sistemtica de implementao dos direitos
humanos(15).
Seja em face da
sistemtica de monitoramento internacional que proporciona,
seja em face do extenso universo de direitos que assegura, o
Direito Internacional dos Direitos Humanos vem a instaurar o
processo de redefinio do prprio conceito de cidadania,
no mbito brasileiro. O conceito de cidadania se v, assim,
alargado e ampliado, na medida em que a a incluir no
apenas direitos previstos no plano nacional, mas tambm
direitos internacionalmente enunciados. A sistemtica
internacional de ability
vem ainda a integrar esse conceito renovado de cidadania,
tendo em vista que, ao lado das garantias nacionais, so
adicionadas garantias de natureza internacional.
Consequentemente, o desconhecimento dos direitos e garantias
internacionais importa no desconhecimento de parte substancial
dos direitos da cidadania, por significar a privao do
exerccio de direitos acionveis e defensveis na arena
internacional.
Hoje pode-se afirmar que a
realizao plena e no apenas parcial dos direitos da
cidadania envolve o exerccio efetivo e amplo dos direitos
humanos, nacional e internacionalmente assegurados.
________
(1)Este
artigo foi baseado na tese de doutorado "A Constituio
Brasileira de 1988 e a Proteo Internacional dos Direitos
Humanos", defendida em 1996, na PUC/SP.
(2)Procuradora
do Estado de So Paulo e Coordenadora do Grupo de Trabalho de
Direitos Humanos da Procuradoria Geral do Estado. Professora
Doutora da PUC/SP nas disciplinas de Direito Constitucional e
Direitos Humanos. Em 1995 foi visiting fellow do Human
Rights Program de Harvard Law School. integrante do Cladem
(Comit Latino Americano e do Caribe para a Defesa dos
Direitos das Mulheres) e Conselheira do Conselho Estadual da
Condio Feminina.
(3)Como
afirma Kathryn Sikkink: "O Direito Internacional dos
Direitos Humanos pressupe como legtima e necessria a
preocupao de atores estatais e no-estatais a respeito do
modo pelo qual os habitantes de outros Estados so tratados.
A rede de proteo dos direitos humanos internacionais busca
redefinir o que matria de exclusiva jurisdio domstica
dos Estados." (Human rights, principled issue-networks,
and
sovereignty in
Latin America. In: International Organizations,
Massachusetts, IO Foundation e Massachusetts Institute of
Technology, 1993. p. 413). Acrescenta a mesma autora: "Os
direitos individuais bsicos no so do domnio exclusivo
do Estado, mas constituem uma legtima preocupao da
comunidade internacional." (op. cit., p. 441).
(4)Na lio
de Andr Gonalves Pereira e Fausto de Quadros: "Em
termos de Cincia Poltica, tratou-se apenas de transpor e
adaptar ao Direito Internacional a evoluo que no Direito
Interno j se dera, no incio do sculo, do Estado-Polcia
para o Estado-Providncia. Mas foi o suficiente para o
Direito Internacional abandonar a fase clssica, como o
Direito da Paz e da Guerra, para ar era nova ou moderna
da sua evoluo, como Direito Internacional da Cooperao
e da Solidariedade. As novas matrias que o Direito
Internacional tem vindo a absorver, nas condies referidas,
so de ndole variada: poltica, econmica, social,
cultural, cientfica, tcnica etc. Mas dentre elas o livro
mostrou que h que se destacar trs: a proteo e a
garantia dos Direitos do Homem, o desenvolvimento e a integrao
econmica e poltica". Manual de direito
internacional pblico. 3. ed. Coimbra: Livraria Almedina,
1993. p. 661). Na viso de Hector Fix-Zamudio: "(...)
el establecimiento de organismos internacionales de tutela de
los derechos humanos, y que el destacado tratadista italiano
Mauro Cappelleti ha calificado como jurisdiccin
constitucional trasnacional, en cuanto el control judicial de
la constitucionalidad de las disposiciones legislativas y de
los actos concretos de autoridad, ha rebasado al derecho
interno, particularmente en la esfera de los derechos humanos
y se ha proyectado en el mbito internacional y inclusive
comunitario." (Proteccion juridica de los derechos
humanos: Mxico. Comision Nacional de Derechos Humanos,
1991. p. 184).
(5)Nesse
sentido, observa Kathryn Sikkink: "A doutrina da proteo
internacional dos direitos humanos uma das crticas mais
poderosas soberania, ao modo pelo qual tradicionalmente
concebida, e a prtica do Direito Internacional dos Direitos
Humanos e da poltica internacional de direitos humanos
apresenta exemplos concretos de renovados entendimentos sobre
o escopo da soberania. (...) a poltica e a prtica de
direitos humanos tm contribudo para uma transformao
gradual, significativa e provavelmente irreversvel da
soberania, no mundo moderno." (op. cit., p. 411).
(6)Em
sentido contrrio, Jos Francisco Rezek afirma: "A
proposio, hoje frequente, do indivduo como sujeito de
direito das gentes pretende fundar-se na assertiva de que
certas normas internacionais criam direitos para as pessoas
comuns, ou lhes impem deveres. preciso lembrar, porm,
que os indivduos - diversamente dos Estados e das organizaes
- no se envolvem, a ttulo prprio, na produo do
acervo normativo internacional, nem guardam qualquer relao
direta e imediata com esse corpo de normas. Muitos so os
textos internacionais voltados proteo do indivduo.
Entretanto, a flora e a fauna tambm constituem objeto de
proteo por normas de direito das gentes, sem que se lhes
tenha pretendido, por isso, atribuir personalidade jurdica.
certo que indivduos e empresas j gozam de personalidade
em direito interno, e que essa virtude poderia repercutir no
plano internacional na medida em que o direito das gentes no
se teria limitado a proteg-los, mas teria chegado a
atribuir-lhes a titularidade de direitos e deveres - o que
impensvel no caso de coisas juridicamente protegidas, porm
despersonalizadas, como as florestas e os cabos
submarinos." (Direito internacional pblico. So
Paulo: Saraiva, 1989. p. 158-159). Para Celso Ribeiro Bastos e
Ives Gandra Martins: "A regra ainda continua sendo a de
negar ao indivduo a condio de sujeito internacional.
Faz-se necessria ainda a mediao do Estado para que o
pleito do indivduo possa ressoar internacionalmente. Ora,
bem de ver que como no mais das vezes o prprio Estado que
o agente perpetrador destas leses, as possveis queixas
da decorrentes no encontram um canal natural para
desaguar. Elas morrem no prprio Estado." (Comentrios
Constituio do Brasil. So Paulo: Saraiva, p. 453.
v.1). Este estudo defende, todavia, que o indivduo
efetivo sujeito de direito internacional. O ingresso do indivduo,
como novo ator no cenrio internacional, pode ser evidenciado
especialmente quando do encaminhamento de peties e
comunicaes s instncias internacionais.
(7)A propsito,
ilustrativa a Conveno Americana ao estabelecer, no
artigo 61, que apenas os Estados-partes e a Comisso
Interamericana tm direito de submeter um caso deciso da
Corte. Isto , a Conveno Americana, lamentavelmente, no
atribui ao indivduo ou a entidades no-governamentais
legitimidade para encaminhar um caso apreciao da Corte.
Outro exemplo a Corte Internacional de Justia que, nos
termos do artigo 34 de seu Estatuto, tem a competncia
restrita ao julgamento de demandas entre Estados, e, assim, no
reconhece a capacidade processual dos indivduos. Sobre as
razes histricas desse dispositivo, explica Celso
Albuquerque de Mello: "Quando foi elaborado o projeto de
estatuto da Corte Permanente de Justia Internacional,
antecessora da Corte Internacional de Justia, no Comit de
Juristas de Haia, Loder props que se reconhecesse o direito
do indivduo de comparecer como parte perante a Corte. Esta
proposta encontrou de imediato a oposio da grande maioria
de juristas que faziam parte do Comit, entre eles Ricci
Busatti. Os argumentos contrrios foram os seguintes: 1) o
domnio da Corte era o Direito Internacional Pblico e os
indivduos no eram sujeitos internacionais; 2) o recurso
justia internacional era inissvel, porque o indivduo
j tinha a proteo dos Tribunais nacionais e se no a
tivesse no poderia o Direito Internacional Pblico dar mais
do que era concedido pelo direito interno; 3) na vida
internacional o indivduo j possua a proteo diplomtica."
(Curso de direito internacional pblico. Rio de
Janeiro: Freitas Bastos, 1979. p. 582-583). Contudo, como j
ressaltado, a criao do Direito Internacional dos Direitos
Humanos fz com que os indivduos se tornassem verdadeiros
sujeitos internacionais, capazes de recorrer s instncias
internacionais, quando as instituies nacionais se mostram
falhas ou omissas. Essa concepo enseja mudanas no plano
internacional, que deve prover uma poltica participativa
mais eficaz, mediante a garantia de o de atores distintos
do Estado, como indivduos e organizaes no-governamentais,
no cenrio internacional. Nesse sentido, argumenta Richard B.
Bilder: "Primeiramente, importante ampliar a competncia
das Cortes Internacionais na tarefa de implementao dos
direitos humanos, na medida em que as Cortes simbolizam e
fortalecem a idia de que o sistema internacional de direitos
humanos , de fato, um sistema de direitos legais, que
envolve direitos e obrigaes juridicamente vinculantes. As
pessoas associam a idia de Estado de Direito com a existncia
de Cortes imparciais, capazes de proferir decises obrigatrias
e vinculantes (...) Em segundo lugar, a experincia
internacional j demonstra que as Cortes internacionais, se
oferecida a possibilidade, podem contribuir de modo
fundamental e crucial na implementao do sistema
internacional dos direitos humanos. (...) Em terceiro lugar,
as Cortes, como as imparciais do Estado de
Direito, tradicionalmente so concebidas como detentoras de
uma especial legitimidade, constituindo um dos instrumentos
mais poderosos no sentido de persuadir os Estados a cumprir
suas obrigaes de direitos humanos. (...) Considerando que
os indivduos e os grupos so aqueles diretamente afetados
pelas violaes de direitos humanos, e consequentemente
aqueles que mais diligente e efetivamente buscam o respeito de
direitos, devem ter eles direto o s Cortes. Alm
disso, como indicado, tanto por razes polticas como por
outras de natureza diversa, os Estados tm sido notoriamente
relutantes em submeter casos de direitos humanos perante as
Cortes. Consequentemente, muitos acreditam que o nico meio
de fazer com que o sistema internacional de direitos humanos
possa operar mediante a garantia, aos indivduos e aos
grupos, do o direto s Cortes. " (Possibilities for
development of new international judicial mechanisms. In:
HENKIN Louis, HARGROVE, John Lawrence, Editors. Human
rights: an agenda for the next century. Washington Studies
in Transnational Legal Policy, n. 26, p. 326-327 e p. 334,
1994).
(8)Sobre
a atuao das entidades no-governamentais, acentua David
Weissbrodt: "Atuando no plano internacional e/ou
nacional, estas organizaes funcionam como ombudsman no
oficial, resguardando os direitos humanos ante a infringncia
governamental, atravs de tcnicas, como iniciativas diplomticas,
relatrios, declaraes pblicas, esforos para
influenciar as deliberaes de direitos humanos efetuadas
por organizaes inter-governamentais, campanhas para
mobilizar a opinio pblica, e tentativas de afetar a poltica
internacional de alguns pases com respeito sua relao
com Estados que so regularmente responsveis pelas violaes
de direitos humanos. As ONGs compartilham dos mesmos propsitos
bsicos, no sentido de obter informaes que possam
efetivamente - seja de forma direta ou indireta - influenciar
a implementao dos direitos humanos pelos Governos." (WEISSBRODT
David, The contribution of international nongovernmental
organizations to the protection of Human Rights. In: MERON
Theodor, Editor. Human rights in international law:
legal and policy issues. Oxford: Claredon Press, 1984. p.
404).
(9) Para
Ian Martin: "O movimento de direitos humanos atua para
garantir a democracia. Os direitos humanos universais pressupem
a democracia." (The new world order: opportunity or
threat for human rights? A lecture by the Edward A. Smith
Visiting Fellow presented by the Harvard Law School Human
Rights
Program, 1993.
p. 21).
(10)Afirma
Roberto Mangabeira Unger: "Ns temos que entender a
democracia como muito mais do que pluralismo poltico e ability
eleitoral de um Governo por parte do respectivo eleitorado.
Concebido de forma mais ampla, o projeto democrtico tem sido
o esforo de efetuar o sucesso prtico e moral da sociedade,
mediante a reconciliao de duas famlias de bens
fundamentais: o bem do progresso material, liberando-nos da
monotonia e da incapacidade e dando braos e asas para nossos
desejos, e o bem da emancipao individual, liberando-nos da
opresso sistemtica da diviso e hierarquia social que nos
impede de lidar um com o outro como plenos indivduos."
(UNGER, Roberto Mangabeira. What should legal analysis
become? Cambridge: Harvard Law School, 1995. p. 9).
(11)Cf.
DONNELLY, Jack. Universal human rights in theory and
practice. Ithaca NY: Cornell University Press, 1989. p.
267. Como observa Paulo Srgio Pinheiro: "Por mais que o
recurso ao sistema de proteo internacional possa ser
limitado, os rgos internacionais de investigao de
direitos humanos, na medida em que se tornaram mais numerosos
e especializados, tm sempre o power to embarass os
governos que perpetram violaes. Nenhum governo se sente a
vontade para ver expostas violaes sistemticas de
direitos humanos por parte de agncias sob sua
responsabilidade ou sua omisso em promover obrigaes que
comprometeu a promover. A Comisso Teotnio Vilela e o Ncleo
de Estudos da Violncia (NEV) apesar de manterem um dilogo
construtivo com o Estado e agncias governamentais, julgam
que essencial fortalecer a ability perante a
comunidade internacional. Nesse sentido iniciou-se nos ltimos
anos diversas queixas Comisso Interamericana de Direitos
Humanos contra o governo do Brasil, com fundamento nas obrigaes
assumidas ao ratificar os tratados internacionais. O Ncleo
de Estudos da Violncia (NEV) integra e apia um escritrio
legal em Washington, o Centro pela Justia e o Direito
Internacional, CEJIL, dedicado exclusivamente a apresentao
de queixas contra os Estados latino-americanos."
(PINHEIRO, Paulo Srgio. Direitos humanos no ano que ou:
avanos e continuidades. In: Os direitos humanos no Brasil.
So Paulo: Universidade de So Paulo, Ncleo de Estudos da
Violncia e Comisso Teotnio Vilela, 1995. p. 15).
(12)Na
viso de Richard B. Lillich: "Usar as Cortes domsticas
para implementar o Direito Internacional dos Direitos Humanos,
tanto direta como indiretamente, uma nova e desafiadora rea
na advocacia dos direitos humanos. (...) A advocacia dos
direitos humanos tem alcanado progresso considervel, ao
longo dos vinte ltimos anos, ao submeter as normas do
Direito Internacional dos Direitos Humanos s Cortes
nacionais, e, com idias imaginativas, mediante pesquisa e
habilidosa advocacia - em outras palavras, com boa advocacia -
futuros avanos esperam ser alcanados." (The role of
domestic courts in enforcing international human rights law.
In: HANNUM Hurst, Editor. Guide to international human
rights practice. 2. ed. Philadelphia: University of
Pennsylvania Press, 1992. p. 241). Para Richard B. Bilder:
"O movimento dos direitos humanos internacionais
continuar a encontrar oposies, como tambm avanos, e
por isso, dedicao, persistncia e muito trabalho so
necessrios. Algumas das direes que este trabalho deve
incluir so: a) esforos crescentes para incorporar, de modo
mais efetivo, as normas internacionais de direitos humanos aos
sistemas legais nacionais, sensibilizando advogados, juzes e
outros agentes oficiais para a relevncia e utilidade do
Direito Internacional dos Direitos Humanos como instrumento de
reforo dos direitos humanos nas sociedades nacionais; b)
fortalecer as instituies internacionais existentes, tais
como as Comisses e Cortes de direitos humanos, desenvolvendo
e revisando seus procedimentos e utilizando-se destes de forma
plena." (BILDER, Richard B. An overview of international
human rights law. In: HANNUM, Hurst, Editor. Guide to
international human rights practice. 2. ed. Philadelphia:
University of Pennsylvania Press, 1992. p. 16).
(13)Para
Jack Donnelly: "A ao internacional tem auxiliado na
publicidade de diversas violaes de direitos humanos e, em
alguns casos, tem sido um importante e e estimulo para
as reformas internas e para a contestao ante regimes
repressivos. A ao poltica internacional pode contribuir
- e tem contribudo - de forma efetiva para a luta pelos
direitos humanos." (Universal human rights in theory
and practice. Ithaca: Cornell University Press, 1989. p.
4). Na mesma direo afirma David Weissbrodt: "(...)
uma vez que uma ONG denuncia um problema ateno
governamental, torna-se mais difcil ignorar as violaes
de direitos humanos. (...) Quando o Governo torna-se ciente do
problema e do possvel risco de constrangimento, oficiais
diplomticos devem tomar medidas para remediar a situao.
(...) A publicidade , claramente, um importante fator para a
implementao dos direitos humanos por parte das ONGs."
(WEISSBRODT, David. The contribution of international
nongovernmental organizations to the protection of human
rights. In: Meron, Theodor, Editor. Human rights in
international law: legal and policy issues. Oxford:
Claredon Press, 1984. p. 413 e 415). Sobre a matria e para
assegurar a efetividade dos instrumentos internacionais de
proteo dos direitos humanos, Anne F. Bayefsky prope
"desenvolver uma regra clara de cobertura da mdia em
relao ao cumprimento dos tratados; permitir a cobertura da
televiso; organizar conferncias da imprensa; efetuar
conferncias da imprensa e entrevistas na mdia com respeito
a cada Estado-parte; negar aos Estados, que se recusem a
itir a atuao da mdia, o ao regime dos
tratados." (Making the human rights treaties work. In:
HENKIN, Louis, HARGROVE, John Lawrence, Editors. Human
rights: an agenda for the next century. Washington Studies
in Transnational Legal Policy, n. 26, p. 265, 1994).
(14)Como
observa Theodor Meron: "O relatrio de 1980 (o relatrio
preparado anualmente pelo Departamento de Estado dos Estados
Unidos) indica que tem ocorrido uma queda contnua de violaes
integridade da pessoa humana em pases nos quais a prtica
de direitos humanos tem sido objeto de um intenso controle
internacional, enquanto que, em pases que no so objeto
de tal controle, a tortura e a punio cruel continuam a ser
praticadas." (Teaching human rights: an overview. In:
MERON, Theodor, Editor. Human rights international law:
legal and policy issues: Oxford. Claredon Press, 1984. p.
20). No dizer de Sandra Coliver: "Com um grande
envolvimento das ONGs - em suprir informaes aos membros do
Comit, compartilhar informaes com outras organizaes
nacionais e publicar as discusses do Comit - os tratados
internacionais podem se converter em poderosos mecanismos para
focar a ateno em violaes e promover melhorias
concretas na proteo dos direitos humanos." (COLIVER,
Sandra. International reporting procedures. In: HANNUM, Hurst,
Editor. Guide to international human rights practice.
2. ed. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1992.
p. 191). Sobre a matria, ver ainda Kathryn Sikkink (op.
cit., p. 414-415). Nesse estudo, Kathryn Sikkink tece uma anlise
comparada sobre o impacto das presses internacionais em prol
dos direitos humanos na Argentina e no Mxico, ao longo das dcadas
de 70 e 80, e conclui que as presses internacionais, nesses
casos, contriburam para alterar o comportamento destes
Estados, especialmente no que se refere poltica de
direitos humanos por eles adotada. Ver tambm THOMAZ, Dan, Social
movements and the strategic use of human rights norms: a
comparison of East European cases, 1995 (manuscrito ainda
no publicado), que analisa a contribuio das normas
internacionais de direitos humanos - particularmente o impacto
do Ato Final de Helsinki de 1975 - para a democratizao do
Leste Europeu, a partir do declnio e desaparecimento do
comunismo no Leste e na Unio Sovitica.
(15)Contudo, no caso
brasileiro, a importncia da ao internacional est
condicionada tarefa imprescindvel de divulgao, educao
e promoo do valor do Direito Internacional dos Direitos
Humanos - fator que contribuiria para maior conscincia dos
instrumentos internacionais, como garantias adicionais de
proteo.
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