635tk Democracia,
Direitos Humanos e globalizao
Flvia
Piovesan
Procuradora do Estado de So Paulo, Coordenadora do Grupo de
Trabalho de Direitos Humanos da Procuradoria (SP), professora
de Direito Constitucional da Pontifcia Universidade Catlica
de So Paulo e visiting fellow do Harvard Human Rigths
Program da Harvard Law School (EUA), 1995
A democracia invoca um
conceito aberto, dinmico e plural, em constante processo de
transformao. Na acepo formal, pode-se afirmar que a
democracia compreende o respeito legalidade, constituindo o
chamado governo das leis, marcado pela subordinao do poder
ao Direito. Esta concepo acentua a dimenso poltica do
conceito de democracia, na medida que enfatiza a legitimidade
e o exerccio do poder poltico, avaliando quem governa e
como se governa. Por outro lado, na acepo material,
pode-se sustentar que a democracia no se restringe ao
primado da legalidade, mas tambm pressupe o respeito aos
Direitos Humanos. Nesse sentido, no h democracia sem o
exerccio dos direitos e liberdades fundamentais. A
democracia exige, assim, a igualdade no exerccio de direitos
civis, polticos, sociais, econmicos e culturais.
Constata-se que, na experincia brasileira e no contexto
latino-americano em geral, a construo democrtica
envolveu, em um primeiro momento, a ruptura com regimes
militares ditatoriais, o que deflagrou o perodo de transio
democrtica, com o gradativo resgate da cidadania e das
instituies representativas. A transio democrtica,
por sua vez, fez surgir como maior desafio a efetiva consolidao
da democracia na regio, mediante o pleno exerccio de
direitos e liberdades fundamentais.
Contudo, o processo de consolidao democrtica, lento e
gradual, tem alcanado peculiar complexidade em face do
impacto da globalizao econmica, no que tange ao cenrio
latino-americano.
Com efeito, se ao longo das ltimas dcadas os grandes
desafios da Amrica Latina foram a abertura poltica, a
estabilizao econmica e a reforma social, hoje a agenda
dos pases latino-americanos ou a incluir como preocupao
central a insero na economia globalizada.
O processo de globalizao econmica, inspirado na agenda
do chamado Consenso de Washington, ou a ser
sinnimo das medidas econmicas neoliberais voltadas para a
reforma e a estabilizao das denominadas economias
emergentes. Tem por plataforma o neoliberalismo, a reduo
das despesas pblicas, a privatizao, a flexibilizao
das relaes de trabalho, a disciplina fiscal para a eliminao
do dficit pblico, a reforma tributria e a abertura do
mercado ao comrcio exterior.
Todavia, a globalizao econmica tem agravado ainda mais o
dualismo econmico e estrutural da realidade
latino-americana, com o aumento das desigualdades sociais e do
desemprego, aprofundando-se as marcas da pobreza absoluta e da
excluso social. Os mercados tm se mostrado, assim,
incompletos, falhos e imperfeitos. De acordo com o relatrio
sobre o Desenvolvimento Humano de 1999, elaborado pelo
Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento (PNUD),
15,8% da populao brasileira (26 milhes de pessoas) no
tm o s condies mnimas de educao, sade e
servios bsicos, 24% da populao no tm o a gua
potvel e 30% esto privados de esgoto. Esse relatrio, que
avalia o grau de desenvolvimento humano de 174 pases, situa
o Brasil na 79posio do ranking e atesta que o pas
continua o primeiro em concentrao de renda o PIB dos
20% mais ricos 32 vezes maior que o dos 20% mais pobres.
O relatrio do PNUD afirma que a integrao econmica
mundial tem contribudo para aumentar a desigualdade. A
diferena de renda entre os 20% mais ricos da populao
mundial e os 20% mais pobres, medida pela renda nacional mdia,
aumentou de 30 para 1 em 1960 para 74 em 1997. Adiciona o
relatrio que, em face da globalizao assimtrica, a
parcela de 20% da populao mundial que vive nos pases de
renda mais elevada concentra 86% do PIB mundial, 82% das
exportaes mundiais, 68% do investimento direto estrangeiro
e 74% das linhas telefnicas. J a parcela dos 20% mais
pobres concetra 1% do PIB mundial, 1% das exportaes
mundiais, 1% do investimento direto estrangeiro e 1,5% das
linhas telefnicas.
O forte padro de excluso scio-econmica constitui um
grave comprometimento s noes de universalidade e
indivisibilidade dos Direitos Humanos. O alcance universal dos
Direitos Humanos mitigado pelo largo exrcito de excludos,
que se tornam suprfluos em face do paradigma econmico
vigente, vivendo mais no Estado da natureza que
propriamente no Estado Democrtico de Direito.
Por sua vez, o carter indivisvel desses direitos tambm
mitigado pelo esvaziamento dos direitos sociais fundamentais,
especialmente em virtude da tendncia de flexibilizao de
direitos sociais bsicos, que integram o contedo de
Direitos Humanos fundamentais. A garantia dos direitos sociais
bsicos (como o direito ao trabalho, sade e educao),
que integram o contedo dos Direitos Humanos, tem sido
apontada como um entrave ao funcionamento do mercado e um obstculo
livre circulao do capital e competitividade
internacional. A educao, a sade e a previdncia, de
direitos sociais bsicos transformam-se em mercadoria, objeto
de contratos privados de compra e venda em um mercado
marcadamente desigual, no qual grande parcela populacional no
dispe de poder de consumo. Em razo da indivisibilidade dos
Direitos Humanos, a violao aos direitos econmicos,
sociais e culturais propicia a violao aos direitos civis e
polticos, eis que a vulnerabilidade econmico-social leva
vulnerabilidade dos direitos civis e polticos.
Acrescente-se ainda que esse processo de violao dos
Direitos Humanos alcana prioritariamente os grupos sociais
vulnerveis, como as mulheres e a populao negra (da os
fenmenos da feminizao e etnicizao
da pobreza).
Ressalte-se que os prprios formuladores do Consenso de
Washington, dentre eles Joseph Stiglitz, vice-presidente do
Banco Mundial, hoje assumem a necessidade do Ps-Consenso
de Washington, capaz de incluir temas relativos ao
desenvolvimento humano, educao, tecnologia e ao meio
ambiente enfim, entende-se fundamental apontar as funes
que o Estado deve assumir para assegurar um desenvolvimento
sustentvel e democrtico.
Para a consolidao da democracia, emerge o desafio da
construo de um novo paradigma, pautado por uma agenda de
incluso, que seja capaz de assegurar um desenvolvimento
sustentvel, mais igualitrio e democrtico, nos planos
local, regional e global. A prevalncia dos Direitos Humanos
e do valor democrtico h de constituir a tnica desse novo
paradigma, sob as perspectivas de gnero, raa e etnia. Ao
imperativo da eficcia econmica deve ser conjugada a exigncia
tica de justia social, inspirada em uma ordem democrtica
que garanta o pleno exerccio dos direitos civis, polticos,
sociais, econmicos e culturais.
Por isso, em um contexto cada vez mais marcado pela relao
entre estados, regies e instituies internacionais, o prximo
milnio reserva como maior dbito e desafio a globalizao
da democracia e dos direitos humanos.
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