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Vidas acima
dos lucros
Flvia Piovesan*
Em novembro, os EUA recorreram
OMC (Organizao Mundial do Comrcio) contra o Brasil, alegando
que a legislao brasileira de patentes afrontaria as regras
internacionais de comrcio relativas proteo da propriedade
intelectual.
Est em jogo a poltica
brasileira de enfrentamento da Aids, que, mediante a produo de
genricos, com a licena compulsria de fabricao de
produtos considerados necessrios por "urgncia
nacional", tem barateado o custo dos medicamentos.
A produo dos genricos, no
caso dos medicamentos da Aids, tem sido capaz de reduzir, no
Brasil, o custo anual da terapia por paciente para US$ 3.000 -
esse custo anual por paciente em pases desenvolvidos varia de
US$ 10 mil a US$ 15 mil.
Na frica do Sul, neste ms, teve
inicio o julgamento de uma ao proposta pela poderosa indstria
farmacutica contra o governo do pais. O que est em questo
a legislao de patentes, que autoriza o governo, em situaes
de emergncia, a importar ou produzir genricos.
Os laboratrios requerem Justia
local a proibio da importao de medicamentos genricos
anti-Aids do Brasil e da ndia, por afrontar os direitos de
propriedade intelectual.
Na frica do Sul, 1 em cada 5
adultos est infectado; so 4,2 milhes de pessoas portadoras
do vrus HIV e mais de 17 milhes de pessoas j morreram por
causa da Aids.
Em frente ao tribunal de Pretria
em que se realiza o julgamento do caso, milhares de manifestantes
clamavam "vidas acima dos lucros". lanado ao cenrio
mundial o conflito entre os interesses comerciais dos grandes
laboratrios e os direitos dos soropositivos, em luta pela
sobrevivncia nos pases em desenvolvimento.
Como sustenta a "The New York
Times Magazine", com a flexibilizao das leis das
patentes, a crise mundial da Aids poderia ser resolvida, o que
asseguraria o direito vida aos 32,5 milhes de pessoas com
Aids em pases em desenvolvimento.
Se o alto custo dos medicamentos
tem levado morte milhes de pessoas, esse custo, no entender
das indstrias farmacuticas, capaz de compensar o grande
investimento em pesquisa que propiciou a produo dos mesmos
medicamentos.
Com pases to diversos como
Uganda e Sucia, a poltica "one planet, one price"
insustentvel. Isso demanda que a recuperao dos elevados
investimentos no se d a um custo extraordinariamente maior
(com milhes de vidas humanas) nos pases pobres.
Nesses pases, h que prevalecer
a noo de "funo social da propriedade
intelectual" das patentes farmacuticas. Nesse sentido, so
alentadoras as recentes iniciativas de duas grandes empresas
farmacuticas (Merck e Bristol-Myers) referentes,
respectivamente, reduo acentuada dos preos de
medicamentos e poltica de no mais impedir a fabricao de
medicamentos genricos anti-HIV na frica.
Esse debate, que envolve a
tentativa das multinacionais de proteger seus direitos de patente
sobre medicamentos anti-Aids e a morte/vida de milhes de pessoas
em pases em desenvolvimento, assume maior proporo com a
recente publicao no Brasil do polmico livro "IBM e o
Holocausto", de Edwin Black.
O livro sustenta que o alcance do
genocdio perpetrado pela Alemanha nazista no teria sido o
mesmo se no fossem as maquinas Hollerith, da IBM, que produziam
os cartes perfurados - tecnologia que permitiu a identificao
dos judeus, os processos de registro, os programas de rastreamento
de ancestrais, a criao dos guetos e a organizao dos
trabalhos nos campos de concentrao.
Segundo o livro, o fornecimento
dessa tecnologia, bem como a responsabilidade da empresa pela
manuteno e pela atualizao dos equipamentos, propiciou as
dramticas propores genocidas do Terceiro Reich. Para o
autor, "o negcio da IBM nunca foi o nazismo nem o
anti-semitismo. Sempre foi o dinheiro".
Essa afirmao vem ao encontro da
afirmao feita na semana ada pelo presidente da Associao
das Industrias Farmacuticas da frica do Sul, ao comentar a ao
proposta contra a produo e a importao de genricos contra
a Aids: "O caso tem pouco a ver com a Aids. Isso uma luta
sobre a extenso de poder e sobre uma lei que ainda no sabemos
o que significa". Esse debate parece invocar o julgamento de
Adolf Eichmann, em Israel, to bem analisado por Hannah Arendt no
livro "Eichmann em Jerusalm", quando ela reflete sobre
a "banalidade do mal".
Ao longo de seu julgamento,
Eichmann, acusado de transportar milhes de judeus aos campos de
extermnio nazistas, mostrava absoluta frieza e ausncia de dio
ao traduzir o rigor burocrtico com que desempenhava as suas funes,
"cumprindo ordens". Distinguir o tico do atico, o
moral do imoral, o justo do injusto e o certo do errado.
A espcie humana a nica
dotada de razo, capaz de atribuir uma dimenso tica e moral
s condutas de pessoas, empresas, organizaes ou Estados. Na
era da globalizao econmica, em que as empresas
multinacionais destacam-se como as grandes beneficirias dos
mercados sem fronteiras, faz-se emergencial acentuar a
responsabilidade tico-social do setor privado.
Atualmente, das 100 maiores
economias mundiais, 51 so empresas multinacionais e 49 so
Estados nacionais. As cem maiores empresas multinacionais tem
faturamentos anuais que excedem o PIB de metade das naes do
mundo.
Em um cenrio em que, para
utilizar a expresso de Habermas, "so antes os Estados que
se acham incorporados aos mercados, e no os mercados s
fronteiras estatais", deve haver uma demanda pelo componente
tico e moral da atuao do setor privado.
* Flvia Piovesan
procuradora do Estado de SP, professora de direito da PUC-SP e
membro da Comisso Justia e Paz e do Cladem (Comit
Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da
Mulher).
Artigo publicado na "Folha de
SP".
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